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EuPTHUAp2182-74352014000300004

EuPTHUAp2182-74352014000300004

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN2182-7435
ano2014
Issue0003
Article number00004

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Cidadania e empoderamento local em contextos de consolidação da paz

Introdução Nos últimos vinte anos, as agendas internacionais da paz e do desenvolvimento em contextos de pós-guerra têm progressivamente incorporado a preocupação com a inclusão dos agentes locais na definição e implementação das políticas que irão conformar as bases do novo Estado. Esta ênfase no local (local turn) (Mac Ginty e Richmond, 2013) pode ser percebida de duas formas: de um lado, observa-se a mudança no discurso e em algumas práticas das agências intervenientes, utilizados como mecanismos de legitimação destas intervenções. De outro lado, observa-se a crítica a estas práticas por parte de quem as exerce e de académicos, particularmente no que toca à sua verticalidade.

O presente artigo discute esta mudança, analisando criticamente o discurso que a sustenta e suas contradições. Assim, analisa, primeiramente, a mudança terminológica no discurso internacional, enfatizando dois conceitos ' apropriação local (ownership) e empoderamento(empowerment). Em seguida, discute a ausência da cidadania nestes discursos, face ao seu papel na (re)construção do Estado. Neste sentido, o artigo propõe o resgate da cidadania como elemento fundamentalmente ligado ao empoderamento e necessário para a sustentabilidade dos processos de consolidação da paz (peacebuilding) a longo prazo.

O argumento apresentado é que a ênfase local do discurso oficial tem sido limitada pela forma como os conceitos são definidos, enfatizando o processo participativo e a criação de ‘espaços convidados', previamente definidos pelos atores intervenientes e com efeito reduzido no desenvolvimento da cidadania.

Apesar disto, esta mudança discursiva também oferece uma oportunidade para repensar estes espaços, tendo como ponto de partida os próprios conceitos de apropriaçãoe empoderamento local. Ao repensar estes conceitos, e ao incluir a preocupação com questões de poder (inclusivamente no âmbito interno) na sua discussão, permite uma expansão do entendimento dos espaços participativos, de forma a incluir também ‘espaços reivindicados'. Esta perspetiva expandida, ao incluir questões de poder, oferece um cenário mais realista sobre a geometria do conflito e da paz, ampliando assim a compreensão acerca dos espaços de intervenção e suas possibilidades de sucesso, bem como retomando a centralidade da cidadania nestes cenários.

1. O ‘local' na agenda da consolidação da paz Desde meados da década de 1990, a preocupação com a legitimidade das intervenções internacionais ' seja no âmbito de desenvolvimento, seja no âmbito das intervenções de paz ' foi-se relacionando progressivamente com a dimensão da aceitação e inclusão do nível ‘local' na decisão e implementação de políticas (Ramsbothamet al., 2011; Donais, 2012; Richmond, 2012). Termos como apropriação, empoderamentoe participaçãoentraram nos discursos de decisores políticos e académicos, consolidando uma nova forma de olhar para o local na agenda da construção da paz (Mac Ginty e Richmond, 2013). Vários fatores contribuíram para esta alteração. No âmbito da definição de políticas da agenda de desenvolvimento, o reconhecimento do fracasso dos impositivos planos de ajustamento estrutural, desenhados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM), em vários países em desenvolvimento na década de 1980, e dos seus efeitos sociais negativos, foi um dos elementos que chamou a atenção para a revisão destes mecanismos (Friedmann, 1992; Rowlands, 1997). Ao mesmo tempo, a experiência com práticas e metodologias participativas, influenciada por agendas mais radicais e inspiradas por movimentos sociais e populares (como o movimento feminista, a educação popular na América Latina) também influenciaram esta revisão e a progressiva incorporação de abordagens ‘de baixo para cima' (bottom-up) nas práticas de desenvolvimento (Chambers, 1983; Friedmann, 1992; Cornwall e Brock, 2005; FRIDE, 2006; Pieterse, 2010).

No âmbito da agenda de segurança, estes questionamentos surgiram um pouco mais tarde, seguindo em grande medida a tendência observada na esfera do desenvolvimento. De um lado, houve a reavaliação de inúmeras operações de paz e das respetivas limitações na promoção de uma situação de paz sustentável em países como a Somália, o Iraque e Angola (Krause e Jütersonke, 2006; Duffield, 2007; Donais, 2009; Francis, 2010). De outro lado, a emergente conexão entre as agendas de segurança e desenvolvimento, espelhadas nas políticas de consolidação da paz (Duffield, 2001), bem como o trabalho de vários atores com mecanismos de resolução de conflitos localmente mais integrados, resultaram na importação de conceitos do desenvolvimento para a agenda de paz e segurança, incluindo o conceito de apropriação local e empoderamento (Lederach, 1997; Francis, 2010; Ramsbothamet al., 2011; Richmond, 2011; Donais, 2012; Richmond, 2012).

