O Parlamento e a Imprensa Periódica Beirã em Tempos de Crise (1851-1926)
António dos Santos Pereira, O Parlamento e a Imprensa Periódica Beirã em Tempos
de Crise (1851-1926), Porto, Edições Afrontamento / Assembleia da República,
col. "Parlamento", n.º 11, 2002, 262 páginas.
Uma das tendências mais seguidas pela historiografia contemporânea portuguesa
nos últimos anos tem sido a da abertura aos estudos regionais ou locais,
delimitados como case-studies que permitem ilustrar tendências ou descobrir
especificidades, assim enriquecendo posteriormente sínteses mais alargadas, no
âmbito da história política, social e económica. É justamente nesse enfoque
regional e local que se insere o livro de António dos Santos Pereira. Oscilando
entre o registo da ciência política e o da história, o autor estabelece como
seu objecto a análise crítica do discurso político na segunda metade do século
XIX e no primeiro quartel do século XX, realizada quer através da imagem do
Parlamento e dos parlamentares veiculada pela principal imprensa periódica da
região da Beira Interior, quer através da agenda temática beirã que esses
mesmos parlamentares apresentavam e discutiam em São Bento (v. p. 7).
Este objectivo obriga a precisar um pouco mais de que trata esta obra: não
estamos perante uma história da imprensa ou da opinião pública na Beira
Interior, como uma leitura apressada do título poderia fazer crer; nem estamos
perante uma história do Parlamento entre a Regeneração e o colapso da
República, embora este seja um assunto que vai aparecendo descontinuadamente ao
longo do texto; tão-pouco se trata de uma monografia sobre a história político-
social das terras beirãs, assunto que teria implicado um investimento na
cronologia, na geografia, na política local e em indicadores sócio-económicos e
culturais locais muito mais vastos e, porventura (ainda) impossível de fazer,
no estado actual da historiografia portuguesa. Tendo um pouco de tudo isto, o
livro de Santos Pereira nunca opta por um só daqueles caminhos — facto que se
repercute muitas vezes na falta de um fio condutor na escrita — ou por uma tese
que lhe sirva de esqueleto. A montante do próprio conteúdo da obra, uma
referência não pode deixar de ser feita ao próprio âmbito cronológico do livro
(1851-1926) e à forma como esse arco temporal é classificado: "tempos de
crise". A não ser ao nível muitíssimo geral da longa duração — que
requereria, ainda assim, uma justificação contextualizadora —, os 75 anos que
mediaram entre os golpes de Saldanha e de Gomes da Costa não constituíram um
tempo uniforme de crise. Para não ir muito longe, o Portugal fontista da
Regeneração é um tempo de expansão, qualitativamente diferente dos anos da
primeira metade do século XIX (esses sim de crise), e termina, enquanto modelo
de desenvolvimento, com o choque do fim do século, que levará a Monarquia da
contestação aberta (pós-1890) à substituição por um regime republicano com
contornos de ciclo económico-social diferentes dos da Regeneração. Mesmo na
Beira Interior, onde os ritmos de mudança não fluíam por certo à velocidade dos
de Lisboa, estas nuances cronológicas devem ter sido sentidas.
O livro de António dos Santos Pereira divide-se em duas partes. A primeira,
intitulada "Pretos, brancos e outros: a Beira Interior e o Parlamento no
tempo da Monarquia", começa por traçar quais eram os ecos e a imagem do
discurso e do agir políticos dos parlamentares beirões na imprensa periódica
local, isto é, no jornalismo fazedor de opinião publicado no eixo Castelo
Branco- Covilhã-Guarda e terras adjacentes (v. pp. 13-32). O diagnóstico
apurado é globalmente negativo, confirmando quanto os portugueses (e sobretudo
a partir das últimas décadas do século XIX), neste caso os beirões, se sentiam
distantes da instituição parlamentar, críticos da sua obra, cépticos acerca do
seu funcionamento e, em geral, sub-representados por aqueles mesmos que, de
volta à aldeia, de tempos a tempos lhes arrancavam o voto. Segundo a leitura do
autor dos jornais locais, faltavam à política parlamentar portuguesa em geral
"construções mentais programáticas" de fôlego, sobejando-lhe, por
contraste, "pragmatismo " e "imediatismo". Daí o
discurso jornalístico, que veiculava uma visão baixa da política, do poder, das
eleições, dos partidos, naturalmente mais cáustica quando se estava na oposição
e mais esperançada quando se alinhava pelo poder. O segundo capítulo da
primeira parte, "Os recenseamentos, as campanhas e as eleições, os
partidos e os deputados" (pp. 33-50), exemplifica e confirma, localmente,
o que se sabe serem as práticas políticas da Monarquia constitucional — os
caciquismos familiares, a mecânica da compra do voto, a "chapelada"
eleitoral, tudo contribuindo para o descrédito do regime parlamentar/
monárquico, que se acentuou nas últimas décadas do século XIX. De acordo com o
autor, o "catonismo político", ou seja, um discurso de apelo à
virtude pública e à pureza de ideais, como veículos de melhoramento moral da
política e de correlativo saneamento da pátria, foi um tópico uma e outra vez
hasteado por figuras gradas beirãs, que lograram altear a sua voz, a ponto de
serem escutadas por todo o país (v. pp. 84-86).
