Formação do Estado e da comunidade política em Timor-Leste - A centralidade do
local
Introdução
Tal como acontece com muitos Estados pós-coloniais, o povo e o governo de
Timor-Leste enfrentam a tarefa profundamente desafiadora de tecer em conjunto
uma vida e uma linguagem política partilhada a partir da interação de culturas
político-sociais e de lógicas de governação fundamentalmente diferentes (Hohe,
2002a).1 Desde a sua criação como um novo Estado (formalmente em 2002, após um
período de administração das Nações Unidas desde o final de 1999), Timor-Leste
tem-se caracterizado pela coexistência de normas liberais e de um modelo de
governo burocrático-legal, com formas e valores de governação locais,
genericamente tradicionais, e pela interação das trocas do mercado
internacional com o que ainda é fundamentalmente uma economia de subsistência
(Brown, 2009; Nixon, 2006). Na prática, estas lógicas estão inevitavelmente
enredadas, moldando-se umas às outras e sendo remodeladas no processo de
interação. No entanto, as mundividências em que estão inseridas e os modelos de
prática que produzem permanecem em muitos aspetos profundamente divergentes.
Estas diferenças vão para além da diversidade linguística e cultural que
caracteriza Timor-Leste; mais precisamente, envolvem construções profundamente
diferentes de comunidade, individualidade e obrigação, de autoridade,
responsabilidade e economia, da natureza e do sagrado (Hicks, 2004).
No entanto, em sintonia com os paradigmas internacionais predominantes de
construção do Estado e de construção da paz, as representações dominantes do
Estado e da nação ' da vida política de Timor-Leste ' concentram-se quase
inteiramente nas instituições e nas elites do Estado (ou nas ameaças a estas
instituições). Outras dinâmicas de poder aparecem na melhor das hipóteses como
simplesmente culturais, a serem geridas no âmbito dos termos do Estado
burocrático-legal. Essa abordagem permanece profundamente enraizada
internacionalmente, apesar da viragem local em algumas discussões teóricas e,
em menor grau, políticas (Denney, 2013; OECD, 2010). Neste artigo defende-se
que, ao não reconhecer devidamente outras construções de poder e de ações
adequadas como fontes genuínas e formadoras da comunidade política, as
abordagens centradas no Estado colocam os entendimentos de poder mais locais e
comunitários fora da troca, negociação ou do controlo sério, tornando-os,
assim, algo que está escondido à vista de todos. Além disso, esta omissão
torna-se um obstáculo aos esforços para compreender e negociar as interações
das diferentes construções de poder, de valor e de riqueza, e dos seus efeitos
sobre a liderança, as instituições, a governação e as vidas. Em muitas partes
do mundo pós-colonial, a fricção e a confusão entre os modos liberais e os
tradicionais de governação criaram zonas ambíguas que não são governadas por
padrões de prestação de contas tradicionais nem burocrático-legais, escondidas
do escrutínio e fervilhando com a manipulação oportunista e violenta (Boege et
al., 2009; Ellis e ter Haar, 2004).
A coexistência de normas de governação é um desafio profundo, mas não constitui
em si mesmo o problema. Pelo contrário, é a natureza e os efeitos particulares
da ecologia das relações (Descola, 2013) criados pela sua interação que são
importantes ' que dinâmicas de poder são possíveis; quem é excluído; são ou não
desenhadas as relações no sentido de se tornarem abertas à discussão e à troca,
são ou não reconhecidas ou responsabilizáveis. A natureza da comunidade
política em Timor-Leste e o caráter do seu funcionamento enquanto Estado são
suscetíveis de ser fundamentalmente moldadas pela forma como estas lógicas
entrelaçadas de governação se desenvolvem e são mobilizadas por diversos
interesses. Além disso, estes envolvimentos são importantes não apenas para o
governo central, mas estão em jogo talvez até mais intensamente ao nível das
comunidades, das aldeias (Cummins, no prelo). Os processos de discussão e troca
de ideias em torno de áreas concretas de interação poderiam dar substância aos
esforços de construção da nação e aos valores democráticos da participação, da
prestação de contas e do respeito que Timor-Leste abraçou constitucionalmente.
Neste contexto, é importante que os valores comunitários e tradicionais
dominantes sejam levados a sério como fontes genuínas da vida política e as
aldeias como locais cruciais da prática de governação emergente e fundamentais
para a experiência e o bem-estar das pessoas.
Neste artigo procede-se a uma reflexão sobre os fossos, tensões e
entrelaçamentos existentes entre as práticas e os valores tradicionais e os
liberais, com maior ênfase nas aldeias. Após um comentário sobre os termos,
situa-se a discussão ao olhar rapidamente para o surgimento do novo Estado de
Timor-Leste. Assinala-se a disjunção entre a abordagem liberal institucional
centralizada à governação e a abordagem da comunidade, mas também se consideram
os pontos fortes e fracos dos esforços para gerir essa disjunção: eleições,
processos de consulta, o papel dos bens sociopolíticos e alguns esforços da
comunidade local. Dada a importância das aldeias para a comunidade política
emergente, neste artigo discutem-se aspetos da vida tradicional e comunitária.
