Se Deus fosse um activista dos direitos humanos
RECENSÃO
Santos, Boaventura de Sousa (2013), Se Deus fosse um activista dos direitos
humanos
Teresa Martinho Toldy*
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fernando Pessoa,
Portugal. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal
toldy@ces.uc.pt
Santos, Boaventura de Sousa (2013), Se Deus fosse um activista dos direitos
humanos. Coimbra: Ed. Almedina, 160 pp.
A religião, ao contrário dos vaticínios iluministas da modernidade, parece não
ter perdido o interesse tanto académico, como político, social e cultural na
atualidade. Aliás, não há academia que se preze, a nível internacional, que não
a inclua, nas suas múltiplas manifestações e impactos, nas agendas de
investigação e de lecionação. Portugal, infelizmente, parece constituir uma
exceção, tanto do ponto de vista do conhecimentos amplo dos temas centrais aos
debates académicos atuais nesta área, como no que diz respeito a leituras
críticas do papel público e político das religiões. Por isso, este livro presta
um bom serviço público e ao público académico e militante dos direitos humanos.
O livro parte de uma constatação e de uma intenção. Sousa Santos não pretende
apenas contribuir para o desenvolvimento de uma teoria de vanguarda (p. 10).
A sua intenção é dar conta do peso que as crenças religiosas ou a
espiritualidade das várias religiões tem nos activistas da luta por justiça
sócio-económica, histórica, sexual, racial, cultural e pós-colonial (idem). As
diversas formas como a religião se cruza com estas lutas, e constitui
inspiração para as mesmas, testemunha, na perspetiva do autor, que a ideologia
da autonomia e do individualismo possessivos (p. 8), típica da Modernidade
ocidental, foi posta em causa.
A emergência das várias tendências e matizes das teologias políticas (que
Boaventura de Sousa Santos define como as concepções da religião que partem da
separação entre a esfera pública e privada para reclamar a presença (maior ou
menor) da religião na esfera pública ' p. 9) coincidiu com a entrada dos
direitos humanos nas agendas nacionais e internacionais. Ora, segundo o autor,
a religião e os direitos humanos constituem duas políticas normativas que
parecem não ter nada em comum: enquanto a primeira contesta a remissão da
discussão acerca da dignidade humana (associada ao cumprimento da vontade de
Deus) para o domínio privado, tal como pretendeu a modernidade, nos seus planos
secularistas, a segunda, na perspetiva do autor, é individualista, secular,
ocidento-cêntrica (culturalmente) e Estado-cêntrica. Como fazer um exercício
de tradução intercultural entre estas duas políticas normativas (p. 9)? É esta
a pergunta para cuja resposta Boaventura de Sousa Santos pretende contribuir.
A obra divide-se em cinco capítulos, sendo, contudo, de notar que começa com
uma introdução (cf. pp. 13 a 29), na qual se discute uma questão fundamental: a
da possibilidade de uma concepção contra-hegemónica dos direitos humanos,
face ao panorama de uma hegemonia frágil dos mesmos (p. 13). Esta fragilidade
é decorrente, segundo o autor, da coexistência contraditória de um discurso
acerca da dignidade humana baseada nos direitos humanos com o facto
perturbador de a maioria da população mundial não ser sujeito, mas apenas
objeto dos discursos acerca dos mesmos. A releitura crítica das formas
convencionais de interpretar os direitos humanos contribuirá para a busca de
uma concepção contra-hegemónica dos mesmos, na qual, uma vez superadas as
ilusões da teleologia, do triunfalismo, da descontextualização e do monolitismo
das interpretações habituais, se recupere o seu potencial emancipatório, se dê
voz e vez aos direitos coletivos de grupos sociais excluídos ou discriminados e
se proceda a um diálogo com outras concepções da dignidade humana e outras
práticas em sua defesa (p. 24).
