Making Social Science Matter: Why Social Inquiry Fails and How It Can Succeed
Again
Bent Flyvbjerg, Making Social Science Matter: Why Social Inquiry Fails and How
It Can Succeed Again, Cambridge, Cambridge University Press, 2001.
A obra de Bent Flyvbjerg coloca-nos três questões centrais que, tendo como
ponto de partida o domínio epistemológico clássico, nos orientam para duas
temáticas transversais: acção e valor. A primeira é central ao domínio
epistemológico num sentido estrito — o que é o conhecimento? — e assume-se como
um ponto de partida estruturante: é aqui que reside a separação entre as
"ciências naturais" e as "ciências sociais". A segunda
procura introduzir uma nova dinâmica na percepção do que é o conhecimento e de
como ele é apropriado pelos indivíduos em processos de aprendizagem e acção —
como se adquire o conhecimento e as capacidades?Por fim, a terceira questão
assume um carácter valorativo ao introduzir a questão dos fins que regulam as
duas questões anteriores — para que serve o conhecimento?
Se as questões apresentadas não são propriamente inovadoras, entendemos que há
um certo grau de inovação na forma como o autor procurou encontrar respostas e
como estas se foram constituindo, quer em novas questões, quer em
possibilidades de intervenção no real. Tenhamos em conta que Bent Flyvbjerg é
um académico do planeamento, com uma experiência adquirida na relação entre o
Regional Planning Authority do Ribe County Council da Dinamarca e a
Universidade de Aalborg 1, instituição onde lecciona e investiga. Não tendo
tido o privilégio de conhecer pessoalmente o autor, penso que este dado
biográfico pode ser relevante para o entendimento do carácter da sua obra.
Esta pode ser entendida em duas partes fundamentais. Uma primeira, que tem como
ponto de partida a primeira questão enunciada — o que é o conhecimento?—, situa
as ciências sociais num domínio epistemológico próprio. Ao fazê-lo, começa por
procurar respostas para uma segunda questão, mais específica, mas determinante
na forma como o trabalho científico pode ser entendido neste domínio: é
possível a teoria em ciências sociais? Se a sua reflexão parte de uma visão de
"teoria ideal" definida através de seis propriedades fundamentais
2, o autor sugere que façamos um percurso crítico em torno de quatro argumentos
acerca da possibilidade e/ou impossibilidade de produzir teoria em ciências
sociais: o argumento pré-paradigmático de Richard Rorty; o argumento
hermenêutico- fenomenológico de Anthony Giddens e Harold Garfinkel; o argumento
da contingência histórica de Michel Foucault; o argumento das competências
tácitas de Pierre Bourdieu e Hubert Dreyfus. Da avaliação deste percurso
conclui que os princípios a verificar na avaliação de uma teoria científica não
são concretizáveis em ciências sociais e que, como tal, não é possível fazer
teoria neste domínio científico. É necessário, portanto, rever os princípios
epistemológicos que servem de fundamento à constituição e desenvolvimento do
trabalho científico, assim como as formas de aprendizagem e desenvolvimento de
capacidades. E é precisamente através da análise dos processos de aprendizagem
proposta por Dreyfus que Flyvbjerg começa a delinear a sua proposta de
reformulação epistemológica.
A tipologia dos processos de aprendizagem desenvolvida por Hubert Dreyfus 3,
não anulando a importância da lógica ou das regras, diz-nos que qualquer
desempenho humano só pode alcançar a perícia se for intuitivo, sincrónico,
holístico, isto é, compreendido, na medida em que uma dada situação liberta uma
imagem que tudo engloba: problema, objectivos, planos, decisão e acção. Dreyfus
sugere-nos o termo a-racional como forma de superar a separatividade
introduzida pela razão: o termo racional foi tomado por pensamento analítico,
isto é, com separação consciente do todo em partes, e esta divisão originária
levou a uma divisão final na compreensão do mundo e na compreensão do homem
como um ser total. O termo a-racional, por contraste, estando conotado com o
comportamento situacional sem a divisão analítica do todo em partes e sem a
avaliação efectuada com base em regras independentes do contexto, pressupõe uma
integração do conhecimento na acção. E a sua implicação central é a de que a
acção levada a cabo com altos níveis de competência só pode ser realizada com
base numa apropriação intuitiva
4
do contexto liberta da formalização e do constrangimento de regras rígidas.
Pierre Bourdieu
5
, na mesma linha de reflexão, sugere também que a actividade humana não pode
ser reduzida a um conjunto de regras, referindo-se ao indivíduo
"virtuoso" e à sua acção ("perícia") para exprimir um
significado equivalente ao "perito " de Dreyfus e à sua acção
("excelência "). Os termos, que poderão dar origem a
desenvolvimentos conceptuais, explicitam não só o agente, como também os
processos de acção que ele desencadeia. Ora, está assim aberto o caminho para a
resposta à segunda questão central da obra de Flyvbjerg e que articula
conhecimento com acção: o conhecimento e as capacidades são adquiridos através
da experiência.
