Delfim José de Oliveira: Diário de viagem da colónia militar de Lisboa a Tete,
1859-1860
RECENSÕES
Capela, José (org.) (2014), Delfim José de Oliveira. Diário de viagem da
colónia militar de Lisboa a Tete, 1859-1860*
José Teixeira
Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Av. Forças Armadas, Ed. ISCTE-
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Delfim José de Oliveira. Diário de viagem da colónia militar de Lisboa a Tete,
1859-1860
José Capela. Capela, José (org.) (2014), Delfim José de Oliveira. Diário de
viagem da colónia militar de Lisboa a Tete, 1859-1860. Porto: Húmus, 125 pp.
Este é o último trabalho publicado em vida por José Capela, recentemente
falecido, historiador que dedicou a sua investigação às relações entre a
sociedade portuguesa e as sociedades do actual Moçambique, em particular no
século xix, e cuja profunda imbrincação foi desvendando através da sua
abordagem pioneira ao longo de quatro décadas de publicações.
Este Delfim José de Oliveira. Diário da viagem da colónia militar de Lisboa a
Tete, 1859-1860 (Húmus, 2014), uma narrativa cuja publicação Capela prefaciou,
anotou e organizou, sendo mais uma das suas múltiplas achegas para um maior
conhecimento da sociedade zambeziana, é também sintomático do eixo de abordagem
do seu organizador, através do qual o autor sempre se recusou a ser apenas um
historiador de sínteses, valorizando a disponibilização de materiais
historiográficos em primeira mão, como este, de molde a ilustrar as
perspectivas assumidas e, também, potenciar as reflexões alheias.
Neste caso trata-se do diário de uma expedição em 1859, destinada à
constituição de uma "colónia militar" perto de Tete, elaborado pelo
militar Delfim de Oliveira (1821-1899), seu comandante e então já veterano em
terras de Moçambique, para as quais havia sido já destacado em missões desde
1842 até 1854, tendo sido governador militar de Tete, e assim conhecedor da
região específica do projecto em causa. E talvez por isso conhecedor a priori
das enormes dificuldades, senão mesmo impossibilidade, de tais propósitos, como
o demonstra o seu desiludido início, tentando eximir-se ao comando de que fora
incumbido, por dele antever "pouca ou nenhuma glória".
Trata-se de um relato valorizado pelas capacidades de observação, e apetência
intelectual, do seu autor. Algo que bem mais tarde lhe implicou publicações, já
após a sua reforma, como uma memória descritiva da sua experiência moçambicana
(A Província de Moçambique e o Bonga, 1879), e uma memória de erudição local,
típica de época (Notícias de Penella: apontamentos históricos e archeologicos,
1884). Apontamento a realçar, pois denotando uma vontade reflexiva que já o
acompanhava ao longo da expedição de 1859-1860, e que em muito enriquece o
conteúdo desta descrição.
Esta expedição demonstra a existência nessa época do projecto do governo
liberal português de dinamizar o inexistente sistema colonial através dessa
tipologia organizacional, as "colónias militares", constituída pela
colocação de uma companhia militar, no caso a "Companhia de Caçadores de
Moçambique". Mas à qual se associavam, para o efeito, um núcleo de
degredados, prisioneiros e soldadesca punida, nisso também se integrando, ainda
que em número desequilibrado, um universo feminino, constituído por cônjuges
dos enviados e ainda condenadas, no óbvio intuito de fomentar um povoamento
"branco".
Este era o meio, segundo Capela, para obstar à desarticulação da actividade
económica portuguesa no território, sucedida com a radical redução do tráfico
transatlântico de escravos acontecida na época, fundamentalmente por pressão
britânica. E assim intentando suprir a efectiva inexistência de uma presença
portuguesa na região, em tudo o que ultrapassasse a persistência de alguma
nomenclatura oriunda do regime dos "Prazos da Zambézia",
explicitamente desligada em termos políticos, culturais e económicos da
putativa metrópole.
As "colónias militares", projectadas sob Sá da Bandeira, haviam
sido encetadas em Moçambique em 1852 no arquipélago de Bazaruto, e logo depois
em 1855 na baía de Pemba, incluindo concursos públicos em Portugal apelando a
colonos, nisso tendo repercussão maior, um verdadeiro sucesso popular, às
possibilidades de transporte e de apoio à sua instalação existentes. Mas o
facto é que essas tentativas falharam quase de imediato, explicitando a falta
de preparação dos projectos, assentes em desinformação sobre as reais
condições, sanitárias e de possibilidades de actividade económica por parte dos
colonos deslocados.
Já a descrição desta terceira expedição, longa e infrutífera, possibilita uma
visão ímpar da real dissolução da putativa administração portuguesa de então,
restrita à Ilha de Moçambique e a desagregados núcleos comerciais históricos, e
prisioneira das práticas de corrupção e inércia dos seus responsáveis, na sua
maioria verdadeiramente desligados de qualquer ideal de "interesse
nacional". Algo que não se deduz do relato de Delfim de Oliveira, pois é
o próprio que o explicita, ainda que com a contenção própria ao dignitário
militar. Como o explicita a sua sobriedade na nota referindo os longos meses
que as centenas de participantes aguardaram na empobrecida capital, a Ilha de
Moçambique, pela chegada da mulher do governador de Tete, a qual a expedição
deveria escoltar até ao seu destino. Breve referência que denota as
dificuldades de promover, no terreno, os projectos delineados em Portugal. E o
sublinham as suas referências, desgostosas, à continuidade da articulação entre
as frágeis administrações portuguesas e os eixos de tráfico de escravos ainda
resistentes.
Vantagem maior deste "Diário de viagem" é a descrição, com alguma
minúcia, das realidades locais. Disso exemplo são as páginas que narram a longa
ascensão do Zambeze, entre Quelimane e Tete: mapeando as localidades
existentes, as instituições político-económicas, o tipo de interacções
possíveis, a geoestratégia proposta - questão na qual se sobrepõe o
comandante/governador -, a ecologia encontrada. É um manancial de
informações para os historiadores e afins, mas também um documento precioso
para qualquer interessado na história do país, em particular a da bacia
zambeziana.
Finalmente, já no almejado destino, há o desenlace, como uma difícil expedição,
agregando tantas esperanças e corroendo tantos meios, económicos e humanos, que
se tornou impossível não só por dificuldades incontornáveis e desadequação de
saberes, mas pelos entendimentos diversos dos parcos membros da administração
local ali sediados. Sublinhando assim a irrealidade de tantos projectos
"africanos" do esforço colonial português, pois desajustados das
perspectivas e interesses dos seus enviados para os locais.
NOTAS
* Por opção do autor o presente texto não observa as regras do Acordo
Ortográfico de 1990.