No primeiro capítulo, dedicado à temática da Globalização das Teologias
Políticas (cf. pp. 29 a 49), Boaventura de Sousa Santos equaciona a questão
das teologias políticas no contexto da globalização. De facto, hoje (aliás, de
certa forma, como sempre, dado que as religiões se perspectivam a si próprias
para lá de fronteiras geográficas), a reivindicação da religião como elemento
constitutivo da vida pública coloca-se à escala global. O autor identifica
três formas de globalização ' hegemónica (neoliberal), contra-hegemónica
(globalização a partir de baixo, isto é, dos movimentos sociais) e não
hegemónica (eventualmente crítica de formas hegemónicas, mas sem um projeto
contra-hegemónico claro), pelo que se pergunta qual o enquadramento das
teologias políticas nestas diversas formas. Boaventura de Sousa Santos começa
por afirmar que a resolução ocidental moderna da questão religiosa é um
localismo globalizado, ou seja, é uma solução local que, por via do poder
económico, político e cultural de quem a promove, expande o seu âmbito a todo o
globo (p. 34). É, pois, necessário analisar as consequências deste processo à
escala global.
O capítulo prossegue definindo uma tipologia das teologias políticas. Retomando
a ideia de que o denominador comum a todas é a reivindicação da intervenção da
religião na vida pública, o texto procede a uma caracterização extremamente
útil, porque complexa ' recusando os simplismos correntes na análise desta
temática, particularmente, quando se cruza com a questão dos fundamentalismos!
' das diversas correntes da teologia política. Distingue, assim, entre
teologias pluralistas e fundamentalistas, definindo as primeiras como aquelas
que concebem a revelação como um contributo para a vida pública e a
organização política da sociedade, mas aceitam a autonomia de ambas (p. 39) e
as segundas como teologias, tanto cristãs, como islâmicas, nas quais a
revelação é concebida como o princípio estruturante de organização da sociedade
em todas as suas dimensões (p. 38). No fundo, ambas as correntes procuram
equacionar, de formas muito diversas, a relação entre a razão e a revelação,
bem como entre esta e a história. Por fim, este primeiro capítulo estabelece
uma distinção entre teologias tradicionalistas e progressistas no que diz
respeito ao critério ou orientação da intervenção religiosa (p. 43). Enquanto
as primeiras intervêm na sociedade defendendo as regulações sociais e
políticas do passado (idem), as teologias progressistas fundamentam-se na
distinção entre a religião dos oprimidos e a religião dos opressores, e
criticam severamente a religião institucional como sendo a religião dos
opressores (p. 44).
Depois de definido o quadro conceptual no que diz respeito aos direitos
humanos, às diversas formas de globalização e às diferentes tipologias e
correntes das teologias políticas, a obra avança, nos segundo e terceiro
capítulos (cf. pp. 51 a 74), para uma análise mais detalhada do
fundamentalismo islâmico e do fundamentalismo cristão. O capítulo sobre o
fundamentalismo islâmico começa por referir que este coloca desafios
importantes à modernidade ocidental como projeto cultural. Demarcando-se
claramente de uma análise redutora do Islão, que o identifica de forma
grosseira com vertentes fundamentalistas, e afirmando a necessidade de olhar
para o mesmo reconhecendo a diversidade de experiências religiosas existente
no seu interior, Boaventura de Sousa Santos analisa o Islão político
fundamentalista, afirmando que este se alimenta do fracasso dos projetos
nacionalistas secularistas e ditatoriais, pelo que, em vez de nacional e
Estado-cêntrico, é transnacional e sócio-cêntrico. Transfere o projeto de
renovação para uma sociedade transnacional de crentes, sujeitando o Estado a
uma crítica radical, acusando-o de cumplicidade ou submissão ao imperialismo
ocidental (p. 58). O capítulo prossegue com uma análise dos desafios colocados
ao Islão pelos feminismos e termina afirmando que o feminismo crítico torna
mais complexa a relação entre Islão e modernidade ocidental (p. 63),
nomeadamente, no que diz respeito à questão dos direitos humanos.
O capítulo seguinte debruça-se sobre o caso do fundamentalismo cristão, muitas
vezes esquecido em estudos sobre o fundamentalismo. Depois de já ter sido
referido no primeiro capítulo que o fundamentalismo nasceu no seio do
cristianismo (nomeadamente, nos Estados Unidos da América ' cf. pp. 37 a 38),
informação extremamente valiosa para a superação de interpretações simplistas
do fenómeno, Boaventura de Sousa Santos analisa expressões atuais do mesmo,
sobretudo nos Estados Unidos da América e na América Latina, sob as formas das
chamadas teologias da prosperidade, da Nova Direita e do Neopentecostalismo
de expressão partidária (no Brasil, por exemplo). Chama, contudo, a atenção
também para a existência de correntes dentro do catolicismo que legitimam o
capitalismo (pense-se, nomeadamente, em Michael Novak e nos seus discípulos).