Se a teoria não consegue apropriar- se do contexto porque procura princípios
universais e o conhecimento pericial é dependente do contexto, então os novos
princípios de orientação epistemológica devem ser ancorados no contexto. Esta
proposta de reorientação ganha forma na segunda parte da obra, onde o autor
procura uma alternativa epistemológica para a situação actual das ciências
sociais. E fá-lo tendo como ponto de partida a ideia aristotélica de phronesis,
que procura desenvolver em três possibilidades de interpretação contemporânea:
(i) o poder explicativo do exemplo pode encontrar uma fórmula metodológica no
estudo de caso; (ii) deve relacionar-se valor e poder nos contextos de acção;
constitui este diálogo com base nas reflexões propostas por Friedrich
Nietzsche, Michel Foucault e Jurgen Habermas; (iii) apresenta-nos um conjunto
de princípios metodológicos que definem os contornos da teoria social de
carácter phronético e que têm como propósito fazer a ligação entre uma mudança
de carácter epistemológico e uma prática científica concreta. Vejamos em
primeiro lugar como constitui a revisão contemporânea da ideia de phronesis.
A ideia aristotélica de phronesis é-nos apresentada por Flyvbjerg, não como uma
reflexão filosófica em torno do conceito, mas sim como uma apropriação prática
da sua essência com vista a potenciar uma mudança epistemológica que serve
fundamentalmente para constituir a ideia de valor como princípio epistemológico
das ciências sociais. Associando o ideal científico moderno, desde o
iluminismo, à virtude intelectual a que Aristóteles chamou episteme e que diz
respeito aos princípios universais e à produção de conhecimento que é
invariável no tempo e no espaço e que se alcança com a ajuda da racionalidade
analítica 6, sugere-nos que a viragem para os valores deve ser acompanhada de
uma viragem em direcção à presença do contexto na formulação da teoria, tal
como esta é proposta na idealização de duas outras virtudes aristotélicas:
techne e phronesis. Se a techne encontra uma correspondência terminológica
actual no termo técnica, sendo entendida como conhecimento pragmático,
variável, dependente do contexto e orientado para a produção — fundamentado por
uma racionalidade prática instrumental orientada para um objectivo consciente
—, a phronesis não tem uma correspondência actual. Ela representa o
conhecimento ético e a deliberação sobre valores com referência à praxis. Sendo
um conhecimento pragmático, variável e dependente do contexto, tal como a
técnica, ela orienta-se para a acção, baseando-se numa racionalidade de valor.
Não procura um fim objectivo consciente, mas sim a orientação de uma ética
situada no contexto. Ora, Flyvbjerg assume que techne e episteme estão
sobrevalorizadas e sobejamente desenvolvidas na epistemologia moderna, sendo
fundamental dar um espaço de crescimento à ideia de phronesis.
Mas como ganha forma esta mudança de orientação? O papel das ciências sociais
será o de desenvolver análises e interpretações do estatuto dos valores e dos
interesses nas sociedades contemporâneas com vista ao comentário e à acção
social, isto é, à praxis. O ponto de partida de uma análise clássica de tipo
phronético pode ser identificado através de três questões racionais valorativas
(Para onde estamos a dirigir- nos? Essa direcção é desejável? O que deve ser
feito?) que orientam a acção do cientista e do trabalho científico e que devem
incorporar os pressupostos anteriormente enunciados. Em termos práticos, a
fórmula metodológica proposta para esta reorientação valorativa centra-se no
estudo de caso como possibilidade de investigação científica aplicada:
ancorando-se no contexto, em metodologias mistas (qualitativas e
quantitativas), pressupondo uma boa narrativa como forma de transmitir o
conhecimento, aproxima-se dos sujeitos em acção e assume também um carácter
etnográfico. Mais ainda, ao supor que cada caso é um caso, contribui para que
se desenvolvam metodologias de análise e competências de investigação
diferenciadas para cada situação, por um lado, e para que se transmita de forma
eficaz, simples e clara a mensagem científica e o conhecimento adquirido pela
experiência da investigação, por outro. E assim está constituída uma via
possível de resposta à terceira questão inicial apresentada pelo autor: o
conhecimento permite dar forma aos valores na prática humana.
Mas, se estas dimensões — conhecimento, prática científica e acção social — são
objecto de um olhar epistemológico, do ponto de vista metodológico, a análise
centra-se na articulação entre práticas sociais, valores e poder: é através da
articulação entre valor e poder que se podem compreender os processos de
transformação social, diz-nos. E ao estabelecer um diálogo entre Nietzsche,
Habermas e Foucault salienta não só a importância da introdução de clareza na
definição do processo democrático e na constituição de ideais abstractos que
justifiquem e orientem os domínios de produção legislativa, de desenvolvimento
institucional e planeamento estratégico, mas também a necessidade de
desenvolver uma analítica do poder centrada nas relações em detrimento das
estruturas. O poder será então entendido como o potencial que cada indivíduo,
grupo ou instituição pode assumir na transformação do real, através da sua
prática e da sua acção, orientando-se por valores.
