Conhecimento, prática e ética: Os desafios da investigação-ação em contexto de
prostituição feminina de rua
Introdução
Nos últimos anos, temos assistido a um crescimento substancial de produção de
conhecimento sobre o trabalho sexual e os seus atores, na sua complexidade e
diversidade, sendo que em alguns casos encontramos alternativas às abordagens
tradicionais de conhecimento, através do encorajamento dos/as trabalhadores/as
do sexo (TS) e de outros agentes para a participação ativa em pesquisas
colaborativas (por exemplo: Hubbard, 1999; Lopes, 2006; Martin, 2013;
O'Neill e Campbell, 2006; O'Neill, 2010; Sanders, 2006; Shaver,
2005; van der Meulen, 2011a, 2011b; Wahab, 2003). Entre os diversos estudos
colaborativos e participados, destacamos, como exemplos, os centrados nas
políticas de inclusão (O'Neill, 2010), na organização laboral e mudança
legal (Lopes, 2006; van der Meulen, 2011a, 2011b), na redução de danos (Martin,
2013), na promoção da saúde e prevenção de VIH/SIDA (Cornish, 2006; Swendeman
et al., 2009) e na resolução de conflitos e diminuição do medo da diferença,
através do estabelecimento de canais de comunicação entre os/as TS e os
residentes em zonas de trabalho sexual (O'Neill et al., 2008;
O'Neill e Campbell, 2006). Em Portugal, à exceção da implementação e
avaliação de um modelo de educação de pares, no âmbito do projeto PREVIH
(Oliveira e Mota, 2013), não existem registos de investigação-ação
participativa com TS.1 Todavia, não podemos deixar de salientar a importância
do estudo de Ribeiro et al. (2008) e de Oliveira (2011) no processo de dar voz
às TS e na desconstrução de binários.
O trabalho sexual compreende as situações que envolvem a troca comercial de
serviços sexuais, performances ou produtos, entre adultos e com o seu
consentimento (Oliveira, 2011), onde se incluem atividades de contacto físico
direto entre compradores e vendedores (por exemplo a prostituição); e as de
estimulação sexual indireta, como pornografia, striptease, sexo por telefone,
show de sexo ao vivo, webcam eróticas (Weitzer, 2009). Referimo-nos à
prostituição como uma forma de trabalho sexual e utilizamos as duas designações
indistintamente.
Apesar de a prostituição não ser uma prática criminalizada legalmente, as
pessoas envolvidas na atividade incorrem em processos e mecanismos de exclusão
social, preconceito e estigmatização, que comprometem seriamente o seu bem-
estar (Day, 2007; Lazarus et al., 2012; Levin e Peled, 2011; Ross et al., 2012;
Scambler, 2007; Weitzer, 2009). Consideramos que urge contrariar esta situação
mediante o incentivo à criação de espaços e tempos democráticos de escuta e
reflexão. Nesta sequência, empreendemos um projeto de investigação-ação com
prostitutas de rua e uma equipa de proximidade, em desenvolvimento em Coimbra
desde finais de 2012. O propósito consiste em desenvolver e avaliar uma
proposta socioeducativa centrada nos direitos e necessidades das TS de rua,
através da promoção da participação, do sentido crítico, da reflexão, da tomada
de decisão, da responsabilidade e da coconstrução de todos os intervenientes
(TS, técnicos e investigadora) para uma intervenção congruente com as
necessidades e com os princípios de respeito e de empoderamento.
De maneira a produzir conhecimento pragmático, situado e contextualizado, e
visando gerar conscientização e ação, optámos pelo paradigma sociocrítico
(Denzin e Lincoln, 2006; Freire, 1972), estabelecendo inevitáveis interseções
com os feminismos. Neste contexto, a investigação-ação participativa (IAP)
assume o lugar de ferramenta educativa por excelência, uma vez que ao
contrariar as premissas tradicionais do conhecimento, envolve todos os
participantes como coautores da narrativa que tece o conhecimento
contextualizado, situado numa prática transformadora.
Tal como Fals Borda (2001) postula, consideramos a IAP uma filosofia de vida,
que converte o praticante em pessoa que pensa e sente. Desta forma, não importa
apenas a obtenção de conhecimento, mas a transformação da atitude individual e
dos valores, da personalidade e da cultura, num processo político de inclusão
de quem usualmente se encontra excluído. Neste novo paradigma alternativo,
sugerido por Fals Borda (ibidem), a prática e a ética, bem como o conhecimento
académico e a sabedoria popular combinam de forma harmoniosa e produtiva.