Na prática, a inclusão destes conceitos e suas implicações para a definição de políticas constituiu uma resposta a vozes mais críticas e um esforço no sentido de dar sustentabilidade às reformas (Paris e Sisk, 2009; Mac Ginty, 2010). Com a prioridade dada à (re)construção de Estados, reforça-se uma visão do Estado como precondição necessária à materialização da paz liberal (Paris, 2004; Brahimi, 2007; Call e Cousens, 2008; Ghani e Lockhart, 2008; WB, 2011), assente numa perspetiva técnica sobre a soberania estatal, definida a partir do espaço internacional e concentrada essencialmente em aspetos performativos, que radicalizaram uma abstração dos contextos locais (Richmond, 2004; Chandler, 2005; Bickerton, 2007; Richmond, 2008).1 A priori, a inclusão do local trouxe um potencial significativo de revisão das dinâmicas de reconstrução do Estado. Porém, a forma como o discurso foi construído e o desfasamento entre discurso e prática reduziram significativamente este potencial, uma vez que os termos foram definidos e utilizados para manter a compatibilidade desta mudança com o não questionamento de questões fundamentais, consideradas causas do subdesenvolvimento e da eclosão e perpetuação de conflitos violentos.

Neste sentido, é interessante notar a própria escolha e utilização dos termos.

Na agenda de consolidação da paz, o termo predominante é apropriação local que, de maneira geral, se entende como o grau de controlo que atores nacionais possuem sobre processos políticos internos (Donais, 2012: 1). No caso de contextos pós-guerra, indica o grau de envolvimento dos atores locais nos processos de redesenho e reconstrução das instituições (Donais, 2009; Narten, 2009). Nestes contextos a apropriação local significa que, não obstante a intervenção externa, o ‘dono' do processo é/deve ser o ‘local' ou ‘nacional', para assegurar a sustentabilidade dos processos (Ban Ki-moon, 2009; Narten, 2009; UN-PSO, 2011). Isto tem duas implicações distintas. De um lado, garante a inclusão de uma parte da população local nos processos em questão, embora os parceiros locais sejam muitas vezes identificados pelos atores internacionais (Reich, 2006; Narten, 2009; Pouligny, 2009). Por outro lado, implica a responsabilização dos atores locais pelas reformas.

Alguns académicos têm criticado o discurso sobre apropriação local justamente por ser uma forma de eximir a responsabilidade internacional perante políticas que, contudo, são desenhadas externamente (Chandler, 2006). Aspeto que se reforça, aliás, com a compreensão de que os espaços de inclusão são de maneira geral predefinidos e concorrem com a consolidação de uma agenda eminentemente neoliberal, centrada na democracia, nos direitos humanos e no mercado (Chandler, 2006; Richmond, 2012). Ou seja, na prática, este discurso está longe de refletir o controlo local da agenda, aproximando-se, no máximo, de uma parceria entre os atores externos e os nacionais/locais (Pouligny, 2009; Francis, 2010; Donais, 2012; Richmond, 2012).

Além disso, a crítica perpassa a questão relativa a quem se inclui nesta parceria. Aqui a separação entre ‘local' e ‘nacional' é importante, pois o argumento ressalta o papel das elites nestes espaços participativos e não necessariamente dos ‘locais', como grupos mais endógenos à margem do sistema, ou mesmo que resistem ao estilo de mudanças exigidos (Pouligny, 2009; Richmond, 2012).

Ao contrário, o conceito de empoderamento, mais em voga na agenda de desenvolvimento, é marcadamente voltado para o âmbito local. Devido às suas raízes mais radicais, inspiradas em movimentos populares de carácter contestatário (Cornwall e Brock, 2005; Batliwala, 2007; Luttrellet al., 2009), o termo empoderamento está geralmente associado ao nível mais comunitário e a grupos que estão à margem do poder (Kabeer, 2001; Eybenet al., 2008). Esta origem fez com que, nos anos 1960 e 1970, o conceito tivesse uma conotação muito mais radical, pois representava uma forma de contestação de determinadas estruturas de poder existentes (seja pela perspetiva patriarcal, de raça ou classe). Neste sentido, a incorporação do conceito na agenda oficial de desenvolvimento é vista como fruto desta pressão organizada dos movimentos sociais em relação às instituições internacionais (Friedmann, 1992; Cornwall e Brock, 2005). Ao mesmo tempo, e de forma paradoxal, a incorporação do empoderamento na agenda levou a que a sua aceção contestatária se tenha transformado num instrumento legitimador de políticas (Friedmann, 1992; Cornwall e Brock, 2005; Batliwala, 2007). Assim, e da forma como é interpretado hoje pelas grandes agências de desenvolvimento, o empoderamento está primordialmente associado à ‘construção de capacidades' (capacity-building) e a processos participativos.