As eleições nas aldeias são um exemplo do crescente entrelaçamento de
diferentes abordagens à governação e uma indicação da diversidade dos
compromissos alcançados. As tradições podem em si mesmas ser entendidas como
uma expressão de autodeterminação. A seguir, retoma-se uma discussão mais ampla
sobre o exílio das tradições a partir da forma como o Estado e, por
implicação, a comunidade política são comummente conceptualizados. Reflete-se
sobre as abordagens mais relacionais e dinâmicas para a compreensão do Estado e
enfatiza-se o desafio e a importância dos processos de envolvimento e
intercâmbio para a construção da comunidade política através da diferença
radical.
A construção deste argumento em termos da própria governação institucional do
Estado e da governação tradicional arrisca repetir a reificação de categorias,
quando é mais frequente ser uma fusão dinâmica de vários elementos a dar forma
às realidades no terreno. No entanto, chamar a atenção para os valores
comunitários e tradicionais é uma resposta ao tratamento que eles recebem, que
é muitas vezes pejorativo ou negligente. As mundividências tradicionais e
práticas são entendidas aqui como dinâmicas e multidimensionais, com uma longa
história de resiliência, remodelação, rejeição e incorporação (McWilliam, 2005,
2008). A governação liberal também constitui uma família de abordagens
multiformes e opostas. O termo local é um termo aberto (Shaw e Waldorf,
2010). Refere-se, primeiro, ao governo local do suco.2 Nas áreas rurais, é o
suco que lida com a segurança e a subsistência quotidiana e é onde a maioria
dos timorenses têm experiência direta da governação. O suco é um ponto de
referência fundamental para a comunidade política em Timor-Leste e um local
crucial de entrelaçamento da governação tradicional com a governação
institucional do Estado. Embora as formas de governação do suco variem ao longo
do país (Gusmão, 2012), em aspetos importantes o significado da governação do
suco é mais nacional do que a do governo central, uma vez que são os valores
e os mecanismos locais que suportam a ordem social e política a nível nacional.
O local também aponta para valores e práticas tradicionais, que são locais no
sentido de serem do lugar, endógenos, mas também persistentes e de grande
alcance, por um lado com uma diversidade considerável ao longo do país, mas
partilhando fortes semelhanças familiares. No entanto, ser local não significa
que os sucos ou as tradições estejam espacialmente presos, existindo numa
esfera diferente ou isolada das dinâmicas globais, internacionais ou nacionais
(Appadurai apud Shaw e Waldorf, 2010: 6).
O novo Estado de Timor-Leste
A independência é uma conquista recente e duramente alcançada de Timor-Leste. O
Estado e o governo centralizado são a forma disponível de afirmação da
independência no sistema internacional e, para muitos timorenses, simbolizam a
rejeição da opressão e da violência da era indonésia e representam afirmações
de autodeterminação e esperança. Muitos timorenses fizeram grandes sacrifícios
pessoais para votar no referendo de 1999 que levou à independência. Talvez como
reflexo disso, continua a verificar-se um elevado nível de participação nas
eleições nacionais. Desde a independência formal, em 2002, Timor-Leste realizou
duas eleições parlamentares e testemunhou uma mudança de governo ' uma
conquista significativa. O próprio Estado pode ser visto como uma declaração de
independência e de ser timorense, e as pessoas querem fazer parte dele
(McWilliam e Bexley, 2008).
De acordo com a prática dominante internacionalmente, a construção do Estado em
Timor-Leste tem sido altamente centralizada, primeiro sob a égide da ONU
(UNTAET ' Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste) e em
seguida com os governos nacionais (Chopra, 2002; Soux et al., 2007).
Respondendo à escala da destruição verificada em 1999, a comunidade
internacional e a diáspora timorense que então regressou encararam a tarefa que
tinham pela frente como nada menos do que construir uma nova nação
praticamente a partir do zero (UNDP, 2000: 92). Este desafio inspirou esforços
extraordinários por parte da elite timorense e da comunidade internacional para
a construção de um Estado moderno ' um esforço que se concentrou diretamente na
construção da estrutura administrativa (Richmond e Franks, 2008). A extensão às
áreas rurais foi dotada com poucos recursos (Chopra, 2002). A arena do Estado
era uma nova esfera para os timorenses, e o estabelecimento de instituições
governamentais viáveis tem sido importante. No entanto, construir uma nova
nação não é o mesmo que estabelecer a estrutura administrativa, sendo que a
falta de instituições estatais não é equivalente à ausência de uma comunidade
política.
Longe de constituir um vácuo político, foi o movimento de resistência
clandestina que restabeleceu inicialmente no terreno a governação local na
sequência da devastação deixada pelos militares indonésios (AGLD, 2003).
Trabalhando com as redes tradicionais, a resistência operava uma estrutura de
comando e controlo que [... era caracterizada por] uma durabilidade, coerência
e flexibilidade local eminentemente adequadas à tarefa de manter os serviços
básicos e a ordem social (ibidem: 49). Em contraste, os esforços da UNTAET
para gerir as regiões foram descritos como governação de agência: organizada
em torno dos requisitos de apresentação de relatórios da ONU e respondendo a
uma burocracia centralizada de gestão de projetos (ibidem: 53). As formas de
organização e de agência local que tinham contribuído para a sobrevivência e
resistência foram reconhecidas nos esforços de construção do Estado como
colorido cerimonial, folclore ou obstáculo para os valores liberais (Hohe,
2002a: 570). Em Díli, as administrações e programas governamentais foram
estabelecidos com referência a modelos burocráticos internacionais, mas com
pouca referência à sua capacidade de se envolver com o funcionamento das
comunidades locais. Tal como um conselheiro ministerial timorense comentou:
Foi muito bom [a ONU e a comunidade internacional] terem vindo.
