Austeridade, democracia e autoritarismo
RECENSÕES
Freire, André (2014), Austeridade, democracia e autoritarismo
Pablo Almada
Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Rodovia Celso Garcia Cid, PR‑445, Km‑380, Campus Universitário, 86057‑970,
Londrina, Paraná, Brasil pabloera@gmail.com
Freire, Andre (2014), Austeridade, democracia e autoritarismo. Lisboa: Nova
Vega, 152 pp. 177-180
Compreender a complexidade do sistema político português, em um momento de
crise econômica e política, é o desafio proposto pelo cientista político André
Freire nesta obra. Professor do ISCTE-IUL e investigador do CIES-IUL, Freire
tem como seu objeto de estudo os temas de comportamento político, sistemas
eleitorais, representação e instituições políticas, participando amplamente nos
debates públicos e políticos de Portugal. Austeridade, democracia e
autoritarismoé uma compilação de vários artigos publicados entre 2007 e 2014,
em sua coluna do jornal Público. A obra apresenta uma visão crítica sobre os
dilemas concernentes ao sistema político e aos partidos, além do questionamento
do futuro da democracia portuguesa e europeia.
Os artigos apresentados confluem com momentos-chave de conjuntura, enfatizando
os efeitos do neoliberalismo e da governação "austeritária" na
política partidária, na democracia, na vida concreta dos cidadãos e os desafios
políticos para a Europa. O argumento central da obra parte do entendimento de
que a condução do sistema político português enfrenta uma crise de
governabilidade - fator que oferece um olhar ampliado sobre os desafios
dos partidos políticos e da esquerda, frente aos cortes orçamentários nas
políticas sociais e aos resultados diretos na educação, na saúde e no trabalho.
Essa percepção indica que, para que sejam superados os problemas estruturais do
sistema político e da conjuntura específica, seria necessária uma articulação
de fatores internos (crítica da governabilidade austeritária, rearticulação das
esquerdas, reforma política) com fatores externos (democracia europeia). Sua
visão destrincha os meandros de uma alternativa política concreta e de oposição
à atual conjuntura econômica e política, o que o autor faz de forma coerente e
exemplar.
No primeiro momento da obra ("A democracia sob o fogo da Troika e da
governação austeritária"), Freire analisa como a crise econômica recente
conduziu a uma grave crise na democracia portuguesa. Tomando como eixo o
"bloqueamento do sistema político" (p. 20), as políticas seguidas
pelo Partido Social Democrata (PSD, no governo desde 2009) tiveram uma
articulação aos ajustes econômicos impostos pela Troika, medidas que não foram
sufragadas eleitoralmente. A aceitação do programa das instituições financeiras
implicou na sistemática liberalização do Estado e seu recuo nas áreas sociais,
além do controle das relações de trabalho e aumento do desemprego, sobretudo
das camadas mais jovens e qualificadas da população. A governabilidade exercida
pelo PSD, de caráter "ultraliberal", encontrou campo aberto pelo
legado do Partido Socialista (PS), que nos últimos anos de governo empreendeu
medidas de liberalização que o aproximou da direita.
O segundo conjunto de artigos ("Política de alianças e dimensões de
conflito: dilemas das esquerdas") procura apresentar os fatores que
conduziram a uma crise das esquerdas portuguesas. Seguindo uma tipologia
analítica da esquerda - Freire, André; March, Luke (2012), A esquerda
radical em Portugal e na Europa: Marxismo, mainstream ou marginalidade? Porto:
Quidnovi - Freire aponta que parte dos problemas referentes à
governabilidade austeritária tiveram origem nas dificuldades da esquerda
portuguesa em se afirmar como oposição. Os motivos seriam a pendência do
sistema eleitoral português à direita, o "centrismo" do PS e seu
alinhamento com a direita, a impossibilidade de alianças entre as esquerdas e
sua desradicalização. Esses fatores geraram um entrave eleitoral, onde as
esquerdas perderam seus votos nas últimas eleições (especialmente nas
autárquicas). Nesses meandros, o ensaio de outras alternativas, como as
"listas de cidadãos" para as disputas autárquicas merecem destaque.
Mesmo assim, coloca-se o desafio às esquerdas (PS, Bloco de Esquerda e Partido
Comunista Português) em efetivar alianças.
