Lord Beresford e a Intervenção Britânica em Portugal - 1807-1820
Malyn Newitt, Martin Robson,Lord Beresford e a Intervenção Britânica em
Portugal 1807-1820, Imprensa de Ciências Sociais, Instituto de Ciências
Sociais, Lisboa, 2004.
Fernando Dores Costa
Tal como se explica no final da introdução, este livro divulga seis
comunicações apresentadas por quatro autores em reuniões científicas em Londres
e em Lisboa nos anos de 1999 e de 2001, tendo como elemento condutor a figura
de William Carr Beresford, militar britânico que teve um lugar central na
história de Portugal nos anos da presença militar britânica durante a chamada
«guerra peninsular» e, depois desta, nos tempos que antecederam a revolução de
1820, que o afastou do comando supremo do exército português.
Não foi incluída qualquer nota preliminar explicativa do editor e não se indica
que esta publicação em português se fez paralelamente a uma outra dos textos
originais em língua inglesa.
William Beresford foi um homem que as circunstâncias excepcionalmente
dramáticas das guerras contra os exércitos napoleónicos levaram a que
preenchesse um papel inesperado na história de Portugal. Na verdade, podemos
considerar que não houve novidade nessa presença do «especialista estrangeiro»
no momento de grande perigo militar. Era uma tradição, provavelmente a mais
«racional», no caso do periférico reino português. Na verdade, o sistema de
guerra era ainda um sistema europeu e os especialistas circulavam em função das
necessidades e das solicitações. Separadas por meio século, as figuras do conde
de Schambourg-Lippe e de William Carr Beresford estão desse modo ligadas, sendo
marcadamente contrastantes nas características dos homens postos em acção.
Culto, desprendido e educado no primeiro caso, brutal, rude e ignorante no
segundo.
A avaliação da presença britânica polarizou-se tradicionalmente em Portugal
entre o reconhecimento do papel de salvadores, pois teriam introduzido no reino
a disciplina militar onde imperava aquilo que era diagnosticado como um caos
oclocrático, e a sua identificação como «colonizadores informais» de Portugal,
aproveitando as grandes dificuldades vividas desde 1808 para imporem um domínio
efectivo, Beresford concentrando os ódios da indignação nacionalista.
Três dos capítulos deste livro são de Malyn Newitt, abordando o breve período
em que Beresford foi governador da Madeira (II), a sua relação com os
governadores de Portugal durante a ausência do príncipe regente e depois rei D.
João VI no Brasil (IV) e o seu papel face à chamada conspiração de Gomes Freire
(V). Os restantes dizem respeito à presença da Royal Navy em Lisboa em 1807-
1808 (I), de Martin Robson, à batalha de Albuera (III), na qual Beresford teve
os momentos de maior responsabilidade estritamente militar, da autoria de Mark
S. Thmpson, e uma prometida, mas não cumprida, notícia sobre a correspondência
trocada entre Palmela e Beresford (VI) por H. V. Livermore, que nos informa
estar na posse das cartas remetidas pelo primeiro ao segundo.
O leitor encontra no livro alguns elementos interessantes para a compreensão
desta época crucial nas histórias portuguesa, brasileira e britânica.
Em termos dos interesses mais óbvios para a história de Portugal, destacam-se
os capítulos IV e V de Malyn Newitt, nos quais o autor se fundamenta em
documentos do próprio Beresford (pp. 111-114 e 149-156) Numa carta de 11 de
Agosto de 1817 para o marquês de Campo Maior, Beresford era bastante claro
quanto à necessidade de D. João VI regressar a Portugal: «if you wish the Crown
of Portugal to remain in the Royal Family of Bragança His Majesty must return
here, and those who would make you think the contrary are the King's enemies»
(p. 112). Também o conflito com os governadores do reino não era ocultado: «I
have [ ] desisted form strong representations to the government for the object
of maintaining at least an appearance of good understanding.» Mas a percepção
do esgotamento económico e financeiro de Portugal não existia. Conclui Malyn
Newitt que na sua «abundante correspondência não há muitos indícios de que ele
compreendia os profundos problemas sociais e económicos com que Portugal se
debatia ou se interessava por eles. Não era um homem com imaginação nem ideias
e as suas preocupações, entre as quais se destacava a preservação do exército,
eram quase exclusivamente a curto prazo» (pp. 106-107). Dir-se-ia uma visão
puramente mecânica do poder, usada no exército inglês e na organização
disciplinar do português e depois transposta para todos os outros domínios.