Neste artigo, pretendemos refletir sobre o paradigma que ancora e norteia a
nossa pesquisa, abarcando os seus quatro eixos conceptuais: ontologia,
epistemologia, metodologia e ética, tal como definidos por Denzin e Lincoln
(2006). A pertinência desta discussão prende-se com o facto de o paradigma se
constituir um sistema básico que orienta o investigador no processo de
conhecimento (Denzin e Lincoln, 2006; Lincoln e Guba, 2008), e portanto,
encontra-se conectado com a visão do mundo, oferecendo um quadro de leitura, de
maneira que as pessoas conhecem, pensam e agem de acordo com o mesmo (Morin,
1999). Concomitantemente, uma vez que o sujeito-objeto deste estudo se encontra
repleto de controvérsia, e raramente é envolvido em IAP, este texto surge como
o culminar das reflexões sucessivas no processo de investigação. O presente
artigo encontra-se estruturado a partir das questões ontológicas,
epistemológicas, metodológicas e, por fim, éticas.
Ontologia: a prostituição enquanto (objeto) sujeito de estudo
É praticamente impossível falar sobre trabalho sexual sem revisitar as
perspetivas feministas. De facto, desde o século xix que as questões da
prostituição e do tráfico de mulheres para fins sexuais têm marcado presença
nas agendas feministas. Se inicialmente existia consenso no entendimento da
prática como uma expressão do patriarcado que vitimiza as mulheres, a partir da
denominada segunda onda do feminismo uma maior centralidade na sexualidade
conduziu a posições diferenciadas (Humm, 1995). Essas posições tomam a forma de
correntes, tais como o feminismo radical, o socialismo-marxista, o liberal ou o
pós-estruturalista, entre outras; às quais correspondem interpretações
divergentes sobre a temática (ver Beasley, 1999; Bromberg, 1998). Mas é entre o
feminismo radical e o feminismo liberal que a querela se intensifica, devido
aos extremos que protagonizam acerca desta matéria: prostituição como um crime,
em que as mulheres são vítimas e os homens prostituidores (Barry, 1995;
Dworkin, 1981; Farley, 2005; Jeffreys, 1997; MacKinnon, 1987) versus
prostituição como um trabalho escolhido racionalmente e que pode ser bem-
sucedido (Chapkis, 1997; Delacoste e Alexander, 1998; McLeod, 1982; Nagle,
1997; Pheterson, 1989).
A pluralidade feminista emerge das explicações sobre a base da opressão das
mulheres e suas recomendações para a mudança (Maguire, 2001; Pilcher e
Whelehan, 2008). A opressão enraíza-se na diferenciação de género, que, por sua
vez, constitui a forma primária de significação das relações de poder (Scott,
1995), e deve-se primeiramente ao controlo masculino universal sobre o corpo e
a sexualidade feminina (Humm, 1995). A título de exemplo e de forma sintética,
para as radicais, a opressão está relacionada com o patriarcado, com o sexismo,
com a violência dos homens contra as mulheres e, noutra instância, com o
racismo e o imperialismo. Já as socialistas-marxistas atribuem a opressão à
relação de classe, às relações do capital com o proletariado, incluindo o
trabalho doméstico (Frye, 2005); as liberais à falta de igualdade de
oportunidades e de direitos; e as feministas pós-estruturalistas adotaram o
conceito de poder de Foucault (1985, 1990, 2008) como estruturado pelo saber
nos discursos das práticas sociais. O poder é entendido como difuso, produtivo,
construído historicamente, exercido em contexto e não detido por algumas
classes sociais. Por esta via, o poder encontra-se relacionado com um contexto
social, político e económico que pode ser modificado. Esta visão situa-se em
linha com as feministas que adotaram o conceito de empoderamento e desconstrói
os discursos de opressão associados à vitimização e à ausência de capacidade de
agência/resistência das mulheres. Porém, outros feminismos, embora reconhecendo
os contributos de Foucault, tecem-lhe duras críticas, argumentando que este
negligenciou a categoria género na sua análise (por exemplo Butler, 1990; De
Laurentis, 1987; Scott, 1995).
