Tecnologias que incriminam. Olhares de reclusos na era do CSI
RECENSÕES
Machado, Helena; Prainsack, Barbara (2014), Tecnologias que incriminam. Olhares
de reclusos na era do CSI
Diana Miranda
Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais - CICS.NOVA UMinho, Instituto de
Ciências Sociais - Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga E-
mail: dianam@ics.uminho.pt
Machado, Helena; Prainsack, Barbara (2014), Tecnologias que incriminam. Olhares
de reclusos na era do CSI. Coimbra: CES/Almedina, 288 pp. 2014
Tecnologias que incriminam. Olhares de reclusos na era do CSI,de Helena Machado
e Barbara Prainsack, publicado originalmente em inglês (Tracing Technologies
- Prisoners' Views in the Era of CSI) pela editora Ashgate, explora
as representações em torno das tecnologias forenses do ponto de vista de
indivíduos condenados a pena de prisão pela prática de crime. O enfoque nas
perspetivas deste grupo social em concreto é particularmente inovador e esta é
a primeira obra a examinar o modo como os reclusos experienciam as tecnologias
usadas na cena de crime na era do CSI, seus significados e efeitos. Tal como
refere Troy Duster no prefácio, é "[ampliada] a voz daqueles que até
agora têm sido aparte silenciosa desse processo" (p. 18).
O crescente recurso às ciências forenses na investigação criminal tem sido alvo
de atenção académica, destacando-se nos estudos sociais da genética forense e
no panorama português o valioso contributo de Helena Machado (Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra). Esta obra resulta de uma investigação
pioneira e uma análise empírica comparativa desenvolvida por esta investigadora
e por Barbara Prainsack (King's College, Londres), aliando-se dois
estudos de caso desenvolvidos em Portugal e Áustria.
Através da ciência e tecnologia é possível obter provas com base em vestígios
físicos e biológicos que permitem identificar autores de crimes. A informação
que advém destes vestígios é comummente encarada de modo muito positivo na
identificação criminal e as impressões digitais e perfis de DNA são alguns
exemplos desta 'tecnologias que incriminam'. Tal expressão intitula
o primeiro de nove capítulos, onde é apresentada a obra e os seus principais
objetivos: explorar as representações dos reclusos quanto às tecnologias de
cena de crime (principalmente o recurso a perfis de DNA) e as suas visões
perante as bases de dados, sua carreira criminal e o seu futuro. Para tal,
foram realizadas 57 entrevistas qualitativas junto de reclusos do sexo
masculino em ambos os países.
O segundo e terceiro capítulos debruçam-se, respetivamente, sobre o caso
austríaco e o português e sobre as características específicas destes contextos
ao nível das disposições legais em torno das tecnologias de identificação. As
autoras demonstram como as especificidades de ambos os países em termos
políticos, históricos e culturais influenciam as perceções dos reclusos
entrevistados relativamente a estas tecnologias.
No quarto capítulo é questionada a influência dos media e as imagens culturais
transmitidas em torno da infalibilidade da prova genética (nomeadamente em
séries televisivas como o CSI - Crime Scene Investigation) nas
representações dos reclusos sobre as tecnologias forenses. As autoras focam
estas fontes de informação e os "padrões de exposição" mas também
de "distanciamento crítico e reflexivo" nas representações dos
reclusos sobre estas tecnologias, sendo alguns aspetos de tais cenários
interpretados como irreais e ficcionais. Tal sustenta-se nas experiências
pessoais dos reclusos com o sistema de justiça criminal, as suas trajetórias
biográficas e o seu envolvimento com o mundo do crime e as tecnologias
forenses.
As autoras continuam no quinto capítulo a desenvolver uma análise em torno dos
media e do imaginário cultural das tecnologias forenses, nomeadamente a
perceção generalizada do DNA como infalível. Este é encarado como uma
"máquina da verdade", uma poderosa ferramenta tida como o
'padrão de ouro' da identificação, sendo revelada uma crença não só
na sua eficácia na identificação de criminosos mas também a sua capacidade de
ilibar relativamente a autoridades abusivas. Ainda assim, os reclusos
manifestaram receios quanto ao mau uso da informação genética pelas autoridades
policiais e a incriminação a que estão sujeitos quer por negligência, quer por
más intenções. A máquina é encarada como sendo de confiança e os erros
associam-se apenas a ações humanas.