As partes mais originais da obra são precisamente aquelas em que Santos Pereira
saiu do abstracto da análise discursiva e desceu ao espaço concreto e aos
homens históricos para traçar um esboço de prosopografia da elite política
beirã e da geografia partidária daquela região. É então que se encontra a chave
explicativa para o título de "Pretos, brancos e outros": na sua
expressão mais simples, a política beirã da segunda metade de Oitocentos era a
luta entre os "brancos" de Francisco Tavares Proença, o lugar-
tenente do Partido Progressista, e os "pretos" de Manuel Vaz Preto
Geraldes, o célebre cacique albicastrense que dominou a máquina do Partido
Regenerador e, depois, do Partido Constituinte nas terras da Beira.
Cartografada num mapa, a mancha progressista beirã iria, de acordo com a
reconstituição do autor, de Castelo Branco ao Fundão, com prolongamentos para
Idanha-a-Nova, Proença-a-Nova e Belmonte, enquanto os regeneradores dominavam,
quase por absoluto, o Vale do Zêzere (Beira do Pinhal, Vila de Rei, Sertã e
Oleiros), registando- se uma maior divisão do eleitorado nas áreas da Covilhã e
de Vila Velha de Ródão (v. pp. 48-49).
O capítulo que fecha a primeira parte intitula-se "A matriz beirã no
Parlamento: o desenvolvimento agrícola e a esfera transformadora, as vias de
comunicação, a questão social, a questão religiosa e outros temas " (pp.
51-86). O ângulo de análise mudou. Depois de analisada a presença do Parlamento
na Beira, o autor averigua aqui a presença da Beira no Parlamento, ou seja,
como, quando, onde e até que ponto funcionavam os circuitos de comunicação,
pressão e representação das reivindicações locais no interior da sede do poder
legislativo em Lisboa, a propósito das principais temáticas que preocupavam o
quotidiano das elites beirãs — a propriedade da terra, a comercialização
agrícola, a esfera transformadora (lanifícios e sedas), as vias de comunicação,
a questão social, a questão religiosa, a instrução, a saúde, as reformas
administrativas, o associativismo e até a condição feminina. Foi sobre estes
assuntos que pediram a palavra os parlamentares eleitos pela Beira. O tom
desalentado e crítico com que a imprensa periódica local ia acompanhando as
iniciativas, propostas e discursos dos seus emissários em São Bento deixa
adivinhar que não foi muito, no global, o que a Beira obteve dos governos de
Lisboa nas últimas décadas do regime monárquico.
A segunda parte da obra — sob o título geral "Entre a república de Catão
e o império do Messias anunciado " — realiza um itinerário semelhante ao
traçado para a Monarquia, mas agora aplicado aos anos de 1910-1926. A despeito
de muitas e dispersas esperanças que percorriam não apenas a Beira mas o país
inteiro, a chegada da República não significou a investidura no poder de um
qualquer Catão impoluto. Quando chegavam aos jornais publicados na Beira, a
política republicana, o parlamento e os deputados republicanos já apareciam,
sem solução de continuidade, com os mesmos vícios e os mesmos egoísmos do
passado monárquico, pese embora a cultura cívica da imprensa se esforçasse,
aqui e ali, por elevar o magistério da opinião pública (v. pp. 91-98).
Seria a Beira Interior uma região intrinsecamente reaccionária e, por isso,
adversária declarada da República? O problema é enfrentado pelo autor no
segundo capítulo desta segunda parte, "A geografia do republicanismo
beirão" (pp. 99-108). Para Santos Pereira, a republicanização da Beira
foi um processo filho de coisas tão pouco políticas como "o aumento da
circulação automóvel", "o incremento da luz eléctrica",
"o desenvolvimento das redes telefónicas " ou "as primeiras
experiências da telegrafia sem fios" (p. 99). Mas, se é verdade que isto
foi importante e que aquele processo efectivamente se deu, não resulta claro
para o leitor qual foi a extensão geográfica da republicanização na Beira e a
sua profundidade sociológica, pesem embora as listagens de associações, clubes,
centros e profissionais republicanos apresentadas. Este é talvez o ponto em que
o livro é mais impreciso — e até contraditório, tanto afirmando que
"focos monárquicos" permaneceram na Beira com uma expressão
"muito forte", para logo contrapor que o republicanismo se impôs
"rapidamente no interior português " (p. 108).