Estas divergências assumem um papel fulcral quer para o entendimento
contextualizado da prostituição como uma construção social, quer para a análise
da constituição de micropoderes na produção de discursos (Foucault, 2008) e nas
representações sociais (Jodelet, 1989; Moscovici, 1976), que informam e são
informadas pelo senso comum e podem repercutir-se em mudanças a nível das
práticas institucionais, políticas e sociais.
Histórica e contextualmente, a figura da prostituta foi sendo construída na
relação dialógica do conhecimento-poder, que permitiu, por uma via, a
consolidação da hegemonia social e, por outra, a produção legislativa para o
estabelecimento de interditos e de permissões (Foucault, 1990). Assim, o corpo
e a sexualidade, não só das prostitutas, mas de todas mulheres, foram alvo de
controlo sob uma perspetiva substancialmente masculina, oficializando-se nos
discursos oficiais, de natureza médica, legal e política.
Retomemos o conceito de opressão para melhor explicitar a interseção com o
nosso objeto e sujeito de estudo. Young (2005) entende opressão como a inibição
de um grupo através de uma vasta rede de práticas diárias, atitudes,
comportamentos, regras institucionais. Na linha de Foucault, Young (ibidem)
sugere a análise do exercício do poder como efeito das práticas liberais e
humanizadas nas atividades quotidianas. A ação diária e consciente de muitos
indivíduos contribui para manter e reproduzir opressão, sendo que muitas vezes
podem assumir-se como rotinas sem consciencialização. Entendemos que a opressão
se encontra presente na prostituição, na medida que os seus atores permanecem
na atividade à margem das leis, dos direitos e deveres, de uma vida condigna;
sujeitos a múltiplas formas de exclusão, decursivas de outros fatores
socioeconómicos de risco, discriminações e estigma. Esta situação de
vulnerabilidade conduz ainda a mais opressão ao conferir legitimidade aos
serviços sociais formais para controlar e invadir a privacidade destas pessoas.
Para Young (ibidem), as instituições de caridade constroem as próprias
necessidades e os profissionais é que definem o melhor para os seus clientes,
considerando-os dependentes e incapazes. Assim, a dependência na sociedade
liberal implica uma condição suficiente para suspender os direitos à
privacidade, ao respeito e à escolha individual. Na mesma linha, a respeito das
equipas de proximidade que dirigem serviços a TS, Agustín (2007) afirma que as
figuras sociais que criaram e desenvolvem esses projetos justificam
frequentemente as suas ações sem a referência às necessidades, assentam em
discursos impostos de solidariedade, de empoderamento, de autoestima e de
inclusão social. Por esta via, os discursos produzidos pelos técnicos que
trabalham junto das populações devem ser questionados na sua dimensão de poder
e na sua capacidade de gerar opressão, mesmo quando a sua intenção é promover o
empoderamento. De facto, estas instituições desempenham um papel muito
importante, funcionando grande parte das vezes como aliadas na luta pela defesa
dos direitos humanos, sejam eles perspetivados no sentido de combate contra a
violência que a prostituição representa (discurso antiprostituição), sejam pela
revindicação de direitos laborais (discurso pró-trabalho sexual).
Apesar de existirem diversos coletivos de TS que reivindicam por direitos
laborais e contra a discriminação (Kempadoo, 1998; Mathieu, 2003; Roberts,
1996), inclusive em Portugal já foram tomadas algumas iniciativas nesse sentido
(Lopes e Oliveira, 2006), a opressão continua a inibir a participação dos/as TS
nos debates sociopolíticos em torno dos seus interesses. De acordo com Mathieu
(2003), existem diversos obstáculos à formação de um movimento social,
relacionados com o contexto legal, com a falta de estrutura e organização da
prostituição, com as características pessoais, sociais, económicas e culturais
da população, usualmente com condições gerais de vida precárias, e com a falta
de coesão interna, ou seja, a inexistência de uma identidade coletiva, o que
lhe confere pouca capacidade de organização para uma posição reivindicativa. A
falta de identidade profissional encontra-se também associada à ausência de
vantagens percebidas. Com efeito, geralmente as/os TS consideram que a
prostituição é uma situação temporária (Agustín, 2007) e as represálias sociais
não justificam um posicionamento proativo. Estas dificuldades acabam por
conferir mais poder a outros discursos, em detrimento do empoderamento dos
sujeitos envolvidos na prostituição.
