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EuPTHUHu0003-25732005000100001

EuPTHUHu0003-25732005000100001

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0003-2573
ano2005
Issue0001
Article number00001

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Apresentação: Dossier Europa e Islão APRESENTAÇÃO Dossier Europa e Islão

Se até poucos anos o interesse do público europeu pelas questões islâmicas era limitado e restrito, podemos dizer que o panorama se alterou profundamente.

O efeito cruzado de fenómenos como a crescente influência de regimes e blocos islâmicos no jogo político internacional, a radicalização de alguns movimentos dentro e fora do mundo árabe, a visibilidade de comunidades islâmicas em países europeus que se auto-referenciam em torno de uma ideologia laica, os conflitos e negociações entre a imposição legal do laicismo por parte de alguns Estados e as necessidades práticas e rituais do islamismo, e, evidentemente, a visualização de eventos marcantes como o 11 de Setembro e o que a montante e a jusante lhe é associado, do regime Taliban e da Al-Qaeda às intervenções militares norte-americanas no Afeganistão e no Iraque, entre outras coisas, deram uma posição de particular destaque ao Islão entre os assuntos do dia e as interrogações de todos os dias. Por entre estereótipos, preconceitos, imagens apologéticas ou demonizantes, os europeus confrontam-se com a sua própria ignorância relativamente ao assunto.

É talvez hora de procurar o conhecimento onde ele tem vindo a ser desenvolvido, ou seja, junto dos especialistas que, entre nós, se têm dedicado a questões islâmicas de forma continuada, sustentada e fundamentada em investigações sólidas e críticas, disponíveis para o debate e reflexão. Isso é tanto mais importante quanto a versão dos estereótipos veiculada por alguns especialistas em questões árabes e islâmicas foi invocada como a sustentação de políticas de intervenção militar no Médio Oriente, cujos dramáticos resultados se vão somando numa direcção imprevisível. É como se assistíssemos ao cumprimento de uma profecia que se auto-sustenta, a da impossibilidade de diálogo, irredutibilidade de lógicas, choque de civilizações, donde o confronto antecipado e o assombroso conceito de guerra preventiva.

Situamo-nos no extremo oposto: procuramos e acreditamos no diálogo e no esclarecimento, que facilmente desmistifica a ideia de irredutibilidade e o seu corolário de confronto agonístico. Herdeiros, talvez, de um projecto moderno em tempos a que alguns chamam pós-modernos, tentamos evitar a dissolução da teoria em fragmentos discursivos ou em relativismos generalizados, procurando ideias, dados empíricos, formulações, articulação.

Assim são os textos que compõem este volume, resultantes de uma jornada académica que teve lugar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em Abril de 2003, em iniciativa conjunta com a Associação Portuguesa de Antropologia. Não estão presentes todas as modalidades de pesquisa em curso no nosso país nem todos os investigadores e especialistas em assuntos islâmicos que circulam entre nós; como em qualquer outro evento, contingências de vária ordem levaram a que se reunisse um conjunto particular - e sempre parcelar - de contributos.

A iniciativa formou-se em torno de um desafio assumido por Jack Goody. Para este venerando antropólogo, autor de dezenas de obras de referência que influenciaram várias gerações de estudiosos em todo o mundo, africanista, teórico do pensamento gráfico, da escrita, da alimentação, reservatório de memória do século XX, ex-prisioneiro da segunda guerra mundial, a resposta apropriada às discussões, instabilidades, medos e confrontos ideológicos que se seguiram ao 11 de Setembro de 2001 seria aprofundar e disponibilizar o nosso conhecimento sobre o que se diz estar envolvido, e ultimamente caricaturado no confronto irredutível entre um Islão obscurantista e perigoso versus um Ocidente modernizante e vitimizado.