No sexto capítulo as autoras abordam a crescente criação e expansão de bases de
dados genéticos para usos forenses, sendo tal usualmente legitimado pela crença
de que esta tecnologia poderá ser fundamental não só para a investigação
criminal, mas também para a prevenção do crime. A avaliação dos reclusos sobre
o papel destas bases de dados na prevenção do crime contraria esta crença no
seu poder intimidatório e efeito dissuasor. Por um lado, grande parte dos
crimes é cometida sem que os riscos sejam ponderados de forma racional e, por
outro, no caso dos 'criminosos profissionais', os reclusos
perspetivam que tal tecnologia levará a que sejam tomadas mais precauções para
diminuir o risco de serem detetados. De facto, o corpo assume-se não só como o
principal instrumento para cometer o crime mas também como um "veículo de
risco" (p. 197) que permite a identificação.
O conhecimento em torno das tecnologias forenses de identificação e a sua
relevância pragmática associam-se assim a identidades profissionais e a uma
hierarquia de criminosos: os que se identificam como tal e os que desejam
reintegrar a sociedade (desvalorizando em termos instrumentais este
conhecimento).
No sétimo capítulo é desenvolvida uma análise mais detalhada da prova de DNA e
da sua importância na correção de erros da justiça, assumindo-se como um
potencial 'aliado' na perspetiva dos reclusos. Tal temática é
explorada no oitavo capítulo a propósito dos aspetos negativos do trabalho
policial e da lógica dos 'suspeitos do costume', sendo o corpo
criminal associado a um potencial estigma. As autoras referem-se aos efeitos de
capacitação e incapacitação das tecnologias de DNA, servindo estas não só como
forma de proteção contra erros e de contradição da lógica dos "suspeitos
do costume", mas também como fazendo parte de práticas de estigmatização.
Esta obra desenvolve-se em torno do olhar dos reclusos sobre as práticas e usos
de vestígios corporais na investigação criminal. Este olhar tem por base uma
perspetiva enraizada em experiências pragmáticas com a justiça e o crime,
encaradas pelas autoras como "fragmentos de histórias da vida real"
(p. 33). As tecnologias forenses têm impactos ao nível do autoconhecimento,
noções de pertença e diferença e perspetivas futuras dos reclusos. A obra
Tecnologias que incriminamapresenta uma inovadora pesquisa empírica, uma vez
que constitui o primeiro passo no estudo sobre as representações de indivíduos
condenados por crime em relação ao uso destas tecnologias. As autoras suscitam
reflexões em torno destas tecnologias adotando uma perspetiva original,
partindo de um olhar que não tem sido alvo de atenção e cuja experiência em
relação às tecnologias usadas no decurso da investigação criminal tem sido
ignorada ou subordinada às experiências "de outros especialistas".
A dimensão comparativa entre os dois países e a discussão de ambos os estudos
empíricos é uma importante contribuição para o debate em torno das tecnologias
de identificação forense e um valioso contributo para futuros estudos empíricos
e comparativos em torno dos usos destas tecnologias. Em particular, estudos de
caso focados nas representações sociais do uso das tecnologias de
identificação, de modo a explorar os seus impactos e efeitos. A avaliação do
contributo destas tecnologias no combate ao crime é um dos aspetos que deverá
ser alvo de pesquisas mais aprofundadas. Este estudo, ao colocar a tónica na
perspetiva do indivíduo no qual a tecnologia de DNA é aplicada, demonstra-nos o
seu ceticismo a respeito do suposto efeito dissuasor deste instrumento de
identificação na prática criminal. Esta e outras considerações desafiam-nos a
refletir sobre quem representa uma contribuição pertinente na discussão destas
temáticas e como é importante estudar os impactos destas tecnologias tendo por
base a voz usualmente silenciada daqueles que são os principais alvos destas
práticas de identificação. Tal como referiu Troy Duster no prefácio desta obra:
"este é um primeiro passo que deixa uma importante porta aberta".