No que concerne ao nosso posicionamento, concordamos com Maggie O'Neill
(2001) e entendemos a prostituição como uma resposta compreensível e razoável a
necessidades socioeconómicas, dentro de um contexto cultural consumista e
social que privilegia a sexualidade masculina. Para melhor compreender a
prostituição é necessário examinar as inter-relações entre a vida das mulheres
(microanálise) e as metacondições da sociedade alargada (macroanálise),
incluindo a análise histórica, no sentido de encontrar diferenças e semelhanças
nas subjetividades e a necessidade de respostas coletivas. Rejeitamos a
conceção de um grupo homogéneo, porque, tal como constatou Oliveira (2011),
apesar de existirem regularidades nas experiências de vida das mulheres que se
prostituem, os significados atribuídos e as trajetórias são bastante
diversificados. Por outro lado, existe uma multiplicidade de formas de trabalho
sexual (Harcourt e Donovan, 2005), sendo a prostituição feminina apenas uma
faceta. Neste estudo excluímos deliberadamente outras formas de trabalho
sexual, atores, géneros e contextos, restringindo a nossa análise à
prostituição feminina de exterior.
Tal como outros autores portugueses (Oliveira, 2011; Ribeiroet al., 2008;
Silva, 2010), concordamos com a legalização do trabalho sexual, com a respetiva
regulamentação e com a fiscalização da atividade. Consideramos que a
legalização pode permitir a segurança de pessoas que voluntariamente ingressem
nesta profissão e a deteção de casos de coação, resultantes de tráfico de seres
humanos. Todavia, do nosso ponto de vista, para que esta mudança legal, a
acontecer, possa traduzir-se numa efetiva transformação das condições de
exercício da profissão, será imprescindível o combate ao estigma do trabalho
sexual e dos seus atores. Acresce ainda que a mudança legal deveria ser
acompanhada de outras mudanças, com um carácter estrutural. Referimo-nos, por
um lado, à necessidade de promoção de igualdade de oportunidades a todos os
níveis, independentemente das categorias usualmente discriminatórias e, por
outro lado, num outro plano, a oposição aos discursos neoliberais que valorizam
o consumismo, o capital e a competição desenfreada, onde incluímos a urgência
da (re)conquista de direitos sociais e laborais que foram colocados em causa
nos últimos anos pela crise internacional. Este último ponto é fundamental na
medida que os discursos atuais produzem e sustentam formas de dominação, em
contextos assimétricos, com maior vulnerabilidade para as pessoas que se
encontram em situações precárias. Estes discursos são, do nosso ponto de vista,
incompatíveis com os direitos, as liberdades e as garantias do cidadão. Um
mundo mais justo e solidário cria mais oportunidades, e, portanto, mais
possibilidades de fazer escolhas de facto livres e informadas por esta ou
outras profissões e/ou modos de vida. Todavia, a opressão é sistematicamente
reproduzida nas maiores instituições económicas, políticas e culturais, de
maneira que mudar leis não é suficiente (Young, 2005) e as assimetrias
continuam a reproduzir-se.
Sintetizando, o debate feminista sobre o trabalho sexual é fundamental para
compreender o fenómeno na sua complexidade. A identificação da opressão
estrutural e sistémica, e a forma como estas se conjugam e se repercutem na
vida destes atores é igualmente importante, na medida em que permite vislumbrar
obstáculos à participação dos/as TS na defesa dos seus interesses. O trabalho
sexual é composto por diversas verdades socialmente construídas e, como tal, a
natureza do nosso objeto (sujeito) de estudo assume-se como uma realidade
múltipla.
Epistemologia: poder na construção social do conhecimento e nas relações
interpessoais
Tendo em conta o nosso objeto de estudo - prostituição feminina de rua,
em específico, a relação das TS com os serviços de outreach - de maneira
a desenvolver uma intervenção participada e mais congruente com as necessidades
dos/as participantes, nesta secção focamos a forma como entendemos a construção
do conhecimento em IAP. Para tal, abordamos as epistemologias feministas, a
relação horizontal e a valorização das subjetividades.
