Memórias perdidas, identidades sem cidadania
Permitam-me que conte um episódio que, para muitos, ao tempo da história, terá
parecido ridículo, inusitado, extemporâneo, pois aos olhos do tempo o momento
era de reassentamento da população deslocada pela guerra que assolou Moçambique
em mais de dez anos. A história passou-se com uma brigada do Alto Comissariado
para os Refugiados das Nações Unidas, algures numa região do sul de Moçambique.
A brigada, transportando centenas de camponeses, viu-se, durante mais de
catorze horas, completamente desorientada ao não encontrar o lugar real de
reassentamento, porque a população não atinava com os marcos que identificavam
o espaço, como seja a árvore, o cemitério, o bosque.
O espaço de preservação da memória destas populações havia-se eclipsado com a
guerra. No lugar do bosque, da árvore ou do cemitério familiar, encontraram a
natureza no seu estado selvagem, indomesticada. Para os funcionários do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, na maioria moçambicanos
contratados, a história entrou no anedotário local. Para eles, a reivindicação
do espaço identitário da população não tinha sentido em presença da terra e da
distribuição de panelas, mantas e instrumentos de produção. O importante estava
em garantir à população os bens materiais essenciais à retoma da vida. Não lhes
importava os referentes perdidos, os esteios à perenidade da memória. Este
desencontro, desconhecimento, distanciamento, e o mais angustiante, desprezo
para com a realidade identitária de parte considerável do tecido social do
país, patente nos funcionários, estendia-se, a diferentes amplitudes, a toda a
classe administrativa do país e, mais grave ainda, ao poder político que se
apressava a dar substância à separação e interdependência de poderes
consagrados na nova Constituição que proclamava os direitos, garantias e
liberdades individuais.
Apercebi-me, nesse momento de euforia, de encantamento com a paz, de
deslumbramento com a conquista das liberdades individuais, que o nosso país se
construía sobre os cacos de identidades esfaceladas, esquecidas, detestadas. E
este assassínio, desculpem a impiedade do termo, teve a cumplicidade do poder
político ao tempo da proclamação da independência.
Com a proclamação da independência esperava-se que as identidades circunscritas
ao universo étnico ganhassem, no espaço soberano da pátria, a liberdade e o
direito de confrontarem-se com identidades afins. O nosso país tem, segundo
dados de recenseamento recente, cerca de vinte e três línguas de origem banto
que veiculam todo o universo cultural de etnias afins. Sabe-se que no período
colonial, por mão de igrejas protestantes, houvera um esforço de fixação
escrita das línguas, permitindo uma crescente alfabetização das populações,
manifesta no fácil trato com a literatura religiosa amplamente traduzida nas
línguas locais. Este esforço, embora centrado ao universo étnico, numa
geografia precisa, teve o impacto de fazer chegar aos dias de hoje uma
literatura que porventura se teria perdido com o tempo. Acresce-se a isto,
embora reduzido à militância de poucos, o esforço de missionários católicos em
recolher contos e provérbios, em elaborar dicionários e gramáticas das línguas
veiculares das populações. Em consequência, era de se esperar que, com o
advento da independência, estas iniciativas, ilhadas ao universo étnico,
tivessem cidadania plena, gozando, por conseguinte, do direito de circulação e
consequente confrontação com outras realidades culturais. Esperava-se que a
secular presença islâmica e indiana, reduzida a nichos culturais bem
delimitados, ganhasse outra amplitude no solo pátrio, de modo a que, por
exemplo, as especiarias e outros aromas, enraizados ao longo da costa, se
embrenhassem pelo sertão adentro e se incrustassem no adobe das palhotas da
nossa existência. Esperava-se que a língua portuguesa, língua da unidade e do
desenvolvimento, partilhasse o seu espaço hegemónico na educação, na
informação, nos espaços públicos e privados, com outras línguas, tal como
aconteceu nos princípios do século xx, quando na reduzida cidade de Lourenço
Marques havia espaço para um jornal bilingue, português/ronga, o Africano e,
posteriormente, o Brado Africano, e um diário em língua inglesa, o Lourenço
Marques Guardian. A língua portuguesa nunca saiu beliscada desse convívio
multilingue. Com a independência esperava-se, enfim, que as várias identidades
ganhassem cidadania e contribuíssem, na sua diversidade, para a construção do
tecido identitário moçambicano. Mas tal não aconteceu.
