Para uma genealogia do debate em torno da viabilidade do Estado em Timor-Leste
O propósito deste artigo é analisar, numa perspetiva histórica, algumas das
práticas discursivas, académicas e políticas, em torno do misterioso e vago,
por vezes polémico, quando não vácuo, conceito de viabilidade do Estado, no
âmbito mais alargado dos temas da construção do Estado e da construção da nação
em Timor-Leste. Dos primeiros ensaios, ainda nos anos 1970, sobre a ideia de
nação e da sustentabilidade da mesma, passando pelo longo período da
Resistência, assumindo particular destaque a administração das Nações Unidas, o
seu legado e as missões sucessórias, até à significativamente denominada
restauração' da independência, o tema suscitou uma ampla discussão que carece
de análise cuidada e que não cabe num artigo de pequena dimensão como o
presente. Há em todo o caso, um encadeamento genealógico' que se pode ensaiar.
É importante referir, à partida, que o artigo tem vários objetivos, que devem
ser, no entanto, sempre considerados na ótica do levantamento de pistas: desde
logo, identificar e caracterizar o discurso em torno da construção do Estado e
da nação e os respetivos desafios e problemas. Tal ocorre basicamente nos
marcos temporais que a seguir se avançam: 1) no período 1974-75: as primeiras
tomadas de posição, dos académicos aos políticos; 2) no período 1999-2002: com
o horizonte da soberania e a criação da administração das Nações Unidas, toma
forma o discurso sobre State-Building' e Nation-Building'; 3) de 2002 aos
nossos dias: independência/restauração, disrupções políticas e seus efeitos
para a continuação do debate e a ideia da neotutela' associada às missões
sucessórias das Nações Unidas.
A complexidade, originária e constante, da questão de Timor-Leste chamou sempre
a atenção para a centralidade da fundação no Estado, na medida em que esse
objetivo imbricava com o princípio da autodeterminação, com o pós-colonialismo
e com o papel das organizações internacionais, das organizações não
governamentais e dos indivíduos, cuja ação, mais ou menos conjugada, redundou,
com a ajuda conjuntural e a mudança de cenário estratégico nas relações
internacionais, na alteração ao status quo e na reunião das condições que,
permitindo a independência formal, a envolveram numa nebulosa de desafios e
numa fixação vaga de conceitos tornados em objetivos políticos.
Como em tantos outros casos, um processo que é um microcosmos' da história das
relações internacionais do último quartel do século xx e do primeiro do século
xxi, neste particular com as especificidades que resultam de três
administrações sucessivas estrangeiras' (portuguesa, indonésia e da ONU) e de
uma última que sendo nacional', esteve entre 2002 e 2012 acompanhada de duas
missões sucessórias das Nações Unidas (United Nations Mission of Support in
East Timor, UNMISET, 2002-2005 e United Nations Mission in Timor-Leste, UNMIT,
2005-2012), cujo fim era justamente auxiliar o Estado nas tarefas
tradicionalmente resultantes do exercício da soberania.
A genealogia
Avancem-se os primeiros passos para traçar esta genealogia. O debate tem de ser
visto à luz da Teoria das Relações Internacionais, através da qual numa visão
puramente simplista, a polarização que se instalou entre idealistas e
realistas, uns apologistas os outros detratores, ganhou nova densidade de cor
no imediato pós-Guerra Fria, com as várias intervenções, ora por parte da
sociedade internacional, em ações legitimadas pelas Nações Unidas em situações
de crise ou de conflito, ora, em alternativa, por parte de um Estado ou de uma
coligação de Estados, nem sempre detentores dessa mesma legitimidade. A questão
é, naturalmente, muito mais matizada e tem dado azo a uma outra discussão em
torno da intervenção externa, das condições que fundamentam a ingerência, e da
fonte de legitimidade que um mandato das Nações Unidas confere para que essa
intervenção ocorra. No processo de fabricação de um país a parafernália de
atores envolvidos leva a cabo ações efetivas para erigir as instituições, mas
são frequentes as acusações de neocolonialismo ou de pré-formatação e
desatenção às especificidades dos territórios em que se movem. Nesta dinâmica
mecanicista de sabor artificial, é frequente identificarem-se situações de
extrema delicadeza, verdadeiramente não tipificadas, mas que envolvem cenários
de instabilidade, disfunções institucionais ou pobreza: neste caso, a
construção do Estado pode redundar numa situação de fragilidade', expressão
que alguns estudiosos preferem, evitando assim outra mais definitiva como
falhanço' (tradução não completamente satisfatória para failure) ou colapso'.