Os feminismos têm assumido um compromisso sério como movimento político para a
transformação social, estrutural e pessoal, implicando-se na luta contra todos
os sistemas de opressão/dominação, sem o qual as mulheres não teriam adquirido
direitos sociais, sexuais ou humanos. Do ponto de vista da investigação
científica, consideramos que o seu contributo para o debate público destas e de
outras questões cruciais se encontra intrinsecamente ligado a um posicionamento
epistemológico que problematiza sistematicamente as relações de poder na
construção social do conhecimento, envolvendo outras categorias além do género,
como a raça ou classe (Maguire, 2001). Cook e Fonow (1986) sintetizam este
posicionamento epistemológico através da enumeração dos seguintes princípios:
1) o foco nas relações de género como característica da vida social e também na
condução de investigação; 2) a centralidade da conscientização como metodologia
específica; 3) a necessidade de desafiar a "objetividade" que
assume a dicotomia sujeito-objeto de investigação; 4) a preocupação com as
implicações éticas; e 5) a ênfase na transformação do patriarcado e o
empoderamento das mulheres. Como tal, independentemente das epistemologias
feministas postularem a criação de novo conhecimento (standpoint) ou a
desconstrução do conhecimento existente para a criação de conhecimento positivo
(pós-estruturalistas) (Andermahr et al., 1997; Harding, 1996), os contributos
de ambos os pensamentos revestem-se de primordial importância na condução do
nosso trabalho. Destacamos, em primeiro lugar, o contributo das teorias de
standpoint e da forte objetividade (strong objectivity) (Harding, 1993). Esta
posição permite uma crítica construtiva ao paradigma positivista e masculino da
ciência e inclui outras formas de conhecimento - situado, histórica e
socialmente contextualizado; que confere validade à experiência subjetiva e à
voz das mulheres, sobretudo aquelas que se dedicam a atividades usualmente
discriminadas, como é o caso da prostituição; e que argumenta pela implicação
política e do investigador no processo de investigação, no sentido da
democracia e da promoção dos direitos humanos. Em segundo lugar, apropriamo-nos
do conceito de heteroglossia, adotado por Haraway (1991), que dá conta das
relações de poder do conhecimento científico legitimadas em saber-poder
(Foucault, 1990). Para a autora, os discursos sociais são constituídos por uma
multiplicidade de discursos, associados a grupos e relações de poder. Por esta
via, não existe um discurso único ou igual, mas uma heteroglossia, com vozes
que surgem dos locais distintos, que tanto divergem como convergem. Também para
Haraway (1991) o conhecimento é assumidamente parcial, subjetivo e
contextualizado.
Paralelamente, a investigação de cariz feminista tem desafiado as formas
tradicionais de conhecimento, ao desenvolver metodologias inovadoras e ao
incluir novas formas de conhecer, como por exemplo o recurso às artes visuais
ou performativas.
Com as devidas diferenças, as epistemologias feministas, tal como a
etnometodologia (Garfinkel, 1967) e o interacionismo simbólico (Blumer, 1986;
Goffman, 1989; Mead, 1934), valorizam as experiências pessoais quotidianas de
mulheres e de homens, a construção social de conhecimento, através dos
significados atribuídos em interação dinâmica com os outros e com o mundo, que
influenciam e são influenciados neste ato de conhecer e de ser. As feministas
valorizam a relação interpessoal: as pessoas crescem e mudam no contexto das
relações humanas, sendo a produção de ciência uma relação (Maguire, 2001). As
práticas quotidianas tendem a ser ignoradas ou até mesmo desvalorizadas pela
ciência positivista, mas no feminismo apresentam lugar de destaque também como
meio de conscientização para a transformação social. Este processo só se torna
possível com o recurso a métodos participativos, com a rejeição da dicotomia
sujeito-objeto e a apreciação dos conhecimentos situados, do dia a dia, do
senso comum.
Nesta sequência, apropriamo-nos das ideias de Santos (2007) e postulamos que a
epistemologia feminista contribui para uma reflexão crítica da ciência,
rompendo com as monoculturas da sociologia das ausências, cujos modos de
produção conduzem a um "'epistemícidio' - morte dos
conhecimentos alternativos" (ibidem: 29); à conceção do tempo linear, que
apenas contempla um sentido na história do desenvolvimento; à naturalização das
diferenças, sempre interpretadas pela desigualdade e inferioridade; à da escala
dominante, tendo apenas atenção sobre o global e não valorizando o local; e ao
produtivismo capitalista. Muito embora Santos (2007) se refira, neste trabalho,
às discrepâncias entre o hemisférico norte e sul, resgatamos esta ideia porque
nos parece adequada e útil, tendo em conta as discussões presentes a nível dos
paradigmas de conhecimento científico (Guba, 1990; Kuhn, 1970) e a necessidade
de renovar e reinventar a teoria e a emancipação social (Santos, 2007).