Jack Goody, beirando os 80 anos de idade, lançou-se à tarefa de escrever um novo livro em que empenhou a sua experiência de antropólogo e de participante em vários momentos marcantes da história europeia para nos disponibilizar elementos cognitivos capazes de neutralizar o muro ideológico e pseudocientífico que condena a lógicas irredutíveis a modernidade ocidental e o Islão. Desse livro em preparação trouxe-nos um capítulo em que contextualiza um dos momentos em que a oposição entre um Ocidente democrático e tolerante e um Islão autoritário e duro mais parece acentuar-se: a destruição, incompreensível e inaceitável para os ocidentais, das magníficas estátuas dos Budas de Bamyam, às ordens do regime Taliban do Afeganistão. De tão irrazoável, essa destruição parece a prova acabada da alteridade completa entre quem a mandou executar e quem, estupefacto, assistiu: o fosso entre um "nós" e um "outro", precisamente aquilo a que a antropologia respondeu tornando- se disciplina e saber especializado, dando nexos de inteligibilidade ao aparentemente incompreensível.

Mobilizando a antropologia para este desafio, Jack Goody usa também a história da arte religiosa da demonstração que nem "eles" são tão diferentes de "nós" nem "nós" o somos "deles". A história europeia e euro-americana está cheia de referências à destruição de obras de arte religiosa com base em argumentos antifigurativos. A questão da representação, concretizada na figuração das divindades e sobretudo da divindade máxima, levantou ambiguidades em todas as religiões; mesmo aqueles que hoje mais praticam a figuração, como o Hinduísmo, conheceram momentos de rejeição, dificuldades e ambiguidades relativamente a esta. Também algumas variantes do Cristianismo se especializaram na total rejeição da arte figurativa e na representação das divindades. Como o autor mostra, até a Grécia antiga alternou momentos de magnífica produção de estatuária com períodos de motivos exclusivamente geométricos, em que a figuração era banida. E o próprio Budismo em tempos tardios aceitou a representação de Buda. De uma forma ou de outra, todas as religiões estiveram historicamente implicadas na destruição de estátuas e representações materiais que de alguma forma desafiavam os imperativos da primazia da palavra e se confrontavam com a difícil questão de ver o criador materialmente criado pela mão humana. Mas, como antropólogo experiente, Goody não se fica pelo esforço relativizante e pela neutralização das oposições apoiada em argumentos históricos; questiona-se ainda sobre os motivos pelos quais a representação lança tantos problemas, ambiguidades, paixões e violência através dos tempos e das culturas, direccionando-nos para uma dimensão mais ampla de procura de universais: enquanto produtores de símbolos, estamos dependentes da representação para nos relacionarmos com o mundo e nela projectamos todas as ambiguidades e dificuldades a ponto de, colectivamente, oscilarmos entre extremos contrários.

Goody não veio a Portugal apenas para apresentar e discutir as suas ideias, mas para conhecer em primeira mão as representações locais sobre o passado islâmico, parte integrante desse todo fluido e dinâmico que é a interacção Europa-Islão. E assim visitámos Mértola, honrados pela orientação directa e disponibilidade de Cláudio Torres, conhecemos os diversos núcleos e programas museológico e arqueológicos, percorremos o Alentejo, discutimos esta e outras facetas de relacionar passado e presente, de gerir e administrar descontinuidades, contrastes e continuidades na construção da narrativa histórica e cultural de uma nação e de um momento histórico.

Essas questões estão presentes em quase todos os demais artigos deste dossier, atravessando-os, testemunhando o esforço comum de melhor conhecer e disponibilizar conhecimento sobre aspectos da relação Europa-Islão enquanto vivida pelos portugueses - no imaginário etnogenealógico, na arqueologia, na historiografia, na tradição arabista e nas aproximações sócio-antropológicas és populações muçulmanas no Portugal contemporâneo.

O texto de Maria Cardeira da Silva proporciona-nos uma síntese reflexiva e informada sobre as representações de árabes e Islão na história portuguesa.

Vale a pena determo-nos cuidadosamente sobre esta proposta original de sistematizar, num texto criticamente sustentado na antropologia e teoria contemporânea, as variações no papel atribuído a "árabes" e "Islão" no conjunto de auto-representações de nação e de povo para os intelectuais portugueses dos últimos duzentos anos. Tanto mais que a autora o faz saindo da rotineira auto-revisitação da história do arabismo em Portugal por parte dos arabistas e integra desenvolvimentos conceptuais recentes.