É verdade que nunca houve um otimismo muito acentuado em relação à criação de
Timor-Leste. Desde o início do projeto de Estado-nação e mesmo antes (quando
Sukarno demonstrou a sua vontade de integrar o território na Indonésia, nos
anos 1960), que estão identificados vários escritos que enumeram as
dificuldades do estatuto. Muitos analistas, incluindo militares, especialistas
em informações e até mesmo académicos mostraram ser reticentes em relação à
viabilidade de um Estado na metade oriental da ilha de Timor. Nos meados do
decénio de 1970, depois de Portugal ter pronunciado a sua vontade de
descolonizar, a perceção geopolítica e a avaliação das condições económicas
apontavam para a impossibilidade da independência; a Indonésia, apoiada pelos
EUA, pretendia a anexação e a Austrália apoiava-a nessa pretensão; Portugal,
embora reconhecesse o direito à autodeterminação, tinha a consciência de que a
elite local estaria insuficientemente preparada para levar por diante um novo
país e que a violência iria irromper de imediato.
Depois de 1975 e até 1999, a luta pelo reconhecimento da legitimidade da
intenção de fundar um Estado-nação tomou menos em conta a sustentabilidade da
soberania, o que de resto nem sequer é incomum. As Nações Unidas levaram a cabo
várias missões de construção de Estados, com complexidades e amplitudes
crescentes nos últimos vinte anos e sujeitas a exigente escrutínio, no afã,
aparentemente impossível, de assinalar o respetivo êxito. De 2002 em diante, o
novo Estado assumiu a responsabilidade, ainda que parcialmente partilhada, com
as missões sucessórias das Nações Unidas e com a ajuda internacional e
bilateral, de certos parceiros privilegiados. Veio para discussão a ideia de
neotutela, rebuscada na história, assunto tratado mais adiante.
Alguns conceitos-chave
Em seguida, apresentam-se brevemente os conceitos-chave para o debate, após o
que será ensaiada a aplicação dos mesmos a Timor-Leste, identificando as linhas
de continuidade assim como as de rutura, de 1975 aos nossos dias. Não
pretendendo entrar numa deambulação sobre conceitos, é importante fixá-los no
enquadramento histórico devido, bem como na tendência para a concentração na
análise dos resultados e nas dificuldades, quando não impotência, da comunidade
internacional. O que o fim do bipolarismo e a reemergência dos nacionalismos
trouxe foi a produção de um novo conceito-categoria de Estado indutor de um
estigma: o Estado falhado. Esta classificação foi revista, poucos anos mais
tarde, como puramente instrumental, na medida em que a conjuntura da War on
Terror e a aplicação da política externa americana na repressão dos Rogue e dos
Failed States constituíam uma base, unilateral, para a intervenção externa.1
À luz das teorias das Relações Internacionais era, como se referiu, fácil de
estabelecer a dicotomia entre os realistas, que viam nestas novas entidades
terreno fértil para políticos corruptos e um viveiro para terroristas, uma
ficção insustentável a requerer assistência internacional permanente e uma
verdadeira ameaça à segurança internacional. Os liberais, por seu turno,
acreditam que a organização de um sistema democrático era não só desejável e
expectável, como possível, e que a construção de um Estado dotado de
instituições funcionais e o desenvolvimento da economia, devidamente integrada
nas forças e dinâmicas da globalização, são um benigno ponto de partida.
