Reflexos invertidos: As migrações clandestinas no filme de ficção e
documentário
DOSSIER
Reflexos invertidos: As migrações clandestinas no filme de ficção e
documentário
Carlos Nolasco*, Elsa Lechner** e Joana Sousa Ribeiro***
*Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo,
Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal cmsnolasco@ces.uc.pt
** Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S.
Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal
elsalechner@ces.uc.pt
*** Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S.
Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal
joanasribeiro@ces.uc.pt
As notícias sobre a chegada de migrantes clandestinos às fronteiras da Europa
são uma constante da atualidade. Relata-se a pressão na fronteira terrestre do
continente, a leste da Grécia e Turquia, ou conta-se a impressionante odisseia
na bacia do Mediterrâneo, onde chegam milhares de migrantes oriundos dos
continentes africano e asiático, todos tentando entrar no espaço idealizado da
Europa, fugindo de guerras, repressão, pobreza e falta de perspetivas. Nos
últimos tempos, as notícias dos naufrágios ocorridos ao largo das ilhas de
Lampedusa, Sicília e Malta, transportando refugiados sírios, somalis, eritreus
e libaneses, mostram ao mundo a dimensão do problema e as suas várias
vertentes, humanitária, política, económica e diplomática. Mas a novidade
destes factos reside apenas na dimensão da tragédia, pois os mesmos dramas são
vividos desde há muito na costa espanhola e nos campos de retenção de migrantes
no Norte de África e na fronteira a leste da Europa. São notícias de longas e
perigosas viagens de homens, mulheres e crianças, que pagam avultadas somas de
dinheiro a passadores, agentes informais de uma verdadeira indústria migratória
(Castles, 2000).
Migrantes, refugiados, polícias, políticos e cidadãos autóctones dos países de
passagem e de destino, todos são atores de um cenário de incontestável
violência que não deixa ninguém indiferente. O Papa Francisco, na sua recente
visita à ilha de Lampedusa, onde se deslocou para chorar as vítimas dos
naufrágios, denunciou a globalização da indiferença perante o drama destas
pessoas em viagem rumo a qualquer coisa de melhor e apelou às consciências
contra essa mesma indiferença, pela solidariedade, responsabilidade de cada um/
a no sofrimento do outro, o migrante clandestino, ignorado ou desprezado por
ser radicalmente estranho, vulnerável ou simplesmente estrangeiro.
Perante esta realidade, a União Europeia e os países que a integram insistem em
encarar o problema numa lógica securitária, como se de uma ameaça de invasão se
tratasse. No entanto, uma análise crítica do fenómeno em causa impele para a
necessidade de se reequacionar a questão numa lógica de responsabilidade
histórica dos países europeus, ex-colonizadores dos países de origem destes
migrantes e refugiados, bem como dos compromissos atuais com políticas
económicas neoliberais. O problema é politicamente complexo e revelador de um
dilema existencial para o continente berço da democracia, dos direitos humanos
e dos valores iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade. Por um lado,
traduz uma contradição fundamental entre a cultura de justiça da Europa e o
pragmatismo diário de violação dos direitos humanos destes migrantes sem
autorização de entrada; por outro lado, revela um paradoxo histórico
representado pelo Mediterrâneo,Mare nostrum, Mare chiuso, agora transformado em
cemitério. Enuncia ainda um dilema existencial para os Estados, que, segundo
Itamar Mann, se traduz em ou tratar as pessoas como seres humanos, correndo o
risco de mudar quem se é (em termos de composição da população), ou desistir de
direitos humanos, correndo o risco de se alterar quem se é (em termos de seus
compromissos estruturais) (2013: 315). Neste sentido, é também a linguagem que
utilizamos para nomear esta realidade que deve ser equacionada desde logo na
designação destas migrações clandestinas como movimentos populacionais cujas
causas, características e consequências ultrapassam uma visão normativa e legal
que, afinal, se trai a si própria.
O crescente controlo legal e securitário das fronteiras da União Europeia do
espaço Schengen tem vindo a transformar os limites territoriais do continente
europeu numa barreira de passagem a importantes contingentes de migrantes e
refugiados que não deixam, mesmo assim, de tentar a Europa. Se as migrações
Norte-Sul se estão a aproximar em número das migrações Sul-Norte (Withol de
Wenden, 2012), o respetivo regime de vigilância fronteiriça altera-se, no
entanto, em função de quem se apresenta à passagem. Consoante o perfil e a
direção de quem migra, as fronteiras são mais abertas ou fechadas, assim
produzindo e reproduzindo presenças legais ou clandestinas nos territórios em
defesa desta alteridade frequentemente associada à ideia de invasão,
ameaça, contaminação.