[Mas...] entre as agências e instituições globais [... implementaram]
mecanismos de cortar e colar. [...] Não se pode simplesmente chegar
aqui com dinheiro [...]. Há aqui valores [...] que é preciso
respeitar. (Entrevista, Díli, 2011)
Pode, pois, não ser apenas por uma questão de recursos que as instituições do
Estado continuam a chegar pouco além da capital e que há uma profunda separação
entre a vida urbana e a rural (Toome et al., 2012). Na prática, são poucas as
estruturas estabelecidas em Timor-Leste que suportam as normas liberais ou que
apoiam a sua integração na experiência das pessoas, embora tenham alguma
circulação, em particular, mas não só, em áreas urbanas, e possam ser
defendidas com paixão. A confusão entre a ordem social liberal e a tradicional
também tem sido um desafio para Díli, uma vez que as estruturas materiais e
sociais que podem apoiar na prática as formas liberais de ordem social são
relativamente pouco desenvolvidas (Valenti, 2014), enquanto as altas taxas de
migração urbana significam que os mecanismos de parentesco são relativamente
fracos (Trindade e Castro, 2007).
A inclusão democrática nos intercâmbios que constituem a comunidade política
nacional tem sido abordada em grande parte em termos eleitorais. Os timorense
são claramente recetivos à oportunidade de participar na escolha da liderança
(Toomeet al., 2012). No entanto, as eleições nacionais continuam a ser uma
forma ténue de compromisso. As eleições por si só não associam o exercício de
liderança às preocupações, necessidades e aos valores da comunidade e não são
capazes de superar a disjunção entre as instituições locais e as instituições
burocrático-legais (Hohe, 2002b; dos Santos e da Silva, 2012). As eleições
abrem a porta a conjuntos mais amplos de intercâmbio e a formas de prestação de
contas necessárias para uma maior legitimidade substantiva. Sem estes
intercâmbios, o poder de legitimação das eleições poderia ficar mais fraco. O
governo também leva a cabo processos de consulta pública; no entanto, os
períodos de consulta são geralmente curtos e é divulgada pouca informação de
antemão (Wallis, 2012: 11). São significativos os desafios na criação de
processos inclusivos de intercâmbio que não sejam movidos por agendas políticas
específicas do governo (Tully, 1995).
Instituições como os sistemas de justiça podem trabalhar no sentido de unir a
comunidade política, mas também podem resultar fraturados. Por exemplo, de
acordo com os trâmites normais, casos criminais ou graves vão a tribunal em
Timor-Leste, enquanto os casos menos graves são tratados através dos métodos
tradicionais de gestão de conflitos. No entanto, como um Administrador de
Distrito explicou,
na realidade, o sistema de justiça não funciona, por isso temos de
usar os métodos tradicionais para ambos [crimes graves e menos
graves], e isso tem raízes profundas na sociedade ' vem dos nossos
antepassados... [e] é mais eficaz... uma vez que o sistema de justiça
é tão fraco, temos de usar o sistema tradicional. Bem... as
estatísticas da criminalidade são muito baixas... Não é porque não
haja problemas, mas porque usamos casas tradicionais para os
resolver. (Entrevista com Administrador de Distrito, 2008)
Nas conversas nos ministérios e com as agências internacionais circula uma
forma de falar de justiça, ao passo que no terreno circula outra bem diferente.
Ambas têm coisas importantes a dizer, mas falham na interação. Um efeito não
intencional desta falta de comunicação é que o intercâmbio sobre bens sociais e
políticos fundamentais ' neste caso a justiça, o que ela significa e o que as
pessoas procuram nela ' é subvertido, pelo menos entre as autoridades centrais
e outras autoridades.
No entanto, são os intercâmbios acerca de bens fundamentais como a justiça, e
não apenas as eleições, que fazem crescer a teia de relações e de linguagem
partilhada entre governados e governantes e entre formas de governação. Existe
um corpo de prática e de experimentação à volta destas interações que se
acumula ao nível dos distritos e dos sucos. Os tara bandu, acordos tradicionais
negociados no âmbito de um suco ' e que cobrem muitas questões sociais,
ecológicas e de recursos ' constituem um canal para esse tipo de explorações. A
polícia local pode fazer parte de um acordo tara bandu, mas o mesmo pode
suceder com uma empresa local ou com os representantes distritais de um
ministério. Os tara bandu são exemplos de elementos flexíveis, pragmáticos e
dinâmicos das tradições. Laura Yoder (2007) documentou a cooperação entre os
representantes distritais do ministério central responsável pela silvicultura e
as comunidades locais ' impressionante, na medida em que demonstra a aceitação
por parte dos funcionários do ministério da tomada de decisões tradicionais e
da imposição de sanções ao governo, e vice-versa ', embora existam também
outros exemplos (Cummins, no prelo; McWilliam, 2008; Palmer e de Carvalho,
2008). Ao longo do tempo poderão surgir formas mais profundas de articulação a
partir destes desenvolvimentos.