A citada formulação ' o Estado falhado ', originalmente concebida nos Estados
Unidos, foi usada para rotular todos os Estados onde ocorreram guerras
mortíferas (com um elevado número de vítimas civis), deslocações de populações,
pobreza, má-nutrição e ausência de segurança, cuidados de saúde e educação
(Rotberg, 2002: 127).2 Robert Jackson descreveu estes Estados como detentores
do que chama soberania negativa na medida em que, sendo reconhecidos pelos seus
pares, não têm os recursos suficientes e a vontade para satisfazer as
necessidades do respetivo povo (Jackson, 1993). Como se vê, a questão encerra
uma tensão ideológica, mas o ponto essencial é apreender o alcance analítico do
conceito: saber em que consiste, através de que critérios é estabelecido e por
quem. A realidade sociológica existe e perturba a segurança internacional; a
tendência para uma certa perceção organicista, quando não mesmo antropomórfica,
é inevitável, mas estes são outros debates, que não cabem neste texto. Têm sido
cunhadas expressões similares, como Estados em colapso' ou Estados frágeis',
as quais surgem como alternativas para descrever situações de morte' e outras
moderadamente menos graves. Tal parece não resolver o problema da aplicação dos
conceitos à realidade, nem mesmo com a criação de índices definidos por
instituições privadas e revisões periódicas de classificações (Rotberg, 2004).3
O fim da Guerra Fria trouxe para a ribalta diversas crises (Somália, Ruanda,
ex-Jugoslávia) que sublinhavam os efeitos do fenómeno na segurança
internacional. A ONU, em consonância com esta tendência, alargou a sua já
pesada agenda, constituindo missões de paz e produzindo quantidades massivas de
wishful thinking,cunhando ou modulando expressões como good governance,
transparency ou capacity building. A União Europeia, por seu turno, incorporou
o tema na sua Política de Segurança e Defesa com a inclusão do State failure'
no seu Conceito Estratégico de 2003.
O discurso do Estado falhado segue a tradição da escola da modernização que
assume que a evolução natural é o caminho do Estado liberal. Portanto, quando
um Estado falha é porque não atingiu o modelo do Estado lockiano, com a
provisão de serviços (segurança, rule of law, participação política, saúde e
educação), ou weberiano, com o monopólio da violência (Eriksen, 2010). É
evidente a referência norte-americana, nessa mescla de wilsonianismo e
realpolitik, a qual induziu uma tradição intelectual que se generalizou como
modelo de governança internacional. Mas, mesmo assim, e apesar dos esforços
empreendidos, continua a não haver consenso quanto às características
definidoras do conceito. A procura da fórmula confronta-se com dados empíricos
de difícil tipificação. Um caso de desconstrução pós-modernista a funcionar em
pleno: o esvaziamento do sentido e a instrumentalização como traços principais
da sua aplicação à realidade.
O debate sobre o Estado falhado' em Timor-Leste
Christopher Hill, à época Secretário de Estado Adjunto norte-americano para
Assuntos da Ásia Oriental e Pacífico, visitou Timor-Leste em Abril de 2008 e
declarou prontamente que este não era um Estado falhado. Fora de contexto, a
declaração sugere uma boutade: se os Estados Unidos, pela voz do seu governo,
não rotularem Timor-Leste nessa categoria, então Timor-Leste não é, na verdade,
um Estado falhado. Este silogismo está de facto ligado a um contexto muito
particular já aqui mencionado. Mas o que é realmente o principal objetivo deste
texto é destacar a genealogia do conceito aplicado a este projeto de Estado em
Timor-Leste.
No que se refere a este país, o horizonte da autodeterminação, definido em
1974, provocou imediatamente uma reação dos dois países vizinhos, Indonésia e
Austrália, dos Estados Unidos e de Portugal. Segundo todos eles, Timor não
estaria preparado para sobreviver economicamente, as elites conflituantes
ensombravam qualquer futuro promissor e seria, antecipavam, altamente provável
que o território viesse a ser submetido a desestabilizadoras infiltrações'.
Esta perceção de incapacidade não era inteiramente nova: nos anos sessenta,
como Moisés Silva Fernandes revelou, o futuro de Timor-Leste tinha sido traçado
pelas quatro potências mais diretamente envolvidas na área: EUA, Indonésia,
Austrália e Reino Unido. Portugal não teve qualquer participação nas
negociações. Na mesma década, a ideia de integrar o então Timor Português na
Indonésia começou a ser anunciada no final da época de Sukarno (agosto de
1965), na sequência de um movimento nacionalista de influência islamo-malaia
(Fernandes, 2005; 2006).