É neste complexo tecido de diferenças culturais, entre autóctones e
estrangeiros, que a questão da subjetividade e intersubjetividade no
entendimento destas migrações é mais perniciosa. Mas é também aí que podemos
antever, ou melhor, imaginar, possíveis exercícios de diálogo e
interculturalidade capazes de ensinar, a um lado e outro da fronteira, o
respeito, a aceitação e a convivência pacífica.
Um tal exercício não pode ignorar um outro, mais diacrónico do que sincrónico,
mais histórico do que cultural, de consciencialização do silêncio construído e
mantido ao longo do tempo, sobre as relações de dominação material e simbólica
do velho continente, sobre os povos originários do Sul do mundo, muito
particularmente do continente africano. Esse duplo exercício, aliado à noção da
não neutralidade da linguagem e da comunicação (a língua fala-nos, a cultura
situa-nos), e ainda da perceção (moldada pela língua e cultura), constituem
para nós o necessário ponto de partida para uma reflexão séria e aprofundada
sobre os desafios colocados aos estudos migratórios pelas atuais migrações do
Sul rumo à Europa. Assim, se tentarmos desenhar os mapas dos vários contornos
desta Europa ' que se abre ao mundo para globalizar a sua cultura e os seus
interesses, mas que se fecha ao mesmo para evitar a entrada dos aculturados
localizados da globalização, ou localizados globalizados à procura do
território europeu para trabalhar ', encontraremos diversas contradições e
paradoxos, que é importante identificar e nomear.
De facto, o mapa da Europa não é apenas um: os limites territoriais do
continente europeu apenas desenham o respetivo mapa geográfico. Por sua vez, a
organização política no interior deste espaço geográfico traça fronteiras
geopolíticas diferentes das territoriais; as diferentes culturas e línguas
existentes no território indicam vários países, regiões e zonas linguísticas
que não coincidem necessariamente com as fronteiras nacionais, antes expandindo
os países (como no caso da Europa francófona) ou dividindo-os (como nos casos
de Itália e Espanha). Também podemos desenhar mapas temporais (pré- e pós-
impérios coloniais, pré- e pós-Segunda Guerra Mundial ou queda do Muro de
Berlim); tal como ainda podemos traçar mapas económico-financeiros de separação
entre ricos e pobres;e mapas cognitivos de separação entre globalizadores e
globalizados do espaço pós- e neocolonial.
O espaço Schengen fez estender as fronteiras da Europa para o sul e leste do
continente. Como refere Etienne Balibar (2007), as fronteiras da Europa não
coincidem hoje com o seu espaço físico, encontrando-se mais a sul, em Marrocos,
na Mauritânia, no Senegal, no deserto do Saara, em Cabo-Verde, ou mais a leste,
na fronteira oriental da Turquia, da Grécia e no Irão. Tal como no quadro
Leões e cordeiros de Salvador Dalí, onde vemos as imagens dos relógios
derreter, os limites desta Europa deformam o espaço de partida, traçando
fronteiras protecionistas fora do lugar protegido. Estas têm a particularidade
de separar o mundo que se diz civilizado e desenvolvido, do mundo julgado de
incivilizado e subdesenvolvido. A Agência Europeia de Gestão das Fronteiras
Externas ' Frontex, que gere este espaço securitizado, alimenta um verdadeiro
negócio da xenofobia, utilizando os termos de Claire Rodier (2012).
Essas fronteiras separam um mundo pobre, de bairros da lata, de doenças e
desemprego, de violências e violações, de prepotências e ditaduras, de um outro
mundo supostamente rico, democrático, defensor de direitos fundamentais como a
educação, saúde, habitação e participação cívica. Por essa razão, as fronteiras
não cessam de ser transpostas por migrantes que tentam o El Dorado. Esta
palavra é, aliás, recorrente nos testemunhos pessoais dos protagonistas destas
migrações. Testemunhos esses posteriormente aproveitados para divulgar a ideia
de que não vale a pena vir para a Europa. Um caso recente ocorreu no Reino
Unido, onde o governo lançou uma campanha publicitária anti-imigração dizendo:
No Reino Unido chove e faz frio. Não venham para cá.
A expressão El Dorado está para a imigração no Ocidente como a expressão
Descobrimentos está para a emigração dos primeiros europeus em terras
ameríndias. Um equívoco primordial batiza cada uma destas palavras. Mas apesar
de equivocadas, ambas as imagens têm perdurado no tempo e construído um
imaginário que continua a alimentar falsas ideias sobre as migrações Sul-Norte.
O que as duas expressões traduzem de verdadeiro, isso sim, é a perspetiva dos
europeus sobre a chegada aos outros continentes e as suas sempre eternas
ambições de conquista e riqueza material. A chamada globalização, por sua vez,
traduz esta versão da história em detrimento da versão dos globalizados a Sul.