Destaque-se, entre estes, os efeitos da critíca de Eduard Said ao "orientalismo" patente na literatura ocidental - que não é exactamente replicado na literatura, historiografia e antropologia portuguesas.

Como a autora aponta, em lugar de uma exotização menorizante das temáticas arabistas, houve entre nós uma apropriação destas, e "dos árabes", para a construção de uma história nacional e para a consolidação de uma identidade " étnica" do povo português. Desde Herculano que, como importantes protagonistas ou meros figurantes, os árabes fazem parte da história de Portugal. São uma camada, um estrato, uma época, um Outro que ora testemunha alternância de domínios políticos, como acontece na história de invasões e expulsões promovida pelo regime de Salazar, ora serve de prova de um convívio multicultural avant la letre, como é sugerido por uma arqueologia mais recente e desenvolvida no regime democrático. Mas estão sempre, como espelho reflector, enquadrados numa agenda mais ampla de procura de identidade nacional e, subsequentemente, sujeitos às ideologias que as enformam. Daí a sugestão de um passo a seguir, o de os libertar dessa obsessão identitária que tem governado tanto da produção intelectual portuguesa.

Se as "invasões árabes" medievais, precedendo e justificando a Reconquista cristã associada é fundação da nacionalidade, povoaram as lições e compêndios de história de várias gerações de portugueses e se prolongam no imaginário colectivo, os estudos arqueológicos contemporâneos apontam-nos uma outra realidade. Nas discussões sobre o Andalus, que mais intensamente ocupa o imaginário europeu sobre o período islâmico da Península Ibérica e a correlata "orientalização" de uma sociedade ocidental, os argumentos variam entre a total negação de uma invasão árabe e a sua confirmação com base nas transformações ocorridas nas estruturas sociais.

Balizando o seu trabalho entre estes dois argumentos, Santiago Macias aborda a islamização do território de Beja cruzando testemunhos arqueológicos e fontes documentais e traça um quadro matizado de dinâmicas de transformação, conversão e adopção de elementos culturais que se afigura mais realista e verosímil que a ideia de uma substituição, alcançada por meios bélicos, de uma pacata população nativa ibérica pelos invasores do Norte de África e Médio Oriente. Mais que uma substituição de populações, encontramos uma adaptação a novos regimes políticos que se impuseram no Sul do Gharb por meios combinados de força e persuasão e de que fazia parte a adopção do islamismo. Esta não terá implicado, porém, a total obliteração das populações cristãs, propondo o autor que as mesmas oligarquias que detinham o poder local continuaram a fazê-lo, agora adoptando o islamismo, deixando alguns testemunhos em língua árabe - o que não exclui a possibilidade de bilinguismo - e adoptando nomes árabes de conotações bíblicas. Este argumento não exclui, contudo, a existência de grupos restritos árabes no território, como o autor regista, e aponta para um cenário de contínuas trocas entre as diversas margens do Mediterrâneo.

É curioso notar que entre as inúmeras tentativas de incluir na identidade portuguesa o passado islâmico ou árabe raramente se fazem esforços para reflectir conjuntamente sobre as populações muçulmanas que compõem o tecido social, demográfico e cultural do país de hoje. Assim se passa, aponta Nina Clara Tiesler, nas edições dedicadas ao passado islâmico de publicações de grande circulação, e até mesmo nas festivas celebrações de Mértola sobre o passado de diversidade cultural e religiosa que a arqueologia e museologia desta cidade desenham - onde sobressai a dignificação da componente islâmica.

Ou seja, como foi apontado noutros artigos, uma crónica separação entre os estudos sobre a componente islâmica da história portuguesa e o estudo sobre a componente islâmica da sociedade portuguesa actual. Mais que elaborar sobre essa questão - que na nossa opinião releva de um problema mais geral de as ciências sociais em Portugal terem, até aos anos 80-90, alguma dificuldade em identificar fenómenos imediatos que não se enquadram na tradição intelectual consagrada, deixando-os portanto para pesquisadores internacionais que aqui se deslocam -, os dois artigos seguintes dedicam-se a ultrapassá-la com investigações concretas, dados empíricos e sugestões originais de interpretação.