Entre 1974 e 1975, o Governo da Indonésia seguiu atentamente a evolução
política e confirmou a ideia da reunião quadripartida mencionada acima: a
absorção parecia inevitável. Hoadley anteviu uma intervenção rápida, na medida
em que a situação em Timor-Leste poderia ser uma ameaça à integridade da
Indonésia, ameaça esta que decorria do medo de que a diminuta dimensão de
Timor, bem como o atraso económico e vulnerabilidades várias, o tornassem num
potencial espaço vazio de poder, atraindo poderes externos hostis, quer
diretamente, através do comércio, ajuda, e bases militares, quer
clandestinamente, através de agentesradicais ou comunistas, com tropas hostis,
perto da fronteira da Indonésia, oferecendo um canal de infiltração e apoio aos
grupos de oposição dentro da própria Indonésia (Hoadley, 1975). A Indonésia
temia que a União Soviética ou a China, especialmente esta última, pudessem
apoiar a Frente Revolucionária para um Timor-Leste Independente (FRETILIN).
Estes receios foram naturalmente exagerados pela propaganda, técnica em que os
indonésios foram muito bem-sucedidos. O jornal Berita Yudha, de 2 de dezembro
de 1974, denunciava os excessos intimidatórios da FRETILIN. Os seus apoiantes
andariam igualmente a mostrar uma foto de Mao Tsé-Tung aos adeptos da
Associação Popular Democrática de Timor (APODETI), como grande mentor,
exortando-os a rejeitar a integração. A contrainformação foi alimentando a
instabilidade e a imprensa em Jacarta começou a informar que a APODETI era
apoiada por um número crescente de timorenses que desejavam tornar-se
indonésios (Hoadley, 1975: 17). O ministro dos Negócios Estrangeiros, Adam
Malik, no final de 1974, anunciava que a anexação parecia ser a única solução
(apudHoadley, 1975: 9). Tudo não passava de uma questão de tempo.
Acresce que o processo de descolonização em curso também originava
variadíssimas dúvidas. Vozes críticas, como Ruy Cinatti, viam com acentuado
pessimismo a independência de Timor-Leste:
não posso conceber uma independência digna desse nome que não assente
num mínimo de condições materiais [ ] e de estruturação
administrativa que a assegurem. [ ] sem recursos técnicos e
financeiros vindos do exterior e sem que o homem se transforme
mergulhando na realidade local antes mesmo que as ideologias
preferenciais a possam activar, será pouco menos que impossível a
manutenção de uma independência à escala do que, como tal, é hoje
consenso universal. (apud Stilwell, 1995: 8 ss.)
No Parlamento português, em janeiro de 1976, um mês após a invasão indonésia,
num discurso, o deputado Ângelo Correia, declarava o seguinte:
Timor apresenta-se como um dos territórios mais atrasados de todo o
mundo, sem infra-estruturas físicas e produtivas, sem quadros
técnicos e, sobretudo, sem uma elite minimamente capaz de assegurar
completamente a gestão do território. A sua manutenção como nação
independente obrigaria ou a um permanente auxílio de instâncias
internacionais, com profundas implicações na capacidade decisória
interna dos seus povos, ou a uma utilização do seu território por
potências externas que, aproveitando-se da sua localização, poderiam
ser tentadas a alterar o equilíbrio estratégico na área [...]. Em
síntese, parece-nos existirem fortes possibilidades de a
independência imediata poder conduzir ou a um neocolonialismo
económico-militar, ou à extinção da nação, ou, por último, à
manutenção de uma situação de permanente subdesenvolvimento
letárgico. (Assembleia da República, 2000: 65)
Assim, o fantasma do fracasso está associado, desde o início, à ideia de
fundação do Estado e, apesar do facto de a conjuntura internacional se ter
alterado profundamente, durante o período de transição (1999-2002) este debate
teve seguimento. A reflexão sobre o modelo de administração das Nações Unidas,
em especial o papel e as tarefas de construção da nação e construção do
Estado, sublinhou a importância de preocupações inteiramente novas: o
relançamento da economia, do Estado de direito, da confiança no desenvolvimento
da sociedade civil, incluindo uma infinidade de questões como a estabilidade
fiscal e macroeconómica, os salários dos funcionários públicos, emprego,