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por exemplo, o empoderamento está vagamente associado a participação: a possibilidade de que todas as pessoas, mesmo pobres e marginalizadas, sejam ouvidas e possam participar de forma significativa dos debates que afetam as suas vidas (UNDP, 2010: 115). De forma mais geral, o PNUD entende o empoderamento como algo diretamente ligado à promoção da boa governação (democracia, direitos humanos, etc.) e nesse sentido, assim como o discurso sobre apropriação local, propaga um determinado modelo ligado à perspetiva ocidental de democracia liberal e não à contestação das estruturas de poder.

O mesmo se aplica no caso do BM que, no Empowerment and Poverty Reduction Sourcebook, publicado em 2002, define empoderamento como a expansão dos recursos e capacidades das pessoas pobres para participar em, negociar com, influenciar e garantir a prestação de contas das instituições que afetam as suas vidas (Narayan, 2002: xviii). Desta forma, a promoção do empoderamento como capacitação está fundamentalmente ligada a uma série de reformas institucionais vistas como necessárias para a redução da pobreza e que se baseiam na visão dicotómica Estado-sociedade, onde o primeiro deve abrir mais espaços representativos e, assim, melhorar a prestação de contas, transparência e o Estado de direito. Esta mudança inclui ainda a criação de espaço para o setor privado.

Apesar da existência de outras definições de empoderamento, incluindo algumas mais radicais, ligadas a determinadas ONG (ver, por exemplo, Scrutton e Luttrell, 2007), torna-se evidente no discurso dominante uma visão muito mais restrita em relação ao poder que se quer promover. De facto, ao enfatizar a ideia de poder como ‘capacidade', duas coisas acontecem de forma automática.

Primeiro, fica estabelecida a ideia de que existe ‘ausência de capacidade' (ou capacidades melhores que outras) e, por isso, alguém (muito provavelmente o agente externo) terá que incutir/ transferir para o outro tais capacidades.

Segundo, o discurso esquiva-se da problemática mais tradicional no seio do debate sobre poder ' as questões de conflito e dominação ' que estão na base das relações sociais, especialmente em contextos de guerra e imediato de pós- guerra.

Assim, parte da crítica sobre os discursos de apropriação local e empoderamento fundamentam-se precisamente na utilização destes termos como instrumentos de legitimação de políticas e mecanismos de disfarce das relações de poder que continuam permeando a relação entre os agentes internacionais e os nacionais/ locais. Este argumento parece fazer ainda mais sentido quando observamos a ausência marcada de um conceito fundamental neste debate ' o conceito de cidadania.

2. Cidadania e construção do Estado Esta proeminência dada ao local através da promoção do empoderamento e de apropriação localnas reformas desenhadas internacionalmente visa afetar a relação Estado-sociedade e, fundamentalmente, a forma como os atores internacionais (não) podem/devem interferir nesta mesma relação, para que exista uma legitimidade local capaz de garantir a sustentabilidade das reformas promovidas (Ban Ki-moon, 2009; OECD, 2010; UNDP, 2012). A afirmação destes conceitos como matriz referencial na agenda internacional de (re)construção de Estados e da relação Estado-sociedade necessária parece, assim, substituir o conceito de cidadania, o significante, num quadro político liberal, das relações entre Estado-sociedade e fonte de legitimidade dos atores e projetos de governação (Migdal, 2004; Borges, 2014). De facto, a utilização destes conceitos parece silenciar a discussão em torno da condição de cidadania quando o objeto ' o Estado ' e a referência normativa das ações internacionais ' a paz assente na democracia liberal e economia de mercado ' parecem reforçar a sua pertinência.