O governo da época, sob a batuta dos heróis da gesta nacionalista, transladou o
princípio reinante nas zonas libertadas de matar a tribo para construir a
nação. O III Congresso da Frelimo, acontecido dois anos depois da
independência, em 1977, veio legitimar a uniformização cultural e ideológica
como condição única para a Unidade Nacional. Estavam criadas as condições para
o esbatimento da memória local e de identidades que há muito procuravam
cidadania para além do espaço étnico, graças à crescente urbanização do
território.
Pergunto-me hoje se é possível aquilatar as consequências do silenciamento
oficial das memórias identitárias que buscaram a luz da perenidade com a
independência do país? Nunca teremos a resposta adequada. Mas os sinais de que
o monolitismo decretado era um erro de consequências imprevisíveis veio em
forma de relatório do Comité Central da Frelimo, em 1983, em vésperas do IV
Congresso, ao fazer constar que
É grande a nossa diversidade étnica e linguística. Foram diversas as
formações sociais pré-coloniais, cada uma com as suas características
próprias. A dominação colonial abateu-se sobre a totalidade do nosso
país, mas afectou de formas diferentes as diversas regiões de
Moçambique. […] Hoje, liberto o país, devemos lutar contra a
tendência simplista de recusar a diversidade como forma de realizar a
unidade. Fazer isso é considerar, erradamente, que a diversidade é um
elemento negativo da criação da unidade nacional; é pensar,
erradamente, que a unidade nacional significa uniformidade. (FRELIMO,
1983)
Mas o medo há muito que se havia instalado no país. As identidades que a custo
sobreviveram a seculares tentativas de esmagamento, fecharam-se nos seus nichos
de sobrevivência. A guerra que se disseminava pelo território fez uso destes
erros infantis cometidos pelos guerrilheiros da gesta.
Moçambique não se encontrou. Devo dizer, embora existam teorias em contrário,
que o papel do Estado é fundamental na libertação de iniciativas que conduzam a
cidadania plena. E os primeiros anos de independência foram fulcrais na
definição da pauta da nossa sinfonia cultural. Esmagamos as notas da
diversidade, silenciamos as vozes que vinham das furnas do tempo e, movidos por
pretensões ideológicas de difícil sustentação, tentamos erigir um corpo,
permitam-me o empréstimo, sem ADN, incaracterístico, insosso, descolorido, de
voz monótona, desenraizada, totalmente à deriva. Perdemos, na euforia da
libertação, a oportunidade de libertar a memória e de traçar, com inteira
liberdade, o nosso destino cultural.
José Luís Cabaço, político e académico moçambicano, na sua tese de
doutoramento, Moçambique: identidades, colonialismo e libertação (2007), não se
aventurou ao período pós-independência, mas teve a clareza de afirmar que
a identidade, sendo sempre em processo, em permanente dialéctica com
o passado e com o Outro, não se conclui e nunca assume o perfil dos
modelos prescritivos. […] Esses modelos tendem a criar um novo tipo
de conflitualidade social e psicológica entre a representação da
identidade nacional unitária e a vida real do cidadão, problema que
se agrava nas sociedades africanas pós-coloniais pela sobrevivência
da estrutura tendencialmente dualista herdada da colonização [...]
(Cabaço, 2007: 426)
Até hoje, quase quatro décadas volvidas após a independência, ainda se discutem
as várias formas de grafar as línguas locais. De um seminário a outro, as
elites vão debulhando ideias que ficam em letra morta nos relatórios que
ninguém lê. As universidades, melhor, a principal universidade pública, Eduardo
Mondlane, vai ensaiando cursos que legitimam educadores das línguas de base
étnica. De tempos a tempos, ouve-se falar de uma experiência em ensino nas
línguas locais. Pouco ou nada é publicitado. São iniciativas a saca-rolha. E,
no meu entender, estão à margem da dinâmica da sociedade que se acultura
acriticamente aos valores que a globalização vai, sem freios, difundindo pelos
cantos mais remotos.
As elites recusam-se, à luz do dia, a dar cidadania aos valores circunscritos
às suas etnias. Outros grupos, sem identificação étnica, escusam-se a trazer à
luz os valores que herdaram de gerações e gerações que se foram fixando no solo
pátrio. Mas todos falamos de uma diversidade a que desconhecemos os contornos
específicos.
No campo que me diz respeito, literatura, tenho acompanhado algumas perversões
a que os tempos modernos me dão a assistir. Volta e meia, leio aqui e ali
frases como segundo a nossa literatura oral, fazendo fé nas nossas tradições
orais, socorrendo-me dos saberes transmitidos à volta da fogueira, e et cetera.