tribunais com um funcionamento eficiente, construção de estradas e reparação de
redes de telecomunicações, etc. Este desafio implicaria um grande investimento
em recursos humanos e, principalmente, a continuidade da ajuda internacional '
a qual não poderia ser tomada como garantida para sempre. A Organização das
Nações Unidas, que nunca tinha tido um mandato de tamanha amplitude para
administrar um território, com a trindade dos poderes, começou por ser
apresentada como tendo empreendido uma missão coroada de êxito. Não por muito
tempo, é justo acrescentar. Durante a vigência da United Nations Transitory
Administration for East Timor (UNTAET), um significativo número de críticos
oscilaram entre dois argumentos. Alguns deles sustentavam a incapacidade das
Nações Unidas ' por causa da sua estrutura e agenda ', no cumprimento das metas
a que se havia comprometido, assim como a incapacidade de adaptação ao terreno
e de encontrar respostas adequadas. Os outros consideravam que o fim da UNTAET
havia sido prematuro. Jarat Chopra foi talvez o mais proeminente dos críticos
da atuação das Nações Unidas em Timor-Leste, num artigo intitulado Building
State failure in Timor-Leste (2002), onde pinta um cenário muito sombrio,
prevendo um fracasso do Estado em Timor-Leste devido às práticas inadequadas da
organização: a forma absolutista' de exercer a autoridade e a falta de
intervenção participativa', que a timorização, ou seja a integração de alguns
timorenses na administração, só parcialmente resolvera (Chopra, 2002).
Robert Rotberg foi menos destrutivo, considerando que Timor-Leste dependeria
das injeções de capitais da comunidade internacional. No entanto, detetou
vários sintomas potenciais de fracasso', evocando a suficiente vontade
política e a assistência externa dirigida. Embora isto seja do senso comum, mas
subsume a herança do liberalismo, de ascendência wilsoniana.
Os realistas tiveram voz num Howard J. Wiarda, um antigo conselheiro do
presidente Bush pai. Em 2002, defendeu que em Timor-Leste se reuniam todas as
condições para haver fracasso', descrevendo a situação com cores
previsivelmente muito sombrias:
É um dos países mais pobres do mundo. Não só é subdesenvolvido
económica e socialmente em praticamente todos os aspetos, como quase
não tem instituições com as quais se possa contar: não tem governo,
funcionalismo público, sociedade civil, tradição de governação
própria, de democracia ou de cultura política cívica. Quase não tem
agricultura, ou a que tem é muito fraca, não tem comércio, indústria
ou comércio externo. (Wiarda, 2002: 53)
Wiarda anteviu que as forças da ONU e outros atores internacionais seriam
suscetíveis de permanecer no país por muitos anos.
Durante a crise de 2006-2008, a questão foi levantada novamente. Começando com
a contestação à Igreja Católica, seguida do episódio dos Peticionários4 e da
crise no seio das Forças Armadas, a demissão de Mari Alkatiri, as eleições
presidenciais e legislativas e depois as tentativas de assassinato de Ramos-
Horta e Xanana Gusmão, todo o país pareceu mergulhar em tumulto. Os adivinhos
voltaram; as tensões entre idealistas e realistas surgiram novamente. Algumas
vozes foram cuidadosas: ainda que permanecesse numa situação frágil, Timor-
Leste não estava à beira de uma iminente implosão, nem merecia o rótulo de
Estado falhado. Os contornos internos da crise corroboravam os estereótipos:
instituições frágeis, problemas de segurança, tensões sociais e étnicas,
pobreza. O prolongamento das missões das Nações Unidas (UNMISET, UNMIT) e a
intervenção de poderes bilaterais, com a Austrália à cabeça, para garantir um
ambiente de segurança, vinham confirmar a fragilidade de toda a situação.
Este período de 2006 a 2008 e o envolvimento crescente da Austrália coexistiam
com uma manifestação de interesses por parte da China, cuja visibilidade se foi
tornando cada vez maior, no estilo habitual da política externa chinesa
(Mendes, 2009). A dependência securitária em relação à Austrália e a crescente
penetração económica chinesa tornavam o país num local de confluência e
competição de interesses.