A abordagem liberal e a sua proposta de paz democrática partem de uma relação constitutiva de identificação/reconhecimento entre Estado e sociedade, forjada pela demarcação simultaneamente territorial e social segundo a qual o Estado é reconhecido como agente de governação e os indivíduos são reconhecidos como sujeitos de direitos e parte da comunidade política representada pelo Estado (Migdal, 2001). Estado e cidadania aparecem, assim, como conceitos indissociáveis num quadro liberal e é esta indissociabilidade, mediada pelo regime de democracia representativa, que garante aos indivíduos um estatuto legal e político que, por sua vez, assegura o empoderamento individual e a concretização do autogoverno da comunidade política, expressos através dos direitos e da participação (Migdal, 2001; Chandler, 2012).

Não obstante as transformações que o conceito e a visão liberal de cidadania sofreram, a relação proposta entre cidadãos e o Estado democrático, fundamentada numa lógica contratual de direitos e deveres entre as partes, está na base do projeto de paz liberal que, desde o início da década de 1990, tem vindo a ser articulado em espaços de pós-guerra. As ações de consolidação da paz promoveram transições democráticas, esperando que a liberalização política criasse um contrato social capaz de reconciliar Estado e sociedade (Held, 1995; Paris, 2004; Pouligny, 2006). A cidadania implicava afirmar o poder dos indivíduos pelos direitos e limitar a ação dos Estados, considerados responsáveis pelos conflitos violentos. A agenda internacional de (re)construção de Estadosconservou este enunciado político, mas, na resposta que articulou, radicalizou uma abstração dos contextos locais apontada aos esforços de democratização.

Ainda que a ênfase colocada no local tenha procurado inverter esta abstração trazendo a relação Estado-sociedade para o centro da discussão, este processo não se traduziu na recuperação da lógica contratual e não centrou o debate no conceito de cidadania (Eyben e Ladbury, 2006). Pelo contrário, as estratégias internacionais de promoção da apropriação local e empoderamento procuraram afetar a relação Estado-sociedade sem discutir o conceito de cidadania (Borges, 2014). Porém, estes conceitos e sua articulação têm implicações importantes para a condição da cidadania no pós-guerra. Ou seja, importa mapear esta ausência e compreender como os conceitos articulados em alternativa afetam o conceito e propõem um entendimento específico de cidadania.

De facto, apropriação local e empoderamento partilham uma agenda de capacitação dos sujeitos que, embora procure concretizar a ênfase local nas práticas de (re)construção de Estados, reforça a posição dos atores internacionais na legitimação do Estado e a dependência das dinâmicas políticas locais em relação às ações internacionais (Hughes e Pupavac, 2005; Hameiri, 2009; Chandler, 2010). Esta agenda de capacitação materializa-se, essencialmente, em espaços de participação criados com o apoio dos atores internacionais, onde os sujeitos e atores locais são convidados a participar (Cornwall, 2002). A apropriação local e o empoderamento ficam, assim, ligados a uma agenda internacional e dependentes de ações adicionais que garantam a capacitação e socialização dos sujeitos nos espaços e regras (Hughes e Pupavac, 2005; Pouligny, 2005; Chesterman, 2007; Pouligny, 2009). Nestes espaços, a aceitação das reformas gera empoderamento individual: ou seja, a participação que decorre nestes espaços é condicionada e instrumental.

Assim, se as ações de (re)construção de Estados reverteram a relação constitutiva de identificação/reconhecimento entre Estado e cidadãos, a ênfase no local, com empoderamento e apropriação induzidos e direcionados, aprofundou esta tendência, afirmando a internacionalização de processos de legitimação do Estado onde a cidadania surge fragilizada como conceito político central e dependente de uma capacitação prévia (Richmond e Franks, 2009; Chandler, 2010).

Mais importante, a relação Estado-sociedade apresenta-se como uma adaptação necessária que decorre do entendimento do Estado como precondição ao projeto de paz liberal (Mac Ginty, 2010; Borges, 2014).

Esta suspensão da dimensão política do conceito, naturalizada na (re)construção de Estados, tem, no entanto, importantes implicações na condição de cidadania, principalmente na responsabilidade democrática (accountability) que o conceito implica (Chandler, 2010; 2012). Primeiro, e dada a internacionalização dos processos de legitimação do Estado, a responsabilidade democrática é direcionada para os atores internacionais. Segundo, e apesar do seu papel nos processos de governação, esta preponderância não parte da representação da comunidade política local, eliminando a responsabilidade democrática da relação entre os atores internacionais e as comunidades locais. Juntas, estas questões demonstram a redução significativa da capacidade por parte dos sujeitos e do espaço político disponível para materializar o princípio democrático de autogoverno.