Ainda na linha de raciocínio de Santos (1995), entendemos o conhecimento
científico e o conhecimento popular como duas faces da mesma moeda, uma vez que
o conhecimento do senso comum aproxima as vivências e assume um carácter
pragmático. O mesmo autor postula:
(…) superação da distinção entre ciência e senso comum e da transformação de
ambos numa nova forma de conhecimento, simultaneamente mais reflexivo e mais
prático, mais democrático e mais emancipador do que qualquer deles em separado.
(Santos, 1995: 86)
Na sua ótica, deixou de fazer sentido criar um conhecimento novo e autónomo em
confronto com o senso comum (1.ª rutura) se esse conhecimento não se destinar a
transformar o senso comum e a transformar-se nele (2.ª rutura). Fals Borda
(2001) segue a mesma lógica e argumenta que o ideal seria conseguirmos
descobrir uma forma de fazer convergir pensamento popular e conhecimento
académico, de maneira a obter um conhecimento mais completo e aplicável. Torna-
se relevante, ainda, a apropriação e a difusão do conhecimento científico pelo
senso comum, como nos esclarece a teoria das representações sociais de
Moscovici (1976), no sentido de consciência dos processos através dos quais os
sujeitos, em interação social, constroem teorias sobre os assuntos sociais, que
se repercutem na relação com os outros, consigo e com o mundo.
O questionamento sobre a utilidade do conhecimento científico tem estado
presente em diversos autores que desenvolvem pesquisas de investigação-ação,
como é o caso de Fals Borda (2001) ou Schostak e Schostak (2008). De que forma
o conhecimento produzido em meio académico pode ser útil às pessoas
comprometidas com as pesquisas e à sociedade da qual fazem parte?
Conhecer significa poder, como advogam diversos autores (Foucault, 2008;
Freire, 1972), e significa também que esse poder não deve ser exclusivo de
determinados grupos, devendo encontrar-se ao serviço de todos, para que
possamos construir uma sociedade mais equitativa e justa, para que possamos
(re)distribuir poderes e com eles assumir compromissos e responsabilidades.
Para Fals Borda (2001) é essencial que as pessoas conheçam as suas condições,
de modo a que possam defender os seus interesses, e não que os conhecimentos,
recursos, técnicas e poderes sejam monopolizados apenas por alguns.
Assim, na IAP, em contexto de prostituição de rua, o conhecimento, construído
na relação horizontal entre os/as participantes é tendencialmente subjetivo,
plural, mutável e complexo. O conhecimento com vista à melhoria das práticas,
que contemplem as necessidades e vontades de todos, decorre da experiência
quotidiana e das iniciativas de conscientização que, pelo seu turno, permitem a
tomada de ação, e posterior reflexão conjunta.
Metodologia: investigação-ação participativa
Tendo em conta o propósito do nosso estudo, que consiste em desenvolver e
avaliar uma proposta socioeducativa centrada nos direitos e necessidades das TS
de rua, justificamos a nossa opção por uma metodologia de IAP. Dentro das
diversas formas de investigação-ação (IA) descritas por vários autores (Cassell
e Johnson, 2006; Kemmis e McTaggart, 2005; Reason e Bradbury, 2001; Whyte,
1991) posicionamo-nos numa linha crítica ou emancipatória, cujos objetivos se
consubstanciam em melhorar resultados (numa vertente técnica), promover a
conscientização (numa forma sobretudo prática) e apoiar os participantes no
processo de se tornarem mais críticos (emancipação).
O conhecimento no contexto da IAP, de acordo com Park (2001), pode ser
representativo, relacional e reflexivo, na medida que surge a partir de
situações reais que abarcam dimensões materiais, relacionais e morais. A estas
formas de conhecimento encontram-se associadas três formas de poder, isto é, o
de controlar objetivamente a realidade; o de ser solidário com os outros; e o
de atuar sobre valores morais. Já para Gaventa e Cornwall (2001), existem
quatro abordagens ao poder com respetivas implicações para a investigação, a
saber: 1) o conhecimento é um recurso mobilizado para informar e influenciar
decisores sobre assuntos públicos essenciais; 2) os detentores de poder
controlam a produção de conhecimento, estabelecem as prioridades e decidem
sobre as vozes que incluem e excluem do processo; 3) sob influência de Freire
(1972), a ênfase é colocada sobre as formas como a produção de conhecimento
moldam a consciência e as capacidades para tomar ação; 4) numa linha diferente
das anteriores, o poder tido como repressivo, concetualizado como um recurso
ganho pelo indivíduo, mantido e exercido, afigura-se como produtivo e
relacional, operando através dos discursos, instituições e práticas que lhe são
produtivas (Foucault, 1990).
