O Século XIX Português
M. Fátima Bonifácio, O Século XIX Português, Lisboa, Imprensa de Ciências
Sociais, 2002.
Em O Século XIX Português, M. Fátima Bonifácio realiza um percurso
interpretativo por esse longo período histórico construído na forma de um
relato protagonizado por um actor político de fisionomia cambiante: o
radicalismo. A autora parte de uma dicotomia clássica, aquela que, desde
praticamente finais do século XVIII (mais claramente desde a Revolução
Francesa), põe em confronto o liberalismo com um projecto político distinto em
substância, como é a democracia.
Este confronto surge essencialmente da suposição de que, enquanto o liberalismo
remete na sua origem para uma antropologia e ontologias de signo
individualista, a democracia sustém-se numa consciência republicana (no sentido
deres publica). Esta diferença de partida implica que o projecto liberal,
defensor da igualdade jurídica e da existência de um regime político
representativo, cria um marco que se revela insuficiente para aqueles que
defendem a realização das aspirações de liberdade a partir de uma perspectiva
democrática. O radicalismo, na interpretação de Fátima Bonifácio, que constitui
uma expressão diversificada ao longo do século do ideal democrático, postulará
que a igualdade civil ou jurídica deve ser acompanhada por igualdade política.
Desta maneira, seria imprescindível que "todo o poder de Estado derivasse
unicamente do sufrágio da nação; e requeria ainda que o "povo"
fosse genericamente ouvido e atendido" (p. 16).
Mas, além do mais, o impulso revolucionário que percorre o século XIX teve no
radicalismo o seu principal promotor. Desta forma, o século XIX é
essencialmente entendido como um século atravessado por distintos processos
políticos que, de forma recorrente, renovam as controvérsias que deram forma à
história da Revolução em França e das décadas posteriores numa boa parte da
Europa. Durante todo o século XIX evidencia- se a impossibilidade de fazer do
liberalismo moderado (doutrinário na sua origem) e do radicalismo democrático
projectos convergentes. Em Portugal, a constitucionalização da monarquia em
1822 cria na prática um espaço político que exclui o povo, em cujo nome o
radicalismo hasteia recorrentemente a bandeira da revolução. Desde meados do
século, como nos explica Fátima Bonifácio em diversas ocasiões, a intenção de
"republicanizar a monarquia" não é senão o desejo de ampliar o
marco de liberdades e direitos para acolher o actor povo (ainda amorfo) na vida
política institucional. Definitivamente, o liberalismo revela-se como um
discurso a favor da liberdade actualizada na representação e como um projecto
que, ao instalar-se no poder, procura manter a ordem, para o que se sente
impelido a desenhar um sistema político sustentado na exclusão. Em Portugal, o
radicalismo, como impulso democratizante, ou seja, como crítica à exclusão que
o constitucionalismo e a prática liberais comportam, actualizar-se-á
secularmente num trânsito da monarquia para a república.
De acordo com as chaves descritas, Fátima Bonifácio vai examinando os
diferentes processos que balizam a história de Portugal no século XIX. Assim,
no que se refere à revolução vintista, a chave acaba por ser quem mobiliza o
povo e, como questão anexa à anterior, quem o representa, postulando-se como um
dos seus porta-vozes o exército, o qual, por outro lado, se encontra
profundamente dividido. Nesta conjuntura, como evidencia a formação tardia da
Guarda Nacional, a necessidade de contar com o povo convive com o medo do mesmo
(expressão histórica desta ambiguidade é a circunstância de que, uma vez
constituída, a Guarda Nacional estará permanentemente ao serviço da revolução,
pelo menos até 1838).
A Carta de 1826 sancionava um sufrágio restringido num momento em que, ademais,
o povo já se tinha mobilizado durante a guerra civil, ou seja, já se tinha
corporizado enquanto actor político. O Partido Popular, a oposição
constitucional ou patriota, criticava o açambarcamento de cargos e a sua
exclusão de qualquer tipo de benefícios. O seu programa consistia na reforma da
Carta, economias e "desacumulações". A prática política que se
institui então implicava que os governos se formassem a partir de facções ou
coligações de facções, sem que a rainha tivesse a autoridade suficiente para
arbitrar nos conflitos surgidos entre estas. Desta forma, o trono acabou por
estar ao serviço dos partidos, enquanto o poder se tornava dependente do
exército; o problema é que este último se encontrava ainda dividido, o que
implicava instabilidade.