Para Richmond e Franks (2009) a reversão do contrato social significa que a paz liberal perdeu a sua matriz contratual e, consequentemente, a sua ligação ao conceito de cidadania. Chandler afirma mesmo o abandono da relação Estado- sociedade, em detrimento dos imperativos de governação estabelecidos internacionalmente; é a expressão de um novo paradigma de intervenção internacional ' a governação pós-liberal (Chandler, 2010). Esta relação, não sendo negada é, no entanto, suspensa e torna-se evidente uma visão de cidadania consequencial, onde a dimensão política depende de uma capacitação e socialização guiada pelos atores internacionais e de um contexto político específico. É neste contexto que o resgate da dimensão política, como autogoverno e soberania popular, se torna pertinente.

Porém, é necessário clarificar duas questões. Primeiro, que considerar a relevância do conceito. Neste sentido, é importante relembrar que a condição de cidadania expressa a dialética de inclusão/exclusão, cuja configuração específica resulta das relações de poder, e tem pautado a história e evolução do conceito, sendo simultaneamente um instrumento discursivo legitimador na luta por direitos e transformação do conteúdo e práticas. A sua dimensão política, como expressão de autogoverno e soberania popular num quadro democrático, é também considerada um elemento fundamental e está presente em diversas abordagens (ver, por exemplo, Mouffe, 1993; Habermas, 1995; Beiner, 2003; ou Benhabib, 2007). Resgatar a dimensão política do conceito é ainda fundamental para a responsabilização dos agentes de governação nos espaços de consolidação da paz e para o questionamento sobre a própria definição do que é, ou deve ser, o local e a possibilidade de agência política dos sujeitos a partir de práticas internacionais.

Segundo, que pensar sobre o modo como esse resgate pode acontecer. O debate em torno do ‘local' tem evidenciado dinâmicas de poder e espaços políticos não considerados anteriormente e que são um ponto de partida para questionar a condição de cidadania. Richmond apelida estes espaços de pós-liberais, onde diferentes agências políticas se estão a afirmar como resistência às imposições da paz liberal (Richmond, 2009; 2011). Esta afirmação é, porém, feita em oposição à presença internacional, visibilizando apenas parte das dinâmicas políticas locais. Nas vozes críticas a este tipo de análise (ver Paris, 2009; Chandler, 2011; Hameiri, 2011; Paffenholz, 2011; Sending, 2011) ecoa o argumento de que esta oposição traz um contributo limitado à compreensão das dinâmicas de poder locais e reproduz uma imagem dos sujeitos locais como atores à margem das políticas promovidas pelos atores internacionais.

A oposição entre atores locais e internacionais é importante para compreender as assimetrias de poder em espaços pós-guerra. No entanto, não considera a forma como as ações internacionais interagem, afetam e reconfiguram as relações de poder que marcaram o período conflitual e que marcam também a construção da paz. Ou seja, apesar da sua contribuição ao assinalar as questões de poder, ela limita-se à oposição entre internacional e local. Por outro lado, não poderá ser o regresso à matriz liberal a resgatar esta dimensão política do conceito, como algumas reflexões parecem sugerir. Neste sentido, a nossa proposta reside no resgate das dinâmicas internas de poder como elemento adicional de análise, a fim de recuperar a dimensão política da cidadania e do empoderamento.

3. Poder, cidadania e paz Um dos aspetos pouco explorados na agenda da reconstrução da paz e nas perspetivas dominantes de empoderamento e apropriação local, mas fundamental no âmbito da (re)construção do Estado, são as questões de poder no âmbito interno, e a forma como estas interagem com a intervenção dos atores internacionais. A relegação desta questão reflete, de um lado, a insistência numa perspetiva sobre a consolidação da paz direcionada para a resolução de problemas (problema-solving) que privilegia uma abordagem técnica dos conceitos acima discutidos (Bellamy, 2004) e onde outros debates existentes em relação a estes conceitos são ignorados. De outro lado, reflete um certo otimismo em relação ao potencial emancipador das forças locais no processo de consolidação da paz (Sending, 2011).

No primeiro caso, cabe destacar a existência de sérias críticas ao conceito de empoderamento e cidadania. A conceção liberal de cidadania, por exemplo, tem sido questionada por perspetivas que denunciam a sua captura por uma agenda neoliberal e por abordagens que, partindo do conceito de diferença e de um entendimento diverso sobre os espaços políticos em que a cidadania ocorre e se reconfigura, têm questionado as exclusões que este modelo impõe.2 Para estas abordagens, a perspetiva liberal, e a ideia de contrato social que lhe subjaz, escuda-se num estatuto universal que mascara relações de poder e condiciona o conteúdo de cidadania e o exercício efetivo das práticas e dos direitos associados.