A análise do sistema eleitoral português é o tema da terceira parte ("Os
portugueses, a política e a sua reforma"). Freire inicia o debate
refletindo sobre os resultados do estudo sobre o sistema eleitoral e as
possibilidades de reforma - Freire, André; Meirinho, Manuel; Moreira,
Diogo, (2008), Para uma melhoria da representação política. A reforma do
sistema eleitoral. Lisboa: Sextante. Ao analisar os modelos dos outros sistemas
políticos europeus, constata-se que, em Portugal, há um problema na qualidade
da representação, por constituir um sistema de "listas fechadas e
bloqueadas, conjugadas com um único segmento" (p. 79). Perante esse
diagnóstico, propõe a "representação proporcional de múltiplos
segmentos", que fortaleceria a aproximação entre eleitos e eleitores,
além de manter os níveis de proporcionalidade e governabilidade. Para isso,
Freire apresenta duas propostas que permitiriam a revalorização do sistema
político: uma "moção de censura construtiva" (um governo somente
poderia cair caso houvesse uma proposta alternativa, reforçando a estabilidade
de governos minoritários); e a permissão para "coligação de listas"
em nível nacional (permitindo a cooperação entre listas e conversão de votos em
mandatos). Se o atual sistema dificulta a personalização dos votos, por conta
das listas fechadas, há uma defesa do "voto preferencial" para
aproximar o eleitor de seus eleitos. A alternativa proposta é a de um sistema
misto, com círculos uninominais e plurinominais, e, um círculo nacional, que,
conjuntamente, resolveriam os problemas de proporcionalidade. A reforma
eleitoral teria, segundo o autor, o objetivo de aproximar os portugueses de
seus representantes e exigir uma mudança de atitude, além de reforçar a
governabilidade.
No último excerto ("A Europa e a política internacional") são
debatidos os desafios atuais da Europa (o modelo social, a política externa e a
democracia), bem como a crise neoliberal (e suas alternativas) e o
esfacelamento da "ideia" de Europa. Os argumentos questionam se a
ideia de coesão social e política, encabeçadas pela integração social, pela
regulação do mercado e por uma política social-democrata não estaria sendo
sufocada pela crise do neoliberalismo dos últimos anos. Constata-se que a
autonomia do sistema financeiro, que subordina as esferas sociais e políticas
em prol da desregulação capitalista, tem se constituído problema fundamental da
coesão europeia. Para o controle do capitalismo financeiro, uma repactuação do
modelo de Estado pode ser oferecida como alternativa ao neoliberalismo. Porém,
velhos problemas que ganharam nova roupagem também devem ser repensados: a
possibilidade de Estados multinacionais, o respeito pela ordem política
internacional, o separatismo e a religião na esfera pública.
Ao longo de Austeridade, democracia e autoritarismo, uma visão bastante lúcida
da realidade política portuguesa e europeia é apresentada, procurando caminhos
para a renovação. As alternativas passam por atribuir um novo papel para as
esquerdas, as quais são prudentemente criticadas de forma construtiva. Resta
saber quais as articulações possíveis entre democracia representativa e
democracia participativa, algo que escapa da análise do autor. A reforma do
sistema eleitoral ganha grande enfoque, mas coloca em dúvida se, ao serem
aplicadas formulações eleitorais semelhantes às de outros países (sobretudo dos
países nórdicos), seria possível dar conta de tal lacuna. O incentivo
representativo é válido, mas deve ser considerada a especificidade de anos de
ausência de participação política, uma herança dos anos de autoritarismo
salazarista. Notadamente, o autoritarismo neoliberal é de uma nova roupagem, no
que tange ao controle do Estado sobre a sociedade civil, mas compartilha da
premissa econômica de que a defesa de um modelo de desenvolvimento (no Estado
Novo, o colonialismo; na democracia contemporânea, o neoliberalismo
austeritário) deve ser seguido sem a necessidade de legitimação eleitoral. Essa
prática aumenta os riscos para as sociedades do Sul da Europa, que se colocam à
margem do modelo europeísta do centro. Assim, as instâncias representativas
ficam cada vez mais reféns de despolitização e do afastamento político, como
aponta Freire. Mas o desafio é suprir essa lacuna, fato que se pode orientar
por outros dois caminhos: um debate comparativo do presente e do passado,
procurando identificar os problemas políticos que persistem (domínio das
oligarquias e elites políticas, alijamento das classes trabalhadoras e
populares, de jovens e imigrantes na participação política, etc.); e a presença
de uma sociologia e ciência política "pública", de intervenção e
engajamento - fato que a presente obra cumpre com rigor. Não há dúvida de
que se trata de uma grande reflexão, de leitura obrigatória quando o assunto é
a busca de alternativas políticas.