As ordens tradicionais e os sucos
Os sucos adaptaram-se ao longo dos séculos a mudanças fundamentais de regime
político. A grande diversidade dos sucos reflete a diferença cultural,
linguística e geográfica, mas também as variações regionais nesta história de
adaptação. O suco, incluindo as aldeias e as famílias, é a principal arena para
as formas tradicionais de governação. Se as instituições do governo central têm
relativamente pouca penetração nas regiões, os sucos, e as redes de clãs em que
eles em grande parte assentam, suportam a ordem social, a produção de alimentos
e o bem-estar para a maioria dos timorenses. No entanto, o governo central
também chega à população rural em grande medida através dos sucos.
Timor-Leste é na sua maioria rural, com mais de 70% da população dependente da
agricultura de subsistência num ambiente natural difícil. Nas áreas rurais, a
maioria das pessoas vive em comunidades pequenas e dispersas, como aldeias ou
localidades ainda mais pequenas, tendo por base os laços de parentesco. Apesar
de alguns serviços prestados pela igreja, governo ou outras agências, estas são
fundamentalmente comunidades de autoajuda (Grenfell et al., 2009). Os sistemas
de crenças tradicionais estão incorporados na vida da família alargada, dando-
lhes poder, durabilidade e alcance. O parentesco é estruturado através das uma
ou casas ' que estão ligadas internamente ao lugar e aos antepassados
partilhados ' e da rede de obrigações recíprocas que têm origem no casamento. A
uma inclui os familiares vivos, mas também os que morreram e os que ainda não
nasceram; inclui o mundo natural, mas também os espíritos (McWilliam, 2005).
Esta teia mística tem forma concreta na uma lulik ou uma lisan: a casa sagrada
ou secreta, onde se concentra a veneração dos antepassados e em que os lisan ou
seja, os valores, práticas e relações adequados são ensinados e onde lhes é
dada expressão (McWilliam, 2005; Tilman, 2012). Os lisan incluem a governação,
mas a governação tal como incorporada no que é apreendido como uma unidade
antiga com os antepassados, o mundo natural e o mundo invisível do espírito. Os
antepassados têm grande importância nas uma, podendo as pessoas falar com os
mortos regularmente. Eles estão onde começa a comunidade. Isto tem um
significado fundamental para uma sociedade que ainda está a lidar com a perda
da vida em larga escala.
A ordem social com base no parentesco suporta grande parte da gestão prática da
vida quotidiana. No entanto, as redes de parentesco vão muito para além dos
sucos individuais e formam a base cultural e económica para a continuidade da
sociedade timorense (McWilliam, 2005: 38; Trindade e Castro, 2007). Os anciãos
da casa desempenham tradicionalmente papéis importantes no suco, com formas
particulares de responsabilidade (para os recursos naturais, justiça, saúde,
etc.) associados a determinadas famílias (Ospina e Hohe, 2001; dos Santos e da
Silva, 2012). As famílias exercem o poder (embora não de forma igual) e os
sucos envolvem transações políticas constantes dentro e entre as aldeias do
suco. Consenso e harmonia são altamente valorizados ' a sobrevivência pode
depender deles ' mas pode haver divisões sérias no interior do suco, assim como
entre eles, associadas à ocupação indonésia, à guerra civil que a precedeu, aos
partidos políticos atuais ou a histórias mais antigas de conflito.
Tal como estes sucos tradicionais, também surgiram novos sucos constituídos
por grupos mais heterogéneos de famílias e, por vezes, por grupos em que se
misturam línguas diferentes em resultado da migração urbana ou do desalojamento
de um grande número de timorenses por parte dos militares indonésios (Thu,
2008). Durante o domínio indonésio, muitos sucos costeiros absorveram os fluxos
de migração forçada dos sucos de montanha, criando uma mistura de padrões de
suco. Nos sucos genuinamente urbanos, já não é a necessidade de se organizarem
em torno da produção de alimentos que determina as atividades. Verifica-se no
entanto um conjunto de diferenças e mudanças entre os sucos em que os padrões
tradicionais se mantêm substancialmente e aqueles que em grande parte registam
novas configurações. Em 2004, num esforço para democratizar os sucos, o governo
aprovou uma lei que instituiu eleições e estabeleceu conselhos formais nos
sucos (dos Santos e da Silva, 2012). As eleições e as novas estruturas de
liderança introduziram uma forte dinâmica na vida política destes. No entanto,
a política e os padrões de autoridade nos sucos não se converteram simplesmente
num guião que possa ser lido a partir das eleições ou que seja descrito pelas
estruturas dos sucos. É impressionante a variedade de formas através das quais
os padrões de liderança e de poder tradicionais e eleitorais interagem no
contexto da governação local. A uniformidade superficial das estruturas dos
sucos, através da qual o Estado procura tornar a vida sociopolítica nacional
legível a partir do centro, cobre uma extraordinária variedade de adaptações
e experiências (Gusmão, 2012; Scott, 1998).
Em sucos mais tradicionais, os ciclos agrícolas, culturais e de parentesco
moldam bastante a ordem social (McWilliam, 2008). Ser eleito para um cargo nem
sempre garante autoridade nestes contextos, e em alguns sucos os líderes
locais sem antecedentes de liurai [autoridade tradicional] tiveram dificuldade
em manter a sua autoridade no exercício das suas atividades quotidianas
(Pereira e Koten, 2012: 227). Este é um desafio também enfrentado pelas
mulheres eleitas para os Conselhos de Suco. Embora não seja comum, as mulheres
podem deter funções de liderança substanciais, incluindo as de chefia do suco,
mas essa posição deriva de outras fontes, seja a ascendência familiar ou a
reputação obtida durante a resistência (Cummins, 2010). No entanto, os sucos
também são centros administrativos para a distribuição de serviços e projetos '
nem todas as atividades fazem parte dos ciclos de vida tradicionais dos sucos.