Pergunto-me: essa literatura oral está sendo transmitida por quem e em que
espaços? Que valores se transmitem nessa literatura? Quando falamos da tradição
de que tradição falamos?
Creio que as elites culturais e políticas do meu país ainda não se encontraram
quanto ao objecto ou referência dos seus espaços identitários. Sou da opinião
de que só posso falar da tradição quando esta me é posta a ouvir, ler e
consumir. Quando quero falar da minha tradição, do meu passado, tenho que me
ater a valores que me estão próximos e com os quais me confronto diariamente,
interpretando-os de diversos ângulos quando, a palavra é bonita, em alteridade.
Mas esses valores não estão comigo. E se estão, actuam subliminarmente. O que
me é dado a ver e consumir não passa de arremedos baratos e descartáveis de
valores e memórias dum tecido cultural que se vai esboroando. Os nossos filhos,
especificamente os da faixa urbana, geração imediata à independência, perderam
por completo o contacto com as línguas maternas dos pais ou avós; as âncoras da
identificação cultural circunscrevem-se, a título de exemplo, aos modismos
culturais hoje em voga, como o lobolo praticado nos casamentos modernos, os
ritos de iniciação na floresta do cimento, as oferendas aos espíritos em
árvores tornadas sagradas nas inaugurações de edifícios públicos e outros
empreendimentos de cariz económico e social, e pouco mais. Não há uma
literatura difundida desses fenómenos.
Nunca houve, nestes anos de secura cultural, um esforço concertado de, ao
menos, propagar, por diversos meios, a literatura recolhida em tempos, ou a
que, militantemente, foi acolhida por instituições culturais. Desde a alvorada
da nossa independência que os currículos escolares não fazem constar provérbios
e contos que espelhem o universo cultural moçambicano. Quando falamos de
tradição, de memória, de que tradição e memória falamos?
Diz-se, em provérbio macua, língua falada na região norte de Moçambique, que a
cobra trepa sem ter pernas - Enowa enniwela ehi mettó. Mais a sul, entre
os Tsonga, diz-se: Pessoa calma (silenciosa)é cobra - Munhu wo rhula i
nyoka. Há aqui duas formas distintas de assumir o símbolo cobra. Para os
macuas, a cobra representa versatilidade, uma capacidade invulgar de realizar
determinadas actividades. Nos tsonga, pelo contrário, a cobra simboliza
periculosidade; ela é o símbolo da falta de transparência, da astúcia, dos
jogos de bastidores. Estes exemplos demonstram a diversidade cultural existente
no meu país que não se reflecte na escola, símbolo da cidadania. As pessoas
falam da tradição, mas pouco ou nada dela sabem. E o tempo vai aniquilando
esses valores a que as elites se recusam a dar cidadania plena.
Várias explicações têm vindo à tona para este alheamento às realidades
culturais locais. Em muitos há o medo de se perder o chão da moçambicanidade,
pois temem que ao se falar da tradição, se esteja a falar da pretização das
instituições, da balcanização de um país que se pauta pelo princípio da
universalidade e igualdade inscrita nos direitos, deveres e liberdades
fundamentais, consagrados na Constituição. Para este grupo, falar da tradição é
um retrocesso, um nacionalismo redutor. Para outros, com desmedidos apetites
políticos, a tradição, os valores de uma etnia, são um passaporte válido para a
cidadania política, para uma carreira sem aferição de qualidade. E para muitos,
a tradição não passa de um espaço arqueológico não catalogado. E todos, o que é
triste, sejam grupos étnicos ou outros espaços identitários que secularmente se
sedimentaram no país, não vêem a tradição como espaço de memória interpretando-
se continuamente face a outras memórias em plena cidadania. E esta cidadania é
conquistada hoje, na escrita, na televisão, na rádio, nas campanhas de saúde
pública, nos intérpretes com direito igual aos de outras línguas soberanas que
campeiam em salas repletas de auriculares, enfim, em todos os cantos e
recantos.
A cidadania que se quer às diversas identidades ou tradições é a de abertura
desses espaços a outros valores próximos e distantes. Tem-se dito, e eu
perfilho, que é na troca dos paladares, dos valores culinários, que a
diversidade cultural ganha o primeiro grande patamar de convívio são. Se a
saudosa Natália Correia dizia que a poesia é para se comer, direi que as
identidades devem ser degustadas até ao tutano, para que a diversidade cultural
não seja de facto um tigre de papel neste mundo globalizado.