Em "Novidades no terreno", Nina Clara Tiesler retoma uma caracterização da chamada nova presença islâmica (NPI) em Portugal que a apresenta como discreta e quase invisível. Em contraste com o que se passara em França, Alemanha e Inglaterra, onde a massiva chegada de imigrantes muçulmanos desde sobretudo os anos 60 gerara um "problema" identificado pelos media, pelos políticos e pelos cientistas sociais, a que não faltavam as referências a conflitos, assimilação, contrastes, diversidade, administração da diferença, etc., a NPI portuguesa parecia um não-problema - não o era para os media, que quase levantavam o assunto por homologia com os congéneres europeus; não o era para os políticos, que o tinham resolvido com a construção de uma mesquita em Lisboa; e não o era para os cientistas sociais, que, salvo raras excepções, não desenvolveram linhas de pesquisa sobre o assunto.

Numa caracterização sociológica proposta pela autora, a especificidade desta primeira vaga de NPI em Portugal, comparativamente à de outros países europeus, passa por uma mais imediata integração na sociedade facilitada pelo capital cultural e económico da classe média muçulmana, que constituía uma significativa parcela dessa comunidade; por uma mais rápida integração na economia nacional; e pelos anteriores elos coloniais e correlata familiaridade com a língua, costumes e leis portugueses.

Algumas coisas mudaram, entretanto, e que acompanhar atentamente os fluxos de novos imigrantes com background islâmico cujas rotas pelo mundo incluem Portugal e - sobretudo Lisboa - por um conjunto de razões de contingência ou de estrutura da economia mundial, mas certamente não relevam dos processos de colonização e descolonização. São migrantes muçulmanos do subcontinente indiano, e é à caracterização detalhada de um destes grupos que se dedica o artigo seguinte.

Ninguém imaginaria no passado que a praça do Martim Moniz, nomeada segundo um herói da narrativa de Reconquista de Lisboa "aos mouros", viria a ser na beira do século XXI o ponto de encontro privilegiado para os novos migrantes islâmicos na capital, quase todos provenientes do Bangladesh. Mas não é esse o caso, como se uma crescente e quase completa ocupação de uma das ruas vizinhas - a Rua do Benformoso - pelos bangladeshianos recentemente chegados a Lisboa, a ponto de terem criado um espaço de culto próprio - no dizer de alguns, uma mesquita - num andar arrendado num prédio da mesma rua. É a essa mesquita, e às suas relações com a Mesquita Central de Lisboa, no Bairro Azul, que José Mapril dedica o artigo "Bangla masdjid".

Traçando os contornos e história do trânsito de bangladeshianos para a Europa, a que não faltam as rotas por países do golfo Pérsico, o autor mostra-nos como Portugal passou a figurar no mapa das suas possibilidades e como, uma vez iniciado um processo de instalação e inserção na economia e sociedade a comunidade tende a crescer. Se a comunidade bangladeshiana em Lisboa, de tão recente, era quase exclusivamente masculina, os homens partilhando apartamentos arrendados também na área do Martim Moniz, começam hoje a chegar as suas famílias, as mulheres, os filhos, os pais e tios, sugerindo a possibilidade de estarmos perante uma nova comunidade de lisboetas, prova acabada de que a sociedade portuguesa não se constrói apenas em cima dos seus elos coloniais e pós-coloniais. Prova-o a exuberância do comércio no Martim Moniz, gerido por pequenos empresários chineses, que mobilizam e convivem com os bangladeshianos aqui descritos.

O estudo destas comunidades torna-se uma resposta ao desafio inicial: não é necessário para melhor conhecermos a realidade portuguesa actual, mas exige a exploração de questões teóricas contemporâneas - do transnacionalismo e fluxos de capital e trabalho à articulação política das identidades religiosas e à reconfiguração local dos princípios universais.

CRISTIANA BASTOS


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