Novas atividades podem abrir caminho a novas formas de liderança, como as que
são proporcionadas pela eleição dos dirigentes, enquanto os novos sucos colocam
novas questões de governação.
No entanto, a liderança eleita não está necessariamente associada a níveis mais
elevados de participação ' nalgumas aldeias a liderança eleita foi considerada
como tendo uma participação reduzida (Pereira e Koten, 2012; Tilman, 2012). A
visão de que o Chefe de Suco já não trabalha para toda a comunidade ou que já
não é responsável perante ela, mas que distribui os recursos apenas pelos seus
eleitores (ou familiares) contribuiu para a falta de participação e cooperação
(entrevistas de 2011; Cummins, no prelo). A concorrência entre partidos (que já
não é permitida de forma direta a nível dos sucos) também foi muitas vezes um
fator de divisão (Gusmão, 2012).
Estas solicitações e circunstâncias concorrentes geram compromissos
consideravelmente diferentes ' embora o compromisso nem sempre seja alcançado.
Um pequeno número de comunidades elege simplesmente o seu liurai tradicional
como Chefe de Suco (por exemplo, em Viqueque e Oecussi). No entanto, é mais
comum embrulhar o velho sistema no novo ' para as autoridades tradicionais
identificarem líderes que venham a trabalhar em estreita colaboração com eles,
que são então confirmados através de um processo de eleição (dos Santos e da
Silva, 2012; McWilliam, 2008). As autoridades tradicionais podem simplesmente
ungir a escolha da comunidade, entregando o poder formalmente ao chefe
eleito, e colaborando com base em diferentes formas de legitimidade. Esta ação
não constitui um gesto formal para uma sociedade secular mas, sim, uma
concessão ritual de autoridade cheia de significado para a comunidade (Gusmão,
2012). No suco urbano de Bairopite (em Díli), em comparação, a tradição não
desempenha qualquer papel na escolha do chefe, embora a uma lisan dos
habitantes originais da zona ainda seja chamada a desempenhar um papel no
[...] desenvolvimento, na paz e na estabilidade do suco (Tilman, 2012: 201).
A independência em Timor-Leste desencadeou dois esforços extraordinários para
dar vida à autodeterminação. Um tem sido a construção das estruturas de governo
através das quais Timor-Leste afirma a sua soberania internacionalmente
reconhecida; o outro tem sido o ressurgimento de dimensões mais visíveis da
tradição ' a reconstrução das uma lulike a negociação dos tara bandu, entre
outras. Durante a ocupação indonésia, muitos lugares de importância cultural e
cosmológica foram destruídas pelas tropas indonésias e os principais aspetos da
vida comunitária foram reprimidos. Com a independência, os aspetos fundamentais
da vida tradicional têm sido renovados. Através destas rotas desafiadoramente
diferentes, os timorenses têm vindo a reclamar o controlo do seu próprio espaço
político. O ressurgimento das leis e dos costumes tradicionais não constitui
um retrocesso'... mas o reconhecimento da adaptação e da dinâmica em curso que
informam os processos tradicionais de elaboração das leis que estão presentes
na vida quotidiana das pessoas (Palmer, 2007: 36).
A ligação poderosa entre a comunidade, a identidade cultural e o impulso para a
autodeterminação pode ser ilustrado através dos comentários de um entrevistado,
um empresário de um centro provincial:
Precisamos de manter [as práticas tradicionais] ' aliás, temos de as
manter. Caso contrário, o que é a independência? O que é que
defendíamos antes e o que é que defendemos agora? Na nossa luta
defendemos a nossa terra, a nossa cultura, as nossas florestas; se
agora não defendermos a nossa cultura, a nossa independência não tem
raízes, não tem alicerces. Muitas pessoas chegam com os seus costumes
e ideias, mas nós também temos costumes e ideias. [...] Se [...]
perdermos as nossas raízes e o nosso caminho, teremos perdido a nossa
identidade [...]. Para que é que vencemos a luta? Por causa da nossa
forte estrutura de [parentesco] [...], não digo que temos de
glorificar tudo isso, mas temos de o reconhecer. Atualmente, estamos
a ignorá-lo [...] Agora, os líderes modernos do governo usam os
líderes tradicionais ao nível das bases para ganhar poder. Quando
ganham poder, acabou-se [não se envolvem mais com eles]. (Entrevista,
Same, 2008)
Construindo o Estado
A coexistência de diferentes lógicas de governação dá forma a muitos Estados.
Trata-se de um fator fundamental na experiência pós-colonial e constitui o
contexto de muito desenvolvimento (Baker e Scheye, 2007; Boege et al., 2009;
Ellis e ter Haar, 2004). Apesar disso, a história da descolonização oferece
pouco em termos de experiência positiva na negociação construtiva dessas
diferenças. Uma das razões para essa falta de experiência positiva é a forma
como essas interações foram definidas, não só nas políticas e práticas e nas
abordagens mais duradouras à ciência política, mas no imaginário popular dentro
e fora do Norte global.