Da presença da Beira, dos seus interesses e das suas vozes no novo Parlamento
republicano pós-1910 trata o último capítulo (pp. 109-159). A leitura da
imprensa do tempo permitiu ao autor detectar algumas novas ideias e novas
linguagens no sentir e agir beirão — um patriotismo novo, uma consciência de
cidadania nova, um uso recorrente de palavras-chave e temáticas francófilas.
Mas por detrás dessa maior "modernidade no estilo" (p. 111) estavam
velhos processos e velhas temáticas. Tal como na Monarquia, também na República
os opositores políticos eram rasteiramente denegridos e as eleições eram
negociadas nos bastidores; tal como na Monarquia, também na República os
beirões queriam do Parlamento e dos governos um amplo leque de melhoramentos
locais; finalmente, tal como na Monarquia, também durante a República a questão
financeira, a questão operária (social), a questão religiosa, a questão
administrativa, a instrução e a mulher foram os temas mais queridos da oratória
parlamentar beirã, de permeio com novidades como as infra-estruturas de
entretenimento e desporto e a primeira guerra mundial. Talvez tenham sido as
consequências conjunturais desta última, somadas aos custos estruturais da
interioridade nunca resolvidos naquelas terras, que levaram os beirões a
assistir mais ou menos passivamente à morte do "Catão republicano "
e à chegada do "Messias anunciado".
O livro de Santos Pereira termina com um extenso apêndice, de cerca de 80
páginas (pp. 165-248), constituído por um pequeno dicionário biográfico dos
deputados, pares e senadores da e pela Beira (ou seja, quer os naturais da
Beira, quer os que, originários de outras regiões, representaram a Beira no
Parlamento). São, ao todo, cerca de 220 entradas, com informação concisa sobre
as origens, carreira profissional e actividade parlamentar. Para o enfoque sob
o qual a obra foi escrita talvez conviesse ter elaborado um quadro,
cronológico, por legislatura e círculo, com a listagem nominal dos
parlamentares beirões, dado que nas entradas individuais essa indicação nem
sempre está completa. À parte esta observação, três outros pontos devem ser
referenciados no que diz respeito a este apêndice. O primeiro é a inserção de
parlamentares cuja actividade em São Bento decorreu fora, e antes, do arco
temporal tratado pelo autor, facto que baralha o critério de selecção. O
segundo é o tratamento e extensão muito desiguais (porventura resultado do
desnível de informação recolhido pelo autor?) das entradas, o que faz com que
personagens sobejamente conhecidas não excedam uma meia dúzia ou uma dezena de
linhas (casos do bispo de Viseu, António Alves Martins; Augusto Barjona de
Freitas; Carlos Lobo de Ávila; Francisco Tavares Proença; Jacinto Cândido;
Jaime Moniz; João de Andrade Corvo; João José Vaz Preto Geraldes, irmão de
Manuel Vaz Preto, uma das personagens centrais do livro; ou José Maria Latino
Coelho), enquanto outras, apenas conhecidas localmente, ocupam mais do que uma
página. Finalmente, não deveriam ter passado em claro, na redacção ou na
revisão final, erros de alguma relevância — como o nome próprio de Hintze
Ribeiro (só Ernesto Rodolfo, e não Adolfo Ernesto Rodolfo!, p. 167); o autor da
obra António Bernardo da Costa Cabral. Apontamentos Históricos (que é D. José
de Araújo Correia de Lacerda, e não o próprio Costa Cabral, p. 181); a data da
morte de João Franco (1929, e não 1926, p. 210); ou a conjuntura de fundação do
Partido Constituinte, de Manuel Vaz Preto (surgiu em torno de Dias Ferreira, em
1871, e não por oposição ao fontismo, nos meados da década de 1880, pp. 240-
242), para citar apenas alguns.
Apesar das lacunas apresentadas, o esforço meritório da obra deve ser realçado.
É certo que o livro se dispersa aqui e ali, atravessando transversalmente
demasiados problemas e temáticas, num arco temporal de três quartos de século
desigualmente explorado (uma leitura das notas de rodapé, por exemplo, pode
confirmar que a imprensa periódica monárquica citada se centra,
esmagadoramente, nos últimos vinte-trinta anos do regime, com escassas
referências para as primeiras décadas da Regeneração; no caso da República, as
referências não vão além de 1916-1917). Mas essas talvez sejam imperfeições
próprias de quem pisa um terreno ainda muito pouco explorado — o da história
político-social regional portuguesa, vista através de uma das mais próximas e
continuadas fontes disponíveis, como é o mundo dos periódicos do liberalismo
monárquico e republicano. A leitura do livro de Santos Pereira bem pode assim
servir de estímulo não apenas a outros beirões, para trazerem a Beira Interior
para a temática mais geral do discurso parlamentar e da política liberal
portuguesa contemporânea, mas igualmente a muitos outros historiadores, para
que encarem as fontes e os enfoques locais como imprescindíveis peças de um
puzzle nacional.
José Miguel Sardica