A lógica contratual, por sua vez, também tem sido questionada. A ideia do enquadramento governativo em que o Estado é o ator de governação reconhecido e com o qual os cidadãos interagem democraticamente tem sido criticada pelo seu nível de abstração e consequente incapacidade de avistar outros elementos que afetam a interação entre cidadão e Estado. Esta crítica ganha especial relevância nos espaços em situação de pós-guerra, onde o processo de internacionalização do Estado e as relações de poder colocam em evidência a diversidade de atores que interagem no processo de governação. Pluralidade que, por outro lado, adensa os limites da responsabilidade democrática evidenciados pela internacionalização do Estado e expõe, de forma evidente, os limites de um entendimento liberal para resgatar a sua dimensão política (Borges, 2014). Esta incapacidade de considerar a complexidade dos processos de governação significa, consequentemente, que uma perspetiva liberal sobre o conceito não permite discutir as relações de poder que (re)definem o conteúdo e as práticas associadas à cidadania.

Além disso, os limites da cidadania liberal promovida em contextos de pós- guerra foram devidamente evidenciados nos esforços de democratização que marcaram a primeira fase das ações de consolidação da paz. Estes foram reduzidos ao que Pouligny identificou como gramática democrática, i.e., a um conjunto de procedimentos formais (Pouligny, 2006: 239-240), o que resultou numa condição de cidadania procedimental que privilegiava os direitos à representatividade e participação, ainda que circunscritos à questão das eleições, articulando apenas de forma parcial a problemática dos direitos socioeconómicos e culturais e reduzindo assim o seu potencial inclusivo. Ou seja, a lógica evolutiva e cumulativa associada à história do conceito na matriz liberal não se traduziu na refundação de um contrato social capaz de promover uma articulação não violenta e democrática dos conflitos.

Críticas semelhantes surgem no âmbito do empoderamento. A ênfase na ideia de empoderamento como um processo participativo focado na promoção de capacidades é percebida por muitos autores como reducionista e problemática. Primeiro porque, ao enfatizar o processo, desvia-se a atenção dos resultados, ou simplesmente presume-se que mudando os processos (tornando-os mais ‘democráticos'), os resultados irão automaticamente mudar para melhor (Cleaver, 2001). Esta visão, assente no pressuposto do ator racional, não encontra sustentação na prática, e pode ser mesmo questionada na sua base teórica (Giddens, 1979; Friedmann, 1992; Cooke, 2001; Mohan, 2001). Segundo, porque a ênfase na participação prima pela neutralidade técnica do processo e desconsidera o poder que o antecede, ou seja, quemdefine qualo processo que vai ser participativo e qual a agenda a ser discutida.

Tais críticas chamam a atenção para as dinâmicas de poder que vão além deste como expressão das capacidades dos agentes (‘poder para') e retomam a dimensão mais clássica do poder como dominação (‘poder sobre'), ou consideram mesmo a perspetiva mais difusa de poder (power everywhere). Exemplos da ênfase sobre poder como dominação incluem as críticas focadas no grau de influência dos atores internacionais sobre os locais e o seu controlo da agenda (ver Chandler, 2006; Duffield, 2007). Exemplos que marcam a visão de poder difuso incluem os debates sobre a resistência local e o hibridismo (Mac Ginty, 2011; Richmond, 2011). Neste caso, as forças locais são muitas vezes percebidas como emancipatórias e expressão de endogenia.

Ainda que consideremos ambas as perspetivas relevantes, por mostrarem questões de poder para além da sua conotação reduzida enquanto ‘capacidades', entendemos que estas abordagens ainda não problematizam de forma suficiente a dimensão interna, a complexidade do local, o que por sua vez é fundamental para a melhor compreensão do empoderamento e da cidadania. Por um lado, consideramos que as expressões do ‘local' não representam necessariamente uma forma de resistência à paz liberal. Pelo contrário, várias formas de alinhamento entre agentes locais e externos para além das relações imediatas dos agentes oficiais com as elites locais, inclusive por meio de ONG e do setor privado. Por outro lado, a geometria de poder local, especialmente em contextos onde a tradição é importante, é extremamente complexa, heterogénea e não necessariamente emancipatória.3 Neste sentido, a tentativa de ‘impor' o princípio de igualdade muitas vezes entra em choque com estruturas sociais onde, por exemplo, a mulher tem um papel subordinado ao homem, ou onde determinados tipos de hierarquias estão na base do funcionamento da sociedade, ou seja, determinados grupos se encontram em situação de subordinação, se não mesmo de opressão. E é precisamente levando em consideração tais aspetos que se torna necessário repensar a compreensão dos conceitos de empoderamento e cidadania.