Em termos gerais, o que vemos ou não vemos no Sul global tem sido
profundamente influenciado por uma polarização altamente normativa e reificada
da tradição e da modernidade. Nas formas mais fortes e difundidas dessa
dicotomia, a tradição é tida como estática, retrógrada, irracional e violenta,
enquanto a modernidade é identificada com a razão, o progresso e a ordem
(Fukuyama, 2011; Smith, 2005; Tully, 1995). Numa narrativa mítica do progresso,
a tradição torna-se, por definição, o passado obscuro deixado para trás. O
ponto de chegada da narrativa política é o Estado, particularmente o Estado
liberal moderno, e a dicotomia entre a tradição irracional e a modernidade
esclarecida está incorporada nas representações populares do Estado. Não há
aqui nenhuma sugestão de que esta dicotomia deva ser virada do avesso, de modo
a que a tradição passe a ser vista como positiva e o Estado moderno como
negativo. Pelo contrário, o que se rejeita é a presunção normativa automática,
as categorias essencializadas e a trajetória narrativa naturalizada das trevas
para a luz. As estruturas e os atos justificados pela tradição podem ser
violentos e opressivos, assim como o podem ser os que são identificados com a
modernidade (Richards, 2005). Também não se trata de uma posição relativista
' podem ter-se políticas, critérios e métodos para julgar e lidar com as
práticas, e as comunidades precisam de os desenvolver, mas é preciso que isso
seja feito com base no reconhecimento e no envolvimento em diferentes
cosmologias morais de governação (Brown, 2002; Tully, 1995).
Esta polaridade está profundamente enraizada no nosso entendimento da
comunidade política e do Estado, formando atitudes e ferramentas. Os
entendimentos dominantes da política estão fundados no Estado, e fornecem
poucos meios para pensar seriamente em formas alternativas de governação,
enquanto o Estado é condição sine qua non da democracia, dos direitos humanos,
da segurança e do bem-estar. Como refere um texto influente na construção da
paz, a construção de uma autoridade central do Estado é o passo fundamental na
sequência de conflitos violentos, uma vez que, na ausência do primado da lei
aplicado por uma autoridade central, [...] a coexistência pacífica [...] iria
desintegrar-se num estado de selvajaria sem lei' (Paris, 2004: 49). Na mesma
linha, num artigo que integra o Failed States Index 2013, afirma-se que para a
segurança humana sustentável, o processo só termina com a construção do Estado
(Haken e Taft, 2013: 23).
Por isso, os esforços de desenvolvimento e de construção da paz, sejam os dos
doadores ou os das capitais pós-coloniais, têm ignorado repetidamente as
abordagens à governação de base local, não as considerando relevantes para a
comunidade política moderna, ou classificando-as como ameaças ao Estado que é
necessário erradicar (Fukuyama, 2011). Em alternativa os Estados tentam
incorporar, mas também instrumentalizar, formas locais de governação, prestando
pouca atenção aos efeitos que essa incorporação pode ter na governação
tradicional ou em processos e instituições estatais. Nesta abordagem, as
instituições do Estado constituem o domínio prevalecente e global da política e
do bem público, enquanto a governação tradicional é encarada como o domínio da
sociedade (maioritariamente rural) ' familiar, de pequena escala e paroquial
(Shaw e Waldorf, 2010). Esta narrativa transmite uma aspiração, mas pode
obscurecer mais do que revela. Não fornece uma forma de pensar seriamente sobre
as complexidades da vida política através da descontinuidade radical: sobre o
jogo do poder, a distribuição de recursos, bem como a determinação de valores
relevantes e formas partilhadas de prestação de contas. Até agora, não há
nenhuma forma partilhada de falar sobre estas interações, dos contextos em que
surgem e das dinâmicas políticas e institucionais que geram, que de algum modo
se adeque aos efeitos que geram.
Para os doadores, mesmo quando o papel da governação tradicional na prestação
de bens sociais é reconhecido, o envolvimento com corpos não estatais tende a
ser visto como demasiado problemático. Para o Department for International
Development (DFID), por exemplo, os desafios do envolvimento giram em torno do
caráter iliberal de alguns atores informais e da natureza burocrático-liberal
do DFID, o que o predispõe para certas formas de envolvimento que privilegiam o
Estado e, simultaneamente, problematizam atores informais, incluindo os chefes
(Denney, 2013: 6). No entanto, o resultado dessas abordagens é afastar as
questões de saber se, como e em que ordem a segurança, a justiça, a
responsabilização ou a participação são prestadas e por quem, e não explorar o
potencial de envolvimento construtivo (Baker e Scheye, 2007; dos Santos e da
Silva, 2012).
O trabalho tem-se baseado na assunção de que as instituições do Estado são as
fontes de ordem política. Em resultado disso, a comunidade internacional tem
enfatizado o reforço ou a transferência para os Estados e para as eleições da
arquitetura institucional, encarada como fundamental (Paris, 2004; Richmond,
2005). De acordo com este entendimento (globalmente weberiano), o Estado é
identificado com as instituições do governo e da lei, que são tidas como
distintas da sociedade, mas que a ordenam. Como Tanje Hohe comentou em relação
à missão inicial da ONU em Timor-Leste, a Administração de Transição construiu
instituições com base no pressuposto de que não havia conceitos e ideias fortes
a nível local, e que havia apenas que ensinar' democracia à população (Hohe,
2002a: 570). Seja qual for a aplicabilidade de tais abordagens para os Estados
em que as instituições governamentais e societais já partilham uma cultura
política, elas são inadequadas para questões relacionadas com a formação do
Estado e da nação, em particular perante diferenças profundas.