Para Gaventa e Cornwall (2001), a IAP contribui assim para o empoderamento
- entendido como um processo em que os indivíduos ganham controlo e
mestria sobre as suas vidas e participação democrática nas suas comunidades
(Rappaport, 1987) - uma vez que procura mudar as relações de poder nas
dimensões de conhecimento (como recurso que afeta as decisões); da ação (que
atenta a quem está envolvido na produção desse conhecimento); da consciência
(centra-se no modo como a produção do conhecimento muda a consciencialização de
quem está envolvido), através do encorajamento à participação. Trata-se,
portanto, de um processo de conscientização e de reconhecimento, pelos atores,
dos seus próprios recursos (Fals Borda, 1988; Freire, 1972), garantindo o
sentido de controlo aos participantes (McTaggart, 1994). A participação é assim
condição de conhecimento e, numa última análise, condição de exercício de poder
através de práticas e discursos. Colocar em palco o direito das TS terem voz
implica que tem de se lidar com esta voz, o que afeta as relações de poder.
Como as realidades são socialmente construídas, são modificáveis através do
questionamento (Lincoln, 2001), peça central na reconstrução de narrativas em
relação com o mundo e no processo de conscientização.
A participação, condição essencial, encontra-se associada à qualidade da
relação estabelecida com o investigador. A relação é, assim, crucial para o
desenvolvimento de um trabalho de IAP de qualidade (Bogdan e Biklen, 1992;
Gaventa e Cornwall, 2001; Ospina et al., 2004; Park, 2001; Reason e Bradbury,
2001), sendo que o potencial de mudança é determinado pela qualidade das
relações dos atores e a forma como endereçam as relações de poder (Gaventa e
Cornwall, 2001).
A promoção de atividades de conscientização, inerentes à IAP, para além de
incluir as vozes das TS nos assuntos que as afetam, permitem encorajá-las no
sentido de assumirem um papel de maior controlo sobre os mesmos.
Ética: dilemas éticos
A presente reflexão (re)conduz, por fim, ao início de todas as nossas
interrogações. Iniciámos a pesquisa de campo comprometidas com a produção de
conhecimento que pudesse ser útil aos/às participantes, com o entendimento de
que a prostituição é um fenómeno complexo, que exige uma compreensão da sua
pluralidade a partir de uma análise das intersubjetividades, dos discursos, das
práticas e das condições supraestruturais. É também um tema repleto de
controvérsias, sentimentos, sentidos e significados, aos quais não podemos
ficar indiferentes, sendo que a nossa posição pode comprometer as relações e as
narrativas das participantes (Agustín, 2004). Nesta sequência, a dimensão ética
emerge naturalmente, também ela como questão e objetivo que precedem e procedem
da investigação.
A nível formal, os procedimentos éticos para a pesquisa com seres humanos
encontram-se amplamente documentados, com entidades reguladoras oficiais, quer
nacionais, quer internacionais. Por outro lado, inúmeros manuais de metodologia
(cf. por exemplo Bryman, 2012; Christians, 2005) estabelecem os princípios
legais e éticos referentes à condução das pesquisas e à escrita académica, como
a honestidade e a integridade do investigador para com os dados de pesquisa, a
partilha dos resultados, a creditação das fontes, a clarificação de conflitos
de interesse, a salvaguarda do anonimato e da confidencialidade, o respeito
pela privacidade e liberdade de opinião, a obtenção de permissão para recolha e
uso de dados com consentimento informado, e a garantia da ausência de custos/
prejuízos ou danos aos participantes (American Psychological Association,
2010).
Todavia, os aspetos éticos da investigação não se circunscrevem aos aspetos
formais, pelo que consideramos fundamental tornar explícita e transparente essa
mesma dimensão ética em investigação, a um nível geral. Especificamente
relacionados com a investigação em contextos de prostituição, enumeramos os
seguintes dilemas:
1. O posicionamento dos investigadores. De que forma é que as nossas
experiências e "visões do mundo" afetam a relação de escuta
que estabelecemos com as TS e os técnicos e a produção de conhecimento com
vista à práxis transformadora?