Resumindo, nas palavras do autor, estes movimentos não decorrem de uma rejeição
das estruturas económicas e políticas, em nome de uma nostalgia teocrática
pura e simples (p. 73). Eles possuem estratégias de envolvimento nessas
mesmas estruturas, utilizando os mecanismos que lhes são próprios, com o
objectivo de influenciar a sua agenda (idem). O capítulo termina com um
parágrafo que enuncia a intenção dos capítulos seguintes: analisar os desafios
colocados pelas teologias políticas aos direitos humanos e as formas como estes
se relacionam com processos contraditórios de globalização (p. 74).
No quarto capítulo, sobre os Direitos Humanos na Zona de Contacto com as
Teologias Políticas (cf. pp. 75 a 102), Boaventura de Sousa Santos equaciona
as turbulências geradas nas zonas de contacto, resultantes da emergência das
teologias políticas e da existência de concepções rivais da dignidade humana,
da ordem social e da transformação social (p. 75). As turbulências enunciadas
pelo autor, como ele próprio afirma, lançam uma nova luz sobre os limites da
política dos direitos humanos a uma escala global (p. 76). São elas: a
turbulência entre princípios rivais; a turbulência entre raízes e opções; e a
turbulência entre o sagrado e o profano, o religioso e o secular, o
transcendente e o imanente. A primeira turbulência diz respeito à emergência de
outras gramáticas de dignidade humana, após o falhanço histórico (p. 77) de
uma compreensão e de uma prática dos direitos humanos entendida como a
universalização do seu modelo ocidental. Esta turbulência caracteriza-se,
pois, pelo conflito entre monoculturas rivais (p. 80), quer sejam inspiradas
por um universalismo cristão de tipo medieval, quer seja por um Islão empenhado
em islamizar a modernidade (p. 79), e revela a existência de uma injustiça
socioeconómica e de uma injustiça cultural. A segunda turbulência (entre raízes
e opções) decorre, segundo Boaventura de Sousa Santos, do facto de a construção
social da identidade e da mudança na modernidade ocidental se basear numa
equação na qual o pensamento de raízes é tudo aquilo que dá segurança e o
pensamento das opções, aquilo que é substituível, transitório, indeterminado.
Ora, acontece que, ao entrarem em contacto com a modernidade ocidental, as
outras culturas foram obrigadas a adoptar esta lógica e a modernidade
ocidental, produzindo uma injustiça histórica, ao definir os termos do
conflito [ ], procedeu a uma redistribuição brutal do passado, do presente e do
futuro dos povos e culturas na zona de contacto (p. 84), retirando-lhes a
capacidade de produzir futuros alternativos (idem). O que acontece hoje em
dia, no Ocidente, é uma radicalização das opções em detrimento das raízes
(pense-se na desvalorização do contrato social) e, nas culturas e sociedades
islâmicas, uma radicalização das raízes, em detrimento das opções (pense-se nos
fundamentalismos, nos quais a única alternativa apresentada é a da raiz
fundadora). Esta turbulência manifesta-se, também, na instrumentalização dos
direitos humanos e na sua desvalorização nas sociedades ocidentais modernas.
Curiosamente, as teologias integristas aproximam-se das perspetivas
neoliberais, neste aspeto, uma vez que desvalorizam o carácter de raiz dos
direitos humanos, em prol da afirmação da lei de Deus (e não das leis humanas)
como legitimidade estruturante das sociedades. Por último, a terceira
turbulência, segundo Boaventura de Sousa Santos, revela da forma mais drástica
de todas as clivagens entre os direitos humanos e a modernidade ocidental, de
um lado, e as teologias políticas e, em particular, as teologias políticas
fundamentalistas, pelo outro (p. 90), já que manifesta a luta, protagonizada
pela modernidade e as teologias (com matizes muito díspares, ainda assim!),
pela (não) redução do sagrado ao profano, do religioso ao secular, do
transcendente ao imanente, dependendo de que lado da barricada se equaciona o
problema ou ' dito de forma resumida ' a luta pela (não) redução da religião ao
domínio privado, em expansão, isto é, transformado num dos campos do político
(p. 94).