Em 2012, a realização de eleições, presidenciais e legislativas, e o anunciado
fim da presença das Nações Unidas lançou um conjunto de novas interrogações,
desta vez com a tónica numa situação sem precedentes, o fim da tutela'
multilateral. Hillary Clinton visitou o país em setembro deste ano, o que foi
lido por alguns setores como uma forma de aproximação ao país geograficamente
mais perto da Austrália, em cujo Norte (Darwin, mais exatamente), se basearam
2500 marines por forma a conter a expansão chinesa na região.5 Doravante, o
destino do país, nas suas vulnerabilidades bem identificadas, entrará num ciclo
de novas incertezas em que há retração do multilateral mas não do bilateral.
Será ainda prematuro avançar para avaliações, muito embora existam sinais
positivos de crescimento económico, sem embargo das assimetrias subsistentes e
da dependência do fundo soberano (Mendes, 2012).
A Austrália e o discurso do Failed State'
Como é sabido, a Austrália, devido à sua proximidade da Indonésia e por razões
de segurança, defendeu a integração de Timor na Indonésia, em 1974. Num
encontro com Suharto, em 6 de setembro de 1974, o Primeiro-Ministro Gough
Whitlam considerou que o território era muito pequeno para ser independente.
Numa frase curta, Whitlam definiu a posição do Governo da Austrália,
inaugurando o discurso sobre o tema: Um Timor-Leste independente será um
Estado inviável e uma ameaça potencial para a região (Ishizuka, 2004). Nesta
reunião, Suharto sublinhou a impossibilidade económica de um Timor-Leste
independente e o previsível pedido de auxílio a países inimigos ' a China ou a
União Soviética. Desde então e até ao final de 1998 houve um consenso, tanto
entre Liberais como Trabalhistas, sobre a prioridade de manter boas relações
com a Indonésia.
Após a independência em 2002, o debate ganhou novo fôlego. O fracasso previsto,
anunciado pelas aludidas vozes de Chopra e Wiarda, teve repercussões na
Austrália. Vários analistas compararam o caso de Timor-Leste com situações
semelhantes em ilhas do Pacífico Sul, em que a Austrália interveio. Desde 2001,
o governo começou a desempenhar um papel mais assertivo na vizinhança, pois,
como declarou o então Primeiro-Ministro John Howard:
É do interesse da Austrália e dos nossos vizinhos das ilhas do
Pacífico o esforço por uma região que seja economicamente viável,
politicamente estável e sem criminalidade. Os custos financeiros e
ameaças potenciais dos Estados falhados à Austrália, incluindo o
crime transnacional e o terrorismo internacional, seriam imensos.
(Australian Government, 2004)
Timor-Leste pertence geograficamente ao Sudeste Asiático, mas não seria
estranho relacionarem-se as suas características com a área da Melanésia. As
semelhanças são facilmente reconhecíveis. Em 2003, a Austrália definiu como
orientação da sua política externa a intervenção cooperativa e tornou-
a realidade nas Ilhas Salomão, Papua Nova Guiné, Tonga e Ilhas Fiji
(Wainwright, 2003). Todos estes territórios, incluindo também Timor-Leste,
foram integrados na sua esfera de influência, formando o que chamaram de arco
de instabilidade. O risco de fracasso, regional e estadual não se limitava, na
posição do governo, ao Pacífico-Sul. E Timor-Leste possuía muitas das
características do potencial de fracasso, incluindo uma economia estagnada,
poucas perspetivas de emprego, as tensões em torno da reintegração de veteranos
da Resistência na sociedade e instituições débeis, uma polícia disfuncional e
um sistema judicial ineficiente.6
Segundo essa conceção, Timor-Leste parecia estar na linha do citado arco. Sendo
um dos países mais pobres do mundo e a experimentar graves problemas, Timor-
Leste seria uma potencial fonte de instabilidade. E, simultaneamente, a
Austrália estenderia a sua influência política e económica através do comércio
e cooperação.
A crise de 2006 foi relatada pelo ministro das Relações Exteriores, Alexander
Downer, como segue: Timor-Leste tinha potencial para se tornar num Estado
falhado, se a volátil situação política e securitária não tivesse sido
controlada (News.com.au, 2006).