2. As relações de poder na construção do conhecimento e na relação sujeito-
sujeito. De que forma podemos desconstruir o estatuto de
"especialistas" para o estabelecimento de uma relação
horizontal, com o reconhecimento e valorização dos vários tipos de saber/
conhecimento por parte de todos os participantes?
3. A identificação da necessidade de fazer justiça ao slogan "o pessoal
é político" (Hanisch, 1970), através do incentivo à participação de
pessoas usualmente excluídas das esferas públicas e dos assuntos que lhes
dizem respeito. O que justifica a necessidade de investigação-ação com
prostitutas de rua? No caminho das "boas intenções", ao focar
a prostituição não estaremos negligentemente a reproduzir discursos de
vitimização?
4. O ganho (imoral) dos investigadores. De que maneira podemos garantir que
conduzimos uma investigação em prol dos principais interessados e não para
benefícios pessoais e para progressão na carreira académica, como
contestado por autores como Agustín (2004), Fals Borda (2001),
O'Neill (2001) ou Sanders (2006)?
5. Por último, como podemos abandonar o terreno, quando construímos
progressivamente relações de cooperação, de confiança e de amizade com as
pessoas, sem que estas se sintam abandonadas ou traídas?
A opção por métodos de pesquisa orientados para a ação e que contemplem o dar
voz a categorias populacionais usualmente excluídas, enfatizando o seu
potencial emancipatório (Hubbard, 1999), tem sido precisamente apontada como
uma forma de redução do carácter explorador das pesquisas (Sanders, 2006;
Shaver, 2005). A inclusão dos/as TS no desenho e processo de investigação como
coinvestigadores, recorrendo, para o efeito, à IAP, numa cooperação estreita
com todos os envolvidos (Benoit et al., 2005; van der Meulen, 2011a) é, por si,
uma forma de garantir a pluralidade, a subjetividade e o controlo dos/as
participantes.
Por outro lado, a conduta do investigador deve reger-se pela transparência,
pela abertura à complexidade e pela ética do cuidado. Na concetualização de
Gilligan (1982), a ética do cuidado compreende a consciência de ligação entre
as pessoas, o reconhecimento da responsabilidade de uns pelos outros, a
moralidade como consequência da consideração desse relacionamento e a
comunicação como forma de resolução de conflitos. A atenção, a
responsabilidade, a competência e a responsividade são elementos da ética,
enquanto prática e não um conjunto de regras (Tronto, 2005). A estes elementos
acrescentamos a reciprocidade, uma vez que postulamos relações horizontais,
colaborativas e de proximidade.
Notas finais
De forma a combater a exclusão, a discriminação e o estigma associados à
prostituição, empreendemos o compromisso de produzir conhecimento útil, que
produza diferença na forma de agir, pensar, sentir e acreditar sobre as
questões associadas a esta atividade. Entendemos que "o conhecimento
científico, como linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de um grupo
ou então não é nada" (Kuhn, 1970: 257). Nesta afirmação, interpretamos
grupo não apenas como a comunidade científica, mas todos os participantes em
projetos de investigação, bem como a sociedade em geral. Desta forma,
postulamos uma investigação ancorada na centralidade axiológica dos atores
sociais e na relação dialógica entre estes e o investigador que, permitindo
tornar públicos os problemas privados (Burawoy, 2005) terá de se revestir
criteriosamente de um agir ético.
A prostituição é um tema repleto de significados e sentidos, assim como de
discórdia e, portanto, a investigação e a prática social com prostitutas, assim
como com outras minorias normalmente associadas a contextos de discriminação e
de exclusão, exigem maturidade e requerem um exame pessoal cuidadoso, de forma
a desafiar as relações de poder no conhecimento-prática, através da
horizontalidade, da empatia e do não julgamento. Mais do que colher dados, os
investigadores de IAP semeiam relações. Por outro lado, é também necessário
transformar as subjetividades em ações concretas, que permitam romper com o
estigma, principal fator de inibição para a participação ativa na esfera
pública.
A prática social é indissociável da investigação, e tanto uma como outra
requerem reflexão e ética. Assim sendo, argumentamos por um paradigma de
investigação que confira legitimidade a formas de conhecimento útil e
transformador, que incentive à criação de espaços democráticos e, sobretudo,
que respeite as liberdades, a dignidade e as diferenças. As palavras-chave são
assim ação, conhecimento, reflexão, transformação e ética do saber ser e agir.