Uma comunidade política pode antes ser entendida como um efeito das relações
entre as instituições do Estado, as instituições da sociedade e as ordens
sociais (Cudworthet al., 2007). Conforme refere Marc Galanter, comentando sobre
a transferência de instituições legais, assim como a saúde não se encontra
sobretudo nos hospitais nem o conhecimento nas escolas, também a justiça não se
encontra sobretudo nas instituições oficiais que aplicam a justiça (Galanter,
1981: 3). Pelo contrário, são as relações entre a arquitetura jurídica e as
instituições, culturas, tradições, costumes e práticas em que essa
arquitetura opera que estabelecem uma forma funcional de justiça (Krygier e
Mason, 2008: 5). As instituições políticas, económicas e legais formais
trabalham em grande parte porque estão enraizadas em redes de práticas sociais,
que, por sua vez, as instituições ajudam a regular. Reduzir o Estado às
principais instituições e a formação do Estado à transferência institucional
significa que pouca atenção é dada à forma como essas instituições podem estar
relacionadas com o seu contexto sociopolítico ou construir relacionamentos com
entidades e práticas já existentes. Isso encoraja a centralização do poder e
dos recursos na capital, e processos estatais que têm poucas razões para olhar
à sua volta. Embora o quadro genérico de uma instituição possa, de facto, ser
importado, os processos e as relações através dos quais se envolve com o seu
contexto ' através dos quais se remodela e é remodelado por entendimentos
locais de comunidade (ou da saúde ou da justiça, etc.) ou é levado pela
dinâmica política existente ' são no entanto fundamentais para o tipo de
trabalho que a instituição irá realizar e para os efeitos que virá a ter
(Boegeet al., 2009).
Envolvimento e relacionamento
Trabalhar em diferentes lógicas de governação e de construção do poder gera
desafios específicos à qualidade do intercâmbio e das relações entre os membros
da comunidade, os decisores e as instituições ' até que ponto são as pessoas
capazes de articular as suas preocupações e necessidades ou explicar as
decisões, quem e o que é que é ouvido ou não, o que é visto e o que se torna
invisível, quem é capaz de fazer parte do intercâmbio e quem não é. O governo
eficaz e legítimo, e certamente o governo participativo, requer um tipo de
linguagem comum por parte da comunidade política. Serem incluídos e capazes
de participar na conversa sobre a ordem política ' metaforicamente ter uma
palavra a dizer ou, mais importante, ser ouvido ' é o que os timorenses
poderiam esperar da independência: autodeterminação e democracia. Para fazer
parte é necessário ser capaz de perceber a ordem e a linguagem dominante no
seio da comunidade política. No entanto, expandir a conversa política constitui
um desafio muito particular quando existem diferentes linguagens sobre aquilo
que devemos uns aos outros. Como James Tully afirmou sobre as relações entre os
indígenas canadianos e os colonos, a vida política participativa em regiões
marcadas por construções profundamente diferentes de comunidade política exige
um diálogo consciente entre os diferentes mundos da vida (Connolly, 2000;
Tully, 1995). Neste contexto, o envolvimento exige muito mais do que os
esforços habituais da consulta popular, em que as agências do Estado geralmente
ouvem os contributos apenas de acordo com os seus próprios quadros de
referência (Brown, 2002; Tully, 1995). Internacionalmente, há uma longa
história de marginalização e de omissão sistémica das formas endogâmicas de
base comunitária da ordem social por parte das estruturas estatais (Smith,
2005).
No entanto, não são só a participação e a inclusão que exigem um envolvimento
consciente. A interseção das lógicas divergentes de prestação de contas e
obrigação está diretamente relacionada com questões de corrupção; diferentes
expetativas de legitimidade e autoridade afetam o exercício da liderança;
abordagens à ordem política que excluem largos setores da população incentivam
a divisão, o empobrecimento, a insegurança e a corrupção, e assim por diante
(Brown, 2009). O entrelaçamento de lógicas de governação molda os tipos de
práticas que predominam, seja formalmente, seja informalmente ou mais
profundamente escondidos da vista. Muitas vezes não é claro de antemão o modo
como essas lógicas afetam e remodelam na prática a função de cada um (Cummins,
2010). O esforço para substituir as formas tradicionais de tomada de decisão e
prestação de contas por abordagens burocrático-legais, por exemplo, pode
contribuir para a erosão da tomada de decisão tradicional, sem fornecer
alternativas com autoridade genuína, localmente legítimas, ou bem compreendidas
(Ellis e ter Haar, 2004; Pereira e Koten, 2012). As formas burocrático-legais
de governação e as formas locais de governação também geram as suas próprias
formas de exclusão, que são tão propensas a agravar essa exclusão como a
neutralizar-se uma à outra (Cummins, 2010). Ou seja, está a tomar forma uma
ecologia das relações que não é descrita nem pelos termos de referência
institucionais liberais nem pelos termos de referência tradicionais. As
dinâmicas de poder que emergem desta ecologia das relações irão determinar quem
e o que se encontra habilitado ou excluído em diferentes áreas de atividade. O
facto de estas interações serem exploradas e negociadas através de zonas de
sombra não reconhecidas ou através de formas mais acessíveis de intercâmbio
será de importância crucial para a natureza da comunidade política em Timor-
Leste.