É neste contexto de transformação que se chega à última proposta da obra: a
apresentação de princípios metodológicos de tipo ideal. Eles definem
possibilidades de desenvolvimento operatório de uma investigação de tipo
phronético, mas são apresentados como um caminho possível, e não como um ponto
de chegada definitivo: (i) focagem nos valores, colocando três questões
clássicas: para onde vamos? Esse caminho é desejável? O que deve ser feito?;
(ii) o poder no centro da análise: poder como produtividade e positividade, não
apenas como restrição e negatividade; (iii) ênfase nas pequenas coisas: a
ênfase dada à minúcia, que se opõe de forma directa a muita da sabedoria
convencional acerca da necessidade de enfoque nos "problemas
importantes", tem o seu fundamento na experiência fenomenológica, que nos
diz que as pequenas perguntas nos levam muitas vezes a grandes respostas; (iv)
olhar para a prática antes do discurso: este tipo de proposta tem uma relação
metodológica próxima, mas não exclusiva, com a "vida quotidiana ";
(v) estudar os casos e os contextos: a investigação de carácter phronético
opera em termos de racionalidade prática e do juízo e estes operam em função da
experiência prática; assim, a racionalidade prática e os juízos são melhor
compreendidos se vistos como estudos de caso narrados e expostos; (vi)
perguntar "como?" fazendo narrativa: a narrativa é a metodologia de
exposição mais adequada para expor as respostas possíveis à questão central da
phronesis: "como?"; (vii) associar agência e estrutura: os actores
e as suas práticas são analisados em relação às estruturas; as estruturas são
analisadas em termos de agência; assim, os actores e as estruturas estão
interligados através da agência; (viii) dialogando com uma polifonia de vozes:
a investigação de carácter phronético é dialogante no sentido em que inclui e
encontra-se incluída numa "polifonia de vozes" em que a autoridade
máxima não é atribuída ao investigador.
A obra de Bent Flyvbjerg vem confirmar que é possível, e não só é possível como
parece ser desejável, que a prática profissional levante questões sérias e
produtivas à prática científica e à definição de orientações epistemológicas.
Tendo como ponto de partida uma situação de definição e escolha política no
domínio do planeamento urbano, o autor propõe-nos um itinerário de questões
teóricas e epistemológicas que permita fundar a questão inicial num contexto
científico e valorativo, com uma capacidade de diálogo e reflexão notáveis.
No entanto, ao propor esse itinerário, verifica que a prática científica e as
questões epistemológicas estão profundamente separadas da prática humana. E,
partindo deste pressuposto, a sua procura aponta para a necessidade de
encontrar ligações fortes entre uma teoria do conhecimento (epistemologia) e
uma teoria da acção (ética) que sirvam de referência fundamental para o
processo de escolha política. É aqui que articula de forma inovadora um
conjunto de referências fundamentais no pensamento sociológico, epistemológico
e filosófico com vista à constituição de um domínio de reflexão próprio que se
nos afigura de grande valor prático e teórico. Se abordagens específicas deste
trajecto já vinham sendo definidas por autores de renome — vejam-se os casos de
Touraine
7
e Bourdieu —, assim como pela corrente teórico-metodológica da investigação/
acção, a obra de Flyvbjerg é um contributo enriquecedor para a última das três
questões centrais que nos coloca — para que serve o conhecimento?
E, se não for o caso de o leitor se sentir particularmente intrigado ou
fascinado por este tipo de reflexão, a mera constatação de que muita da
produção científica no domínio das ciências sociais fica deixada ao
esquecimento, por um lado, e de que há muitas práticas humanas que podiam ser
enriquecidas com o conhecimento científico deste domínio específico, por outro,
parece ser justificação suficiente para que, pelo menos, se leia esta obra e se
entre com seriedade no debate que ela propõe.
João Pato
1
Aalborg ficou conhecida como uma das primeiras experiências de planeamento
realizadas na Dinamarca.
2
A teoria ideal deve ser: (i) explícita; (ii) universal; (iii) abstracta; (iv)
discreta; (v) sistemática; (vi) completa e capaz de prever.
3
H. Dreyfus, Mind over Machine, Nova Iorque, Free Press, 1986.
4
Flyvbjerg define intuição como "the ability do draw directly on one’s
experience — bodily emotional, intellectual — and to recognize similarities
between these experiences and new situations. Intuition is internalized; it is
part of the individual" (p. 10).
5
P. Boudieu, Esquisse d’une théorie de la pratique, précédé de trois études
d’ethnologie kabyle, Genebra, Librairie Droz, 1972, e Le sens pratique, Paris,
Les Éditions de Minuit, 1980.
6
Com uma correspondência aos princípios identificados anteriormente para a
teoria ideal e pode ser entendida como conhecimento científico independente do
contexto.
7
A. Tourraine, Le retour de l’acteur, Paris, Fayard, 1984.