Perante a insatisfação que a situação anterior comporta, o setembrismo virá
retomar o tema da revolução. Esta seria orquestrada, chegado o momento, pelos
grupos políticos, as guardas nacionais de Lisboa e os chefes políticos do
Partido Popular. A revolução, contudo, aterroriza, e os arsenalistas serão em
breve considerados "irracionais". Mesmo um radical como Passos
Manuel poderia mostrar-se em desacordo com a sua frontal crítica à monarquia e
à Igreja e a sua estratégia de actuação, baseada na ideia, de ressonâncias
jacobinas, de que a liberdade tem de estar em contínuo movimento. O resultado
reactivo da experiência setembrista será, no imediato, a Constituição de 1838
e, a médio prazo, o aparecimento de Costa Cabral, cujo projecto não é apenas
conter a revolução, mas antes suprimir qualquer opção política que apoie tais
procedimentos. Como nos adverte Fátima Bonifácio, o fracasso do setembrismo
ilustra a impossibilidade histórica de constitucionalizar ou domesticar o
radicalismo. De facto, com o passar do tempo, o radicalismo ir-se-á
diversificando, mas permanecerá "irracional " em qualquer das suas
manifestações. Por outro lado, a estada de Cabral no poder acabará por
contribuir para a radicalização da vida política. A vontade de asfixiar o
radicalismo será uma herança difícil de gerir. Assim, na origem da guerra da
Patuleia está a tentativa, por parte de Saldanha logo que assume o poder, de
exclusão do radicalismo. Na prática, este confronto constitui um impasse na
tentativa de sustentar o edifício da política sobre os hipoteticamente sólidos
pilares do moderantismo. Cabral seria novamente convocado pela rainha quando,
por outro lado, a revolução já tinha sido derrotada na Europa. Nesta nova
conjuntura, o seu doutrinarismo tinha perdido parte da sua razão de ser.
Saldanha ensaiará então uma nova revolução, apoiada inteiramente num exército
que tinha superado a divisão tradicional entre militares cartistas e
setembristas radicais. Sobre a vitória do pronunciamento se sustentaria o
regime da Regeneração.
O radicalismo dividir-se-á novamente durante a Regeneração. Segundo nos conta
Fátima Bonifácio, as diferenças dentro do Partido Histórico entre a "unha
branca" e a "unha negra" reproduzem as divisões e tensões
entre o setembrismo e o radicalismo. O republicanismo, por seu turno,
desinteressou-se das formas constitucionais ao longo deste período.
Precisamente por este motivo, surgiu a opção de republicanizar a monarquia. O
primeiro passo nesse sentido consistiu em abater a Igreja. De facto, as
divisões intensificaram- -se quando surgiu em cena a questão religiosa. Foi no
contexto da polémica aberta em torno das acusações lançadas pelo radicalismo
(no sentido de que o desembarque das Irmãs da Caridade francesas representava a
ponta de lança de uma ofensiva ultramontana em linha com a Concordata) que a
monarquia e a Igreja começaram a vincular-se e a ser consideradas instituições
anómalas. Em suma, um contexto de amplas transformações sociais potenciou a
vivência de subordinação que o vínculo histórico entre a religião e a classe
privilegiada representava. Segundo nos diz a autora, as identidades políticas
deveriam passar, daí em diante, pelas posições adoptadas relativamente a esta
questão.
Em 1862, Loulé, que presidia ao governo em nome do Partido Histórico, foi
obrigado a definir a sua postura em relação a estas questões. O novo governo,
formado por membros de todas as opções radicais, tratará de expulsar as
corporações religiosas do ensino e de regular inteiramente o mesmo a partir do
Estado. Este projecto, como nos adverte Fátima Bonifácio, manifesta uma vez
mais a distância entre os conceitos de liberdade defendidos pelo liberalismo e
pelo radicalismo. Este último defende uma política de secularização promovida
de forma activa pelo Estado, ao qual se atribui o poder de decidir e actuar em
nome do interesse geral, que se sobrepõe, neste caso concreto, aos privilégios
defendidos por uma corporação como a Igreja. Enquanto não cessavam os tumultos
na cidade de Lisboa, a proposta sobre o ensino permaneceu sequestrada nos
Pares, o que veio a demonstrar que o governo de Loulé era incapaz de converter
o anticlericalismo num programa político concreto. O governo de Loulé acabaria
por cair ao fim de dois anos, tornando-se evidente a impossibilidade de
governar em conjunto com o radicalismo; daí em diante governar-se-ia contra ele
e, para o conseguir, concebeu-se a "fusão" (1865).
A "fusão" consistiu numa coligação de governo entre regeneradores e
a "unha branca" dos históricos e durou dois anos. Durante este
período, a concórdia institucional contrastou com um estado generalizado de
insurreição latente. Uma massa urbana politizada, à qual os governos da unha
branca de Loulé tinham voltado as costas, agitava as ruas, particularmente as
de Lisboa. Em 1870 Saldanha voltou a entrar em cena. Apoiado pelo exército,
representava a possibilidade de subtrair o governo às divisões partidárias e à
radicalização política nas ruas mediante o estabelecimento de um poder
autoritário. Levou a cabo um golpe de Estado e começou a governar de forma
ditatorial, aprovando um conjunto de medidas destinadas a purificar a política.
Os Partidos Regenerador, Reformista e Histórico opuseram-se aos seus métodos de
governo e Saldanha acabou por demitir-se.