Quererá tudo isto dizer que os direitos humanos devam ser descartados como algo
frágil, como uma imposição ocidental incompreensível para outras culturas e
outras formas de modernidade? Será possível equacioná-los numa perspetiva que
supere as diversas formas de injustiça mencionadas? Haverá formas de teologia
política capazes de contribuir ativamente para esta transformação dos direitos
humanos num instrumento de emancipação social (p. 99)?
É dessa possibilidade, à luz de uma ecologia dos saberes (tema querido a
Boaventura de Sousa Santos), que fala o último capítulo desta sua obra ' Para
uma Concepção Pós-Secularista dos Direitos Humanos: Direitos Humanos Contra-
hegemónicos e Teologias Progressistas (cf. pp. 103 a 132). O autor enuncia
como argumento fundamental não só a possibilidade, mas também a positividade de
um diálogo entre os direitos humanos e as teologias progressistas, concebido na
perspetiva de uma ecologia de concepções de dignidade humana, algumas
seculares, outras religiosas (p. 104). Do seu ponto de vista, as teologias
progressistas podem ajudar a recuperar a humanidade' dos direitos humanos
(p. 105), na medida em que recuperam a memória libertadora de um Deus que está
envolvido na história dos povos oprimidos e nas suas lutas de libertação (p.
106). Boaventura de Sousa Santos ilustra esta afirmação com uma visão
panorâmica das diversas formas de teologia da libertação em diferentes
quadrantes, tanto no contexto cristão, como islâmico. O seu denominador comum
está no facto de serem teologias contextualizadas social e culturalmente e por
isso poderem contribuir para aprofundar a consciência crítica de pessoas e
grupos sociais concretos, oprimidos por formas igualmente muito concretas de
relações desiguais de poder (p. 114 a 115). Elas são também teologias que
criticam radicalmente o capitalismo, perpetuam a memoria passionisdas vítimas
da história e perspetivam uma sociedade mais justa. Assumindo-se que a religião
apenas existe como uma imensa variedade de religiões (p. 119), o diálogo
entre elas, nas e em prol das lutas pela dignidade humana, a ser desenvolvido
mais do que até aqui, pode funcionar como uma memória e um campo de
experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo concepções religiosas e
não-religiosas da dignidade humana (p. 120).
Nas últimas linhas da sua obra, Boaventura de Sousa Santos regressa à sua
hipótese inicial de um Deus ativista dos direitos humanos. E conclui: Na
lógica deste livro, se Deus fosse um activista dos direitos humanos, Ele ou Ela
estariam definitivamente em busca de uma concepção contra-hegemónica dos
direitos humanos e de uma prática coerente com ela. Ao fazê-lo, mais tarde ou
mais cedo, este Deus confrontaria o Deus invocado pelos opressores e não
encontraria nenhuma afinidade com Este ou Esta. Por outras palavras, Ele ou Ela
chegariam à conclusão de que o Deus dos subalternos não pode deixar de ser um
Deus subalterno (p. 135). E essa conceção, no pensar do autor, abriria a porta
a uma conceção politeísta de Deus ' a única, do seu posto de vista, que
permite uma resposta inequívoca a esta questão crucial: de que lado estás?
(p. 136).
Esperemos que esta obra contribua para animar o tal debate, ainda por fazer em
Portugal, em torno de leituras políticas da religião e das suas articulações e
desarticulações com os direitos humanos. Um livro a ler, pois. Um must no
panorama nacional e internacional, já traduzido para espanhol e editado no
Brasil.
NOTAS
* Doutorada em Teologia pela Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt
Georgen (Frankfurt) e pós-doutorada pelo Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra. Professora Associada com Agregação em Estudos Sociais
na Universidade Fernando Pessoa (Porto). Investigadora do CES, onde coordena o
Observatório da Religião no Espaço Público (POLICREDOS). Domínios de
especialização: religião; estudos feministas.