Enforcing Order: An Ethnography of Urban Policing
RECENSÃO
Didier Fassin (2013), Enforcing Order. An Ethnography of Urban Policing
Susana Durão*
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
Brasil. ssbdurao@gmail.com
Didier Fassin (2013), Enforcing Order. An Ethnography of Urban Policing.
Malden: Polity Press, 320 pp.
Disponível numa excelente tradução em língua inglesa da obraLa force de
l'ordre: Une anthropologie de la police des quartiers (2011, Paris: Seuil),
Enforcing Order é uma etnografia sobre brigadas anticrime nas banlieues
parisienses nos anos 2000. O autor discute, com grande detalhe, como se conjuga
um processo político, legal e policial que não só legitima como apoia e
estimula os agentes a encabeçar policiamentos repressivos, ineficazes e
contraprodutivos. A tese central é que tais unidades não servem para manter a
ordem pública mas para garantir a manutenção da ordem social, através de
rotinas e interações subjetivas: uma economia moral e emocional que passa por
humilhação, raiva e vingança.
O autor defende que nos anos 1990, em França, foi dilatado um modelo de
segregação espacial de migrantes e minorias étnicas em complexos habitacionais
afastados dos centros urbanos. Enquanto isso, foi sendo constituído um braço
armado da política ' as brigadas ' com uma iconografia, fardamento e
tecnologias especiais. Embora de reputação mista, estas ampliaram a margem de
discricionariedade para agir com brutalidade apenas nesses lugares e com
determinadas parcelas da população (jovens de classes populares,
maioritariamente oriundos da África do Norte e Subsariana). Privilegiando o
caso francês, o autor não esconde a ambição de fornecer um retrato global sobre
o policiamento em curso nas periferias e nos designados bairros de realojamento
social.
O livro respeita o modelo da boa monografia clássica. Primeiro, baseia-se em
uma pesquisa de campo longa pelos meandros da atividade quotidiana das
brigadas. Segundo, evidencia como as categorias são local e interativamente
constituídas através de uma análise que não se deixa subsumir na tentação
hermenêutica. Terceiro, é uma monografia que foca evidências sociológicas,
embora sublinhe arranjos subjetivos que conduzem a padrões de entendimento do
agir policial. Quarto, discute com a literatura relevante (maioritariamente em
língua inglesa) mas oferecendo o olhar crítico de um antropólogo francês.
Quinto, há afinação entre descrições fenomenológicas e inteligibilidade dos
dados. Sexto, embora particularizando, o autor desvia-se habilmente da crença
na intencionalidade individual, promovida na ideia de cultura policial,
preferindo analisar a atmosfera política e policial.
Se a desigualdade social é objetiva, a injustiça é subjetiva. O aforismo
teórico rege a etnografia que vamos ler. Nos capítulos introdutórios e finais
Fassin mobiliza a sua biografia, bem como ambiguidades do discurso académico,
para lidar com uma questão epistémica: o relevo de subjetividades e emoções nos
recursos morais acionados interativamente. No capítulo Situação, Fassin faz
equivaler a relação dominante entre polícias e jovens das banlieues ' jovens a
quem os polícias chamam filhos da puta e selvagens ' a uma situação
colonial. O presente retém traços de um passado com o qual deixou de existir
vínculo formal. Imagens e retóricas associam o trabalho policial a uma guerra
contra inimigos, vincando nos polícias exterioridade e aversão, tão
sociológicas quanto morais. O policiamento passa por demonstrar, em situação,
quem está em controlo. No capítulo Quotidiano o autor disseca o efeito
perverso da cultura dos resultados em rotinas marcadas pelo tédio e pela
frustração. Em vez de objetivos e eficácia, a divisão moral do trabalho baseia-
se em princípios ideológicos, onde agentes fazem lei, por entre intervalos
das leis da droga e da imigração, em busca de presas fáceis. Em Interações
vemos as paragens e revistas, já antes denunciadas por autores como
discriminatórias, serem acionadas sem base em suspeita. Práticas de subjugação
seletiva de jovens migrantes geram momentos de tensão, vergonha e humilhação: é
a rotina mortificante para quem fica refém da repetição contínua da experiência
apenas por residir nos bairros. Jogos verbais e showstrágico-cómicos ajudam à
interiorização de posições sociais, afastando do Estado, e mesmo da política,
parte substancial da população.