Ela traduz o imaginário globalizador mesmo quando incorporado no imaginário dos
globalizados que, assim, buscam a miragem. Daí que uma reflexão teórica crítica
da globalização permita captar a complexidade dos fenómenos aí envolvidos e a
disparidade dos interesses que nela se confrontam:
Aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem--
sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não existe
condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local,
uma imersão cultural específica. [...] seria igualmente correcto
definir a presente situação e os nossos tópicos de investigação em
termos de localização, em vez de globalização. (Santos, 2004: 334)
O entendimento das migrações Sul-Norte em direção à Europa, neste sentido, é um
entendimento local globalizado e normalizado pela lei de restrição de passagem
pela fronteira e pelo discurso do senso comum. Daí que a linguagem do filme
documentário e de ficção seja mais eficaz na tomada de conhecimento dos
complexos fenómenos em causa e na sensibilização para a necessidade de se
repensarem compromissos e decisões.
Após a tragédia de Lampedusa que, em 3 e 11 de outubro de 2013, se saldou na
morte por naufrágio de mais de 600 migrantes, um conjunto de organizações da
sociedade civil iniciou um processo de constituição de uma alternativa às
atuais políticas migratórias de visão mais securitária. Essa dinâmica plasmou-
se num documento ' A Carta de Lampedusa ', apresentado em fevereiro de 2014, no
qual se defende uma verdadeira mudança paradigmática na intervenção que subjaz
ao fenómeno migratório: fim do mecanismo de vigilância, acionado pela agência
europeia Frontex; liberdade total de circulação; fim das fronteiras;
regularização de todos os migrantes e o seu acesso aos direitos sociais,
culturais, económicos e políticos.
Aquém e além de uma reflexão sobre as questões de legalidade destas migrações
Sul-Norte, organizou-se no Centro de Estudos Sociais, em Coimbra, em 2011, um
ciclo de cinema e debates intitulado Migrações Clandestinas, o qual está na
origem do presente dossier. Assim, a partir do olhar do cinema documental e de
ficção, suscitou-se uma discussão crítica e sensível, dos conteúdos
substantivos, subjetivos e intersubjetivos desta realidade vivida de forma
oposta do lado de cá e do lado de lá das fronteiras. O ciclo de cinema e
debates foi composto de sete filmes, os quais abordaram a consistência das
fronteiras, sejam elas físicas ou simbólicas, e a força da vontade em
ultrapassá-las. Cada filme foi comentado e debatido de forma crítica, por
referência ao contexto que deu origem à narrativa cinematográfica.
Sobre as migrações clandestinas o cinema permite um outro olhar: por um lado
distante da sobriedade da argumentação científica que aborda as questões com a
frieza das suas concetualizações; por outro lado, sem o pudor da exibição da
expressão humana das misérias do mundo, das vulnerabilidades de uns e
prepotência de outros. Em cenários reais, em que todos são convertidos em
atores, e onde a realidade é ampliada pelo zoom das câmaras, a argumentação
cinematográfica permite questionar a adequação da linguagem usualmente
utilizada para designar quem deixa as suas famílias, comunidades e países de
origem, efetivamente mais próxima de uma situação de fuga do que de migração.
Ou, para designar os comportamentos dos agentes de autoridade europeia e do
Norte de África, mais próximos da ofensa e ataque do que da segurança e
respeito por quem se encontra em situação de maior vulnerabilidade.
Este dossier, do qual se faz aqui a apresentação, resultou do ciclo de cinema e
debates sobre as migrações clandestinas, de um conjunto de textos produzidos
tendo como preocupação o tema em causa, e ainda da necessidade de se produzir
conhecimento sobre estas migrações e da urgência social em se falar sobre o
assunto. O dossier inicia-se com um artigo de Fabrice Schurmans onde se aborda
a relação entre o cinema e as migrações, seguido por um outro artigo de Iside
Gjergji, no qual se analisa a expressão histórica, política e social do
Mediterrâneo como lugar de migrações. O dossier é ainda composto pelo conjunto
das sinopses dos filmes e dos respetivos comentários que constituíram o ciclo
de cinema, terminando com uma entrevista a Pierre Delagrange, camaronês,
ativista dos direitos dos migrantes em Marrocos.
Como no complexo jogo de espelhos das câmaras que invertem as imagens, também
as migrações clandestinas são o reflexo invertido das migrações convencionais.
Esse reflexo não resulta apenas da ilegalidade que lhe é atribuída, da
expressão política que lhe é inerente, mas essencialmente das consequências
humanas que lhe estão associadas. É destes reflexos que trata o presente
dossier.