No âmbito do empoderamento, o resgate de sua aceção radical por si abre margem para a expansão da compreensão das dinâmicas de poder. Nesta perspetiva, predominante antes da década de 1990, o conceito está ligado ao processo de consciencialização do ser humano e o reconhecimento da sua situação de opressão (Freire, 1996). Este despertar perpassa a revisão das relações de poder entre os seres humanos, indo muito além da ótica de poder como capacidades, mas incluindo o reconhecimento de estruturas de poder como opressão e ecoando, portanto, os debates da teoria crítica e sua ênfase na emancipação (ver também Booth, 1991; Bauman, 2000; Wyn Jones, 2005). A visão radical do empoderamento junta, assim, o potencial da agência dos indivíduos à dimensão estrutural que cerceia as suas ações, estabelecendo uma relação de influência mútua (Giddens, 1979).

Apesar de expandir o entendimento de poder para além de ‘capacidades', tal aceção também apresenta limitações, uma vez que deixa em aberto a discussão sobre o seu aspeto teleológico ' haverá um ‘fim' do empoderamento? ' bem como a dúvida quanto à possibilidade de um empoderamento pleno e simultâneo de todos os sujeitos. Contudo, ao trazer à tona problemas estruturais, amplia os níveis de análise e permite discutir a dimensão dialética do próprio conceito de poder. Assim, mais do que pensar no empoderamento enquanto expansão de capacidades, principalmente em cenários de pós-guerra imediato, que se considerar quais as dinâmicas de poder locais que facilitam/obstruem o empoderamento de determinados grupos em relação a outros e de que forma esta compreensão de poder e empoderamento se traduz na (re)definição da condição de cidadania. Neste sentido, o empoderamento pode ser entendido como um fenómeno dinâmico, um processo constante, mas não um processo restrito a procedimentos estanques, e sim um processo dialético em que o poder é constantemente revisto e questionado, particularmente quando os níveis de assimetria são mais significativos.

É importante notar que ao relacionar as questões de poder, e especificamente o conceito de empoderamento, com a (re)definição do conceito de cidadania, este artigo partilha com as perspetivas mais críticas a necessidade de resgatar o conceito de uma matriz utilitária. Deste modo, entende a cidadania como uma condição que assenta numa dialética de inclusão/exclusão materializada em diferentes níveis, mas contestada a partir das margens excluídas, estável mas sujeita a mudança de acordo com a configuração das relações de poder existentes e que a ênfase no empoderamento mostra (Purvis e Hunt, 1999). Esta visão reconhece o empoderamento dos sujeitos ' a afirmação da sua agência política ' como elemento de mudança e transformação dos elementos que, por sua vez, definem a condição de cidadania ' sujeito, espaço, expressões e práticas de cidadania.

Assim, o empoderamento dos sujeitos não pode apenas ser compreendido como resultado da sua inclusão na condição vigente de cidadania. Pelo contrário, a afirmação política dos sujeitos desafia e/ou transforma os limites de inclusão/ exclusão e, neste sentido, o empoderamento é indispensável para um entendimento de cidadania em que a dimensão política é resgatada. Ou seja, o empoderamento dos sujeitos não ocorre apenas através dos direitos associados à cidadania e à capacidade dos indivíduos de exercer e usufruir desses direitos: o empoderamento resulta de práticas que procuram (re)definir e (re)articular a condição de cidadania.

É nesta matriz que ganha centralidade a afirmação de novos espaços de participação, onde os sujeitos podem afirmar a sua agência política. Cornwall (2002) afirma que a abertura de espaços de participação outrora fechados resulta de um esforço simultâneo de posicionamento dos sujeitos nos novos espaços e de reposicionamento em espaços estabelecidos. Este reposicionamento implica, precisamente, o reconhecimento de uma configuração complexa de atores e espaços políticos dentro e para da dimensão do Estado- nação (Cornwall, 2002: 1). A autora distingue os espaços de participação por convite (invited spaces), dinamizados essencialmente por atores externos com recursos e com uma matriz de participação definida, dos espaços de participação reivindicados (popular spaces), que resultam essencialmente de uma mobilização dos sujeitos (Cornwall, 2002). Transpondo esta divisão para o cenário de reconstrução da paz, observa-se que as ações internacionais se concentram na criação de espaços por convite, com um tipo de participação predefinida e que expressa uma agenda de empoderamento como capacitação. Este enfoque não exprime a natureza dinâmica da participação e do empoderamento, pelo que o potencial político transformador não é contemplado.