Na verdade, a Austrália enviou as suas tropas para Timor, com autorização da
UNMIT, e continuou a salientar a necessidade de continuar uma ajuda
sustentável, a fim de evitar a desordem. O texto da AusAid era claro sobre o
Estado de Timor-Leste, usando as palavras fraco e frágil para descrever a
situação (AusAid, 2008). ONG como a Oxfam, embora em alerta contra o aumento da
influência australiana, também ressaltam os perigos em que Timor estava
incorrendo: Dois anos depois de alcançar a independência, Timor-Leste está em
risco de se transformar num Estado falhado, com a abordagem do Governo
australiano de negociação da fronteira marítima a impedir a capacidade da nova
nação de financiar o seu desenvolvimento a longo prazo (Oxfam, 2004).
A mudança de ciclo político na Austrália, em 2007, evidentemente não alterou o
que são os interesses permanentes da política externa deste país nem sequer a
preocupação securitária recorrente e a assistência ao pequeno Estado, ainda que
a terminologia tenha sofrido um expectável abrandamento, que de resto,
independentemente do estilo dos Trabalhistas, também corresponde a uma acalmia
na situação interna de Timor-Leste et pour cause.
A ideia de neotutela
Não pretendendo entrar em considerações sobre o conceito e implicações da
neotutela, tema sobre o qual já muito se escreveu, a atenção recairá sobre a
sua aplicação ao caso de Timor-Leste.7 A questão foi discutida como eventual
formato que conciliasse as dificuldades de aplicação ao terreno de um mandato,
equilibrando as dificuldades sentidas pelo Estado no exercício das suas
funções. Uma solução de aplicação temporária e não necessariamente
imperialista, que implica a coparticipação local e internacional num modelo que
em certa medida foi timidamente ensaiado durante a UNTAET e que por solicitação
das próprias autoridades timorenses não foi formalmente aplicado através das
missões sucessórias, com vigor especial a partir da crise de 2006, por ter sido
posta em causa de modo veemente o desempenho do Estado, designadamente na sua
tarefa securitária.
Richard J. Butler, num artigo que é dedicado a esta questão, argumenta que o
envolvimento da ONU em Timor-Leste não corresponde ao conceito de neotutela e
que de uma forma mais adequada a neotutela deve ser vista como o produto da
disjunção entre o mandato definido e a incapacidade organizacional de o cumprir
num complexo ambiente pós-conflito, mais do que como qualquer manifestação
intencional e instrumental de imperialismo pós-moderno' (Butler, 2012: 85
ss.). Butler avança, portanto, uma explicação benigna: a incapacidade é
atribuída ao formato, isto é ao desfasamento entre a obrigação custodial' das
Nações Unidas de manter a paz e a segurança em sociedades pós-conflito e a
falta de capacidade para o alcançar e, consequentemente, não considera que haja
um regresso ao imperialismo em que as Nações Unidas reificam institucionalmente
a hegemonia liberal, sob o disfarce de State-building.
A neotutela é por definição multilateral e transitória, procurando promover
melhor governação em Estados falhados, em colapso ou em sociedades pós-
conflito. Ora, no caso vertente, argumenta Butler, a incapacidade' redundou em
pouco envolvimento local (com o Conselho Nacional de Resistência Timorense,
CNRT e as Falintil); na frustrada tentativa de timorizar' através da criação
do Conselho Consultivo Nacional para servir de interface entre a UNTAET e os
timorenses (dezembro de 1999), cujos membros, não eleitos, tinham uma
representatividade polémica; e apenas no verão de 2000 a East Timor Transitory
Administration (ETTA) e em outubro o Conselho Nacional (já todo formado por
timorenses), são um sinal, ainda que pouco ousado, do ajustamento às
características do terreno. Ora é justamente esta ideia que de novo põe a
tónica na capacidade de autogoverno e na inoperacionalidade das Nações Unidas
em atingirem, com o nível de ambição definido, os objetivos a que se propõem.
De certa forma, a ideia do desajustamento entre o mandato e a aplicação acabou
por não ser ultrapassada, ainda que tenha criado uma dinâmica de
interdependência entre a assistência das Nações Unidas e a construção das
instituições, que lançou uma ideia de gestão por neotutela como um meio de
superar a fragilidade dos Estados. O ensaio de administração internacional em
Timor foi uma solução contestada porque não se encontrou na fórmula de
coparticipação um equilíbrio; as missões sucessórias também não tocaram, no
âmbito definido, senão ao de leve uma sugestão de neotutela, que não saiu
portanto do plano da discussão teórica.