Este tipo de diálogo entre a diferença não se coaduna facilmente com os
processos e exigências de segurança da maioria das operações do governo
central. É um desafio profundo para as instituições do Estado entrar em
intercâmbios nos dois sentidos, ou em conversas de improviso que implicam
ouvir para além dos limites das estruturas normalizadas, em vez de entregar
mensagens a populações supostamente submissas (Duffield, 2007). No entanto, é
provável que o custo venha a ser grande se não se perseverar neste trabalho
demorado e incerto. É que em Timor-Leste grande parte da justiça, do bem-estar
social e da segurança alimentar de que o Estado depende tem por base não as
instituições de governo, mas em grande parte as formas tradicionais de
autoridade (Grenfell et al., 2009). A interface do próprio governo nacional de
Timor-Leste com as ordens sociais tradicionais representa uma nova era
extremamente importante. Após gerações de colonização e ocupação, os timorenses
podem exigir um governo que esteja orientado para eles e podem esperar um
intercâmbio político mais genuíno.
Construir um conjunto mais substancial e reconhecido de relações em torno, por
exemplo, da forma como a justiça poderá funcionar, da segurança alimentar, ou
da descentralização implica um envolvimento muito maior. A segurança alimentar
ou a justiça não são serviços que existam no vazio, fazem parte de contextos de
valor e de significado intersubjetivo, e vão à raiz das expetativas de cada
pessoa; envolvem debates que fazem parte do que constitui o intercâmbio
democrático sobre o que é necessário, o que é significativo e o que é
exequível.
Conclusão
Grande parte do trauma político nas zonas pós-coloniais pode ser causado no
mundo das sombras que inclui as estruturas de poder do Estado e a realidade das
comunidades. Pensar na comunidade política do Estado poderia, em vez disso,
começar pelas redes de relações que ligam as ordens sociais, as instituições e
as normas, das quais as instituições do Estado constituem uma parte. Essa
mudança de perspetiva evidencia uma gama diferente de perguntas e ênfases.
Coloca em primeiro plano a necessidade de prestar atenção às realidades das
comunidades e de um envolvimento sério com elas. Enfatiza a construção de uma
linguagem comum por parte da comunidade política no contexto da negociação em
torno de valores, práticas e bens sociais e políticos. Para Timor-Leste,
significa levar os sucos a sério, não apenas como destinatários de serviços ou
de um projeto de construção do Estado, mas como centrais para a comunidade
política, e isso significa prestar atenção à governação tradicional. Como José
Magno e António Coa referiram, a democracia assenta na comunidade e as
comunidades vivem dentro da sua cultura (2012: 173).
A governação tradicional não é liberalismo incipiente; levar a sério a tradição
pode parecer implicar um enfraquecimento dos valores, como os direitos humanos,
que muitos procuram num Estado liberal. No entanto, a experiência indica que as
práticas tradicionais, embora conservadoras, não são estáticas, podendo ser
criativas e adaptáveis. Algumas práticas tradicionais podem e devem ser
desafiadas através de esforços para trabalhar contra a violência e a
marginalização. No entanto, a defesa dos direitos humanos também inclui o
reconhecimento dos direitos indígenas e coletivos, e por isso implica entrar
nos intercâmbios demorados e difíceis que procuram trabalhar contra a violência
ao mesmo tempo que se envolvem seriamente com as normas, práticas e
circunstâncias locais (Brown, 2002; Tully, 1995). É importante não romantizar a
vida tradicional, mas é igualmente importante não idealizar as instituições
liberais (Brown, 1995). As instituições do Estado também geram violência e
marginalização ' todos os participantes podem ter algo a aprender com os
outros.
Uma melhor compreensão da vida do suco poderia significar uma melhor previsão
dos impactos da legislação, uma melhor orientação dos serviços e projetos, e
uma maior atenção àquilo que as pessoas têm a dizer. As ligações já existentes
poderiam ser reconhecidas e valorizadas, para que possam ser revistas e para
que se possa aprender e construir a partir delas, sem que sejam estritamente
geridas de forma centralizada. Isto poderia abrir um processo de formação do
Estado a partir da base. Construir uma linguagem partilhada da comunidade
política não significa que não haja discordâncias sérias, nem que as diferenças
efetivas sejam superadas ou que se consiga partilhar todos os aspetos da forma
como a comunidade política é entendida. Nem o reconhecimento do papel da
governação tradicional na ordem e no sentido coletivo exige a integração da
tradição no governo. Exige, sim, a elaboração ao longo do tempo de processos
mutuamente inteligíveis para o envolvimento aberto com as comunidades e hábitos
de apoio de diálogo e de escuta. O processo de intercâmbio pode ele próprio
mudar os participantes, de forma subtil ou mais radical. Tais hábitos já
existem em Timor-Leste, desenvolvidos ao longo de todo o espectro da vida
política, mas a sua função e importância não é encarada nos termos da
construção do Estado internacional, e por isso não é valorizada ou
desenvolvida. No entanto, esses intercâmbios são essenciais para os caminhos
lentos e confusos, mas produtivos através dos quais as populações experimentam
elas próprias a partilha na comunidade política e pelos quais as estruturas e
os mecanismos que permitem e gerem a evolução dessa comunidade evoluem. A
governação democrática, responsável e voltada para o bem-estar das pessoas pode
situar-se precisamente aqui, no modo como essas explorações e negociações tomam
forma.