Em Violência fica evidente que as brigadas são parte do problema das
periferias, não da solução. Descrevendo um caso excecional e tíbio de
penalização da ação violenta de polícias, Fassin recusa limites normativos da
definição sociológica. É insuficiente mimetizar critérios da administração
policial e judicial que reduzem abuso à força física com consequências
identificáveis (agressões, morte). Para o autor, violência é interação que
afeta a dignidade individual, não apenas corpo e carne; está enraizada e não
vista porque é moral. A violência banaliza-se em seu arsenal retórico,
invisibiliza-se a partir do uso de categorias legais que ofuscam práticas, como
resistência com agressão aos agentes da autoridade. Engolir a frustração e a
raiva é parte integrante da violência quotidiana exercida sobre jovens
migrantes que, por experiência, conhecem os custos da denúncia. A análise
adensa-se no capítulo Discriminação, onde Fassin não acua mediante as
complexidades do problema. O autor evidencia deslizes e dinâmicas cruzadas
entre discriminação, por um lado, e racismo, por outro; a racialização
instrumental e a discriminatória/seletiva. Considera as práticas coletivas, não
apenas imputáveis a indivíduos; fala em racismo institucional. O habitus
dominante nas brigadas é racista e discriminatório porque fruto de décadas de
políticas de concentração e segregação urbana de migrantes pobres e populações
minoritárias.
Os últimos capítulos do livro são particularmente inovadores e recuperam
dimensões trabalhadas pelo autor em outras obras. Em Política não lemos sobre
formas abstratas ou modelos de governo, mas antes as afiliações políticas de
polícias que aderem a ideologias de extrema-direita em França e a movimentos
paramilitares. Impressiona a liberdade e tolerância em relação à exposição de
símbolos xenófobos no espaço público das delegacias, por contraste com a total
intolerância de simbologias de resistência juvenis nas ruas dos bairros. Com
base empírica, Fassin retoma a tensão teórica entre a perspetiva marxista da
instrumentalização governamental/elitista das polícias e a proposta weberiana
da insularidade funcional-burocrática. Conclui que ambas ' instrumentalização e
insularidade ' se alimentam em uma circularidade codependente. A organização
policial torna-se autónoma ao tornar sua a responsabilidade sobre o que lhe é
imposto. Depois dos motins nas banlieues, em 2005, os profissionais passam a
apresentar-se, pública e mediaticamente, como vítimas vulneráveis; reclamam o
direito a sofrer mesmo quando diminuem os indicadores de violência física sobre
eles. Defendem ser vítimas de uma causa externa contra si (as periferias, a
selva); traumatizados, como sujeitos normais, afetados por eventos anormais
(causados pelos filhos da puta). Fassin argumenta: a vitimização é uma
resposta à criminalização da sociedade, fermento de uma economia moral onde os
agentes das brigadas são os protagonistas. No capítulo Moralidade Fassin
analisa a melancolia e o desconforto dos agentes perante os fracos resultados
das suas intervenções e o anseio de substituírem a sua justiça à dos juízes. A
radicalização do discurso público contribui para produzir e legitimar um ethos
policial que gera hostilidade no mundo social e exige mais medidas punitivas.
Esta é uma ordem emocional que apoia formas de ressentimento moral e gera
humilhação. Fassin fornece exemplos que mostram como nas brigadas a norma é a
insensibilidade e a compaixão desviante, embora atente para variações
individuais éticas possíveis. Concluindo, com Democracia, é discutido o preço
a pagar em termos de cidadania.
Ao lado de Steve Herbert (Policing Space. Territoriality and Los Angeles Police
Department, 1997) e de Andreas Glaeser (Divided in Unity.Identity, Germany, and
the Berlin Police,2000), Fassin veio refrescar os estudos policiais. Mas a
leitura da obra não esgota o que a antropologia tem a dizer sobre polícia e
justiça em vários lugares do mundo. Enforcing Order é sobre um tema central:
efeitos morais das deturpações do poder. Falta integrar, nas nossas
etnografias, o peso de pressões sociais pelo restauro de autoridades morais
policiais, tanto quanto políticas. Fassin escreve sobre operacionais e
comissários das brigadas anticrime. É igualmente importante detalhar o trabalho
e as consequências da pedagogização de oficiais superiores no anseio de
democratizar a partir de cima. O próprio autor não esconde o otimismo com que
ouviu um comissário revelar impasses morais e apreciar a leitura de Foucault.
Que usos terão estes saberes na prática profissional e na história? Por fim,
esta é uma etnografia sobre a perversa economia moral de polícias treinados
para interagir com pessoas e lugares que perspetivam como inimigos que devem
subjugar. Em policiamentos orientados para cidadãos, tendo de lidar com vítimas
de terceiros (como no caso das violências de género ou conjugais) outras
configurações morais, baseadas em impotências e recuo no poder, podem ser
vislumbradas.
NOTAS
* É professora de Antropologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Universidade Estadual de Campinas ' UNICAMP, Brasil. É investigadora
associada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Tem
estudado dinâmicas do Estado, burocracias da segurança, circulação de pessoas,
conhecimentos e modelos policiais em Portugal e no Brasil.