O enfoque nas dinâmicas de poder permite, no entanto, compreender esta questão do empoderamento e o seu eventual impacto na condição de cidadania para além dos espaços de participação criados pelos atores internacionais. Neste sentido, devemos enfatizar dois aspetos, mencionados por Cornwall (2002): primeiro, as fronteiras entre os diferentes espaços não são estanques e podem alterar-se; e segundo, a manutenção do status quo ou o seu questionamento podem ocorrer nos dois espaços, dependendo das dinâmicas de poder estabelecidas.

Ou seja, apesar de os atores internacionais criarem espaços de participação em que existe um guião de participação e um entendimento de empoderamento como capacitação, e por isso afastado das dinâmicas de poder, estes espaços podem resultar em dinâmicas de contestação e reivindicação não antecipadas, sendo, desta forma, uma afirmação importante. Por outro lado, é fundamental considerarmos os espaços populares de participação, criados através de reivindicação, como espaços políticos centrais, mas não como necessariamente desafiadores ou transformadores das fronteiras de inclusão/exclusão associadas à condição de cidadania. Os dois espaços poderão ser marcados por dissidência, resistência, colaboração ou compromisso. O que importa primeiramente captar é a existência destas possibilidades em oposição a uma ideia fechada (articulação técnica e procedimental com objetivos e contornos predefinidos) sobre empoderamento e o seu impacto na condição de cidadania.

Conclusões A reflexão apresentada aponta para o potencial analítico da junção dos conceitos de cidadania e empoderamento na análise da construção da paz.

Primeiramente, ao trazer a cidadania para o debate, voltamos a atenção para os espaços locais onde a governação, enquanto projeto e processo, se materializa.

Este enfoque tem duas implicações: primeiro, afirma a necessidade de resgatar o conceito de uma narrativa não política que está latente nos discursos de muitos atores internacionais, e segundo, abre caminho para a definição de uma perspetiva analítica capaz de interagir com as dinâmicas locais de poder e a relação dialética entre inclusão/exclusão inerente ao conceito. Estas duas questões são fundamentais para uma reflexão que problematize a relação da cidadania (práticas atuais e futuras) com a consolidação da paz, particularmente no que se refere à sua problemática de inclusão/exclusão e à forma como estas questões impactam possíveis construções de paz.

Segundo, ao reconsiderarmos a conceção de empoderamento, resgatamos as questões do poder, reconhecendo o papel das diferenças e assimetrias existentes no nível local, e indo portanto, além do poder como ‘capacidade' e da dicotomia entre local-internacional. Neste sentido, e apesar de reconhecer que o poder é em grande medida disperso (power everywhere), reforçamos a ideia de que assimetrias existem e são importantes porque influenciam comportamentos e moldam espaços de representação. Aliás, é precisamente aqui que reside a utilidade do empoderamento enquanto conceito na compreensão das dinâmicas da cidadania. Neste sentido, o exercício da cidadania (seja em espaços convidados ou reivindicados) torna-se um mecanismo com base endógena de contestação de poder ' e não um mecanismo dirigido externamente e pautado pela construção de capacidades. Isto não significa que esta dimensão endógena não possa ser influenciada de alguma forma ' direta ou indiretamente ' por atores externos, mas sim que ela cria uma margem para se pensar qualquer ação neste sentido como fruto de dinâmicas de poder entre os agentes a não como algo unidirecional e necessariamente pré-formatado. Ou seja, a relevância do empoderamento para a cidadania perpassa o reconhecimento das assimetrias de poder existentes. O ponto central é que estes espaços não refletem necessariamente controlo ou empoderamento, mas variam em potencial.

Por fim, a associação dos dois conceitos e dos debates e transformações que os têm marcado conferem à cidadania um potencial expandido, como instrumento reivindicatório e de exigência democrática, uma vez que o resgate da condição política que promove pode traduzir-se na reafirmação da responsabilidade democrática, o que, em contextos de pós-guerra, se revela como alternativa para a realização de contestações que antes se davam por meio das armas e como afirmação perante diversos agentes de governação. A ‘virada local' permite explorar estas questões e obriga-nos a repensar a construção da paz a partir destes espaços.


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