Conclusões
O choque entre liberalismo e realismo e a abordagem pós-moderna ficam bem
patentes na análise da evolução do discurso em torno da construção do Estado e
da Nação, e nas agruras dessas duas tarefas. O debate evoluiu desde a
perspetiva colonial até ao ambiente pós-Guerra Fria, no decénio de 90 do século
passado, em que a intervenção humanitária, as administrações internacionais e a
alusão à ocorrência de Estados falhados' se tornaram frequentes. Em diferentes
contextos históricos, o discurso sobre o Estado falhado' ou sobre a
fragilidade de Estados' tem servido claros fins políticos e reflete
forçosamente opções ideológicas, bem como diferentes interpretações das
relações internacionais e visões diferenciadas sobre a natureza, funções e
evolução do Estado. Na sua aparente inoperacionalidade e quase vacuidade
classificatória, torna-se importante contextualizar historicamente a evolução
do discurso tentando apreender de que forma as suas modulações são o espelho da
agenda internacional e, num contexto mais particular, as agendas dos atores
mais diretamente envolvidos.
O caso de Timor-Leste é, com efeito, um bom caso de estudo desta questão. Desde
que o horizonte da independência se perfilou, nos anos 1970, que os vaticínios
pessimistas abundaram. Por diferentes razões, a Austrália e a Indonésia
justificaram as suas posições antes e após a invasão conduzida pelo segundo com
a conivência e depois aprovação do primeiro em nome de um potencial colapso do
projetado Estado; Portugal oscilou entre a omissão e o ceticismo de duas ou
três vozes. Porém com os juízos da realpolitik alterados, o idealismo venceu,
e, em 1999, a independência tornou-se um objetivo possível de alcançar. A
transição não foi, como seria de esperar, isenta de deambulações em torno da
questão. As Nações Unidas, na sua missão de construção do Estado, foram
acusadas de terem legado um Estado frágil ou mesmo falhado e de terem
prematuramente transferido a administração, mesmo que tenham continuado o seu
trabalho de assistência nas missões sucessórias.
Os desenvolvimentos posteriores mostraram exaustivamente que, nos seus
primeiros passos, se verificaram situações no jovem país que contribuíram
amplamente para a produção do discurso. Estavam reunidas as condições para
tentativas mais ou menos genuínas de promover não só a compreensão sobre a
natureza e os processos que conduzem às situações concretas de debilidade ou
colapso, mas também sobre os motivos de natureza política da produção do
discurso. Este ponto é essencial: o que, sem dúvida, importa é examinar
atentamente as razões pelas quais os principais intervenientes envolvidos em
Timor-Leste estiveram interessados em produzir tal discurso, independentemente
de ele poder ter sustentação numa realidade caracterizada pela instabilidade
política, a insegurança ou a fruste economia. Tais razões podem ser aduzidas
sem dificuldades de maior tendo por base duas premissas, a de que não se
discute a bondade' da realidade estadual e de que esta bondade tem cânones
próprios, vagamente definidos em receitas genéricas e pouco discutidas. Assim,
autojustificação para a existência das instituições, defesa de interesses
egoístas, crença numa qualquer paz perpétua e na inexorabilidade do progresso
ou tão-somente a necessidade de criar uma realidade única, podiam ser, entre
outras, condições para a atividade discursiva que sustenta a construção e a
fragilidade ou colapso dos Estados. As Nações Unidas e as organizações
internacionais, os Estados, as ONG e toda a sorte de atores são animadas por
motivações diversas para debitarem tal discurso. Neste texto procurou-se chamar
a atenção para esta tendência e respetivas motivações numa ótica genealógica.
Se esta tarefa nos faz chegar a conclusões interessantes ainda está por provar.
Que a história está cheia de exemplos de Estados que desapareceram é uma
evidência, e de outros que miraculosamente' têm sobrevivido também. O
fatalismo, provou-se, é tudo menos linear quando se trata de traçar a história
de Timor-Leste.