No calor dos processos anteriores, a chamada geração de 70, composta por
intelectuais formados em Coimbra, começou a fazer pressão em favor da
modernização da monarquia, de cujo atraso culpava a Igreja e os valores da
religião católica. Em qualquer caso, na década de 70 sucedem-se anos de
optimismo graças à redução do défice operada pelo governo de Fontes Pereira de
Melo. Não obstante, numa conjuntura de nova crise financeira, a aspiração dos
progressistas ao governo esbarra na preterição, à qual, por sua vez, o
progressismo responde intensificando a sua campanha, agora não apenas contra
Fontes, mas também contra o rei, a quem acusava de privilegiar um determinado
grupo político. Fontes procura desacreditar o progressismo, aprovando uma lei
de ampliação do voto que implicaria praticamente o sufrágio universal
masculino. Contudo, as eleições de Outubro de 1878 não proporcionaram um
resultado positivo para o Partido Progressista; a partir de então, as suas
denúncias centraram-se na monarquia. Nos anos 70, de acordo com Fátima
Bonifácio, o radicalismo, nas suas diferentes manifestações (histórica,
penicheira, republicana, federalista e socialista), embora não se tenha
extinguido, não representa na prática uma ameaça séria à ordem estabelecida.
A situação descrita convive com uma preocupação crescente pelo império
africano, em consequência do relativo desafogo financeiro do Estado e do
interesse das potências europeias por este território. Em 1880, as discussões
sobre a ratificação do Tratado de Lourenço Marques viriam a coincidir com a
comemoração do centenário de Camões. Os republicanos promoveram as celebrações,
apropriando-se delas para exaltarem a pátria portuguesa, a qual definem como
idealmente construída a partir de vontades concorrentes que convergem no
interesse geral. O republicanismo denunciará que a oligarquia monárquica tinha
impedido a criação de uma nação política ao estilo da que postulam:
"Manteve os portugueses alheados da nação e uns dos outros, absortos na
imediatez dos seus interesses egoístas e inteiramente falhos de consciência da
sua unidade nacional" (p. 98). Nas eleições de 1881, e novamente nas de
1883, o republicanismo obtém, de facto, resultados eleitorais mais do que
satisfatórios.
A euforia colonial e, particularmente, a defesa dos interesses portugueses
independentes da tutela britânica coincidiram, além disso, com a irrupção em
cena da política de massas. Num contexto de radicalização com o
anticlericalismo e a república como temas centrais da política nacional, Fontes
Pereira de Melo considerou necessário deixar o progressismo ir para o governo.
Foi devido ao anterior que se concebeu a rotação, precedida de uma reforma
eleitoral que tinha garantido a viabilidade da mesma.
Após a morte de Fontes e Braamcamp, chegaria também a extinção do sistema
rotativo, acelerada depois da crise do ultimato em 1890. Esta crise sobrevém
durante uma "onda de protesto patriótico" e contribui para a
intensificação da mesma. Daí em diante, e embora o Partido Republicano não
esteja em condições de assumir o poder, republicanismo e patriotismo
transformar-se-ão numa mesma coisa. A crise, além disso, desorientou o Partido
Progressista e destruiu os equilíbrios que sustentavam o Partido Regenerador.
Simultaneamente, introduziu divisões no seio do Partido Republicano, que não
soube conduzir com unanimidade o protesto patriótico. Neste contexto de divisão
emergiu a figura de João Franco e o projecto da "Nova Vida". A
intenção era dar prioridade a um Estado que representasse organicamente a
sociedade (acima das lutas partidárias) e à frente do qual se encontrasse o rei
(como nos diz Fátima Bonifácio, tratava-se de fortalecer a monarquia
democratizando a realeza). Na década de 90, o Partido Republicano, depois do
fracasso da revolta de 1891 no Porto, dissolver- -se-á em lutas intestinas. Não
obstante, na história das três últimas décadas do século XIX, com o
protagonismo crescente do republicanismo como grande tema nacional, já não
haverá possibilidade de inverter o processo.
Em O Século XIX Português, Fátima Bonifácio mostra-nos de que modo o
radicalismo se revela indispensável para fazer a política e de que modo, até
certo ponto, entorpece as transformações em curso, já que se torna, com
frequência, incontrolável. Por outro lado, a história das restantes opções
políticas é narrada em parte como a da reacção perante o desafio que o
radicalismo constitui. Rebeliões militares, "ditaduras ", acordos
de exclusão (fusão) ou de inclusão (rotação) deram forma a experiências
políticas cujo propósito central foi o de controlar ou aniquilar o radicalismo
tanto nas instituições como na sua versão extraparlamentar. Fátima Bonifácio,
definitivamente, conta-nos de modo magistral uma breve história do século XIX
na qual a trama principal gira em torno das relações por vezes tumultuosas
entre as opções radicais no interior e à margem do liberalismo.
Noelia González Adánez