Podíamos considerá-la apenas um resultado da pouca inteligência do protagonista
Newitt refere-se, por exemplo, à sua «visão tacanha» (p. 104) , mas nela há
uma profunda arrogância etnocêntica. A propósito da sua passagem pela Madeira,
faz Newitt uma primeira menção à pertença deste homem a uma subcultura «anglo-
irlandesa» que determinaria a sua forma de exercer a autoridade e de
representar os subordinados (p. 63). Ganham desse modo relevância as medidas
tomadas durante esse breve período de governo britânico da ilha. O autor foi
tentado a fazer uma comparação dos efeitos «revolucionários» do governo de
Beresford na Madeira e de Junot no reino de Portugal, mas a comparação fica
impossibilitada por não poder haver uma carga «revolucionária» na ocupação de
Portugal sob Junot, a «Constituição» pedida a Napoleão só podendo ser
entendida, depois de Dezembro de 1807, como um episódio «oportunista» que,
inserido numa tragédia, era motivado pela possibilidade de manter desse modo o
reino como entidade política num império napoleónico. Em todo o caso, há muito
que se desvanecera a imagem da França transportando na Europa a emancipação das
nações. As medidas de Beresford nunca poderiam pertencer a este campo, mesmo
tornado fantasma, e revelavam antes, para além de uma muito óbvia protecção dos
interesses comerciais ingleses, um padrão de comportamento estereotipado nos
territórios «coloniais», sendo uma minúscula mas expressiva demonstração disso
a adopção na ilha do período de defeso observado nas zonas rurais da Grã-
Bretanha (p. 63).
A determinação dos seus comportamentos por essa subcultura é mais à frente
sintetizada por Newitt deste modo: «Ao contrário de Canning, Beresford não é
uma figura representativa das tradições liberais e democráticas britânicas,
sendo antes fruto de uma tradição totalmente diferente. O meio anglo-irlandês
de que provinha não só o ligava aos outros potentados anglo-irlandeses,
Wellington e Castlereagh, por laços de simpatia social, como o levava a
defender a tradição moribunda do «absolutismo tory» (p. 107).
Sabemos que Beresford pertencia, com efeito, ao grupo «anglo-irlandês» e a sua
nomeação causou por isso surpresa e mal-estar entre os ingleses. Para mais, a
sua escolha terá derivado da sua fama como «disciplinador», e não da sua
capacidade militar. Na verdade, esse era o papel para que era chamado pelo
«pedido» feito pelos governadores portugueses.
Há um manifesto anacronismo na referência a tradições «democráticas» para
quaisquer elementos da classe dirigente britânica do início do século xix. A
democracia estava então muito longe do seu pensamento. Mas, para mais, ficam-
nos dúvidas quanto à capacidade explicativa desta oposição: o assinalado padrão
de «dominação de uma aristocracia fundiária sobre um campesinato submisso e
católico» foi um exclusivo dessa subcultura «anglo-irlandesa»?
Contudo, o ponto que é porventura mais interessante no percurso de William
Beresford é aquele que reside na inspiração e nos apoios obtidos para a sua
estranha permanência à frente do exército português depois de acabada a guerra
europeia.
O plano surge como absurdo. A subsistência de um governo de tipo militar,
excepcional, depois de consagrada a paz, paralelo ao governo dos governadores e
conduzindo a um inevitável conflito entre ambos, era manifestamente insensata e
os dirigentes que tinham permanecido no reino reflectiam necessariamente os
muitos descontentamentos que suscitava. Pela sua extravagância, a compreensão
das motivações em que se enraíza constitui, no mínimo, um desafio. Na história
«popular», este governo militar em tempo de paz ficou consagrado como uma
manifestação «colonial» britânica. A imagem tem algum fundamento. Beresford e
os muitos oficiais ingleses que ocupavam postos no exército português tinham
cumplicidades em Inglaterra e, na sequência da revolução de Agosto de 1820,
quando foram afastados, receou-se significativamente uma possível reacção
negativa do governo de Londres. A arrogância tutelar dominava o seu
comportamento.
Mas para tentar obter a consolidação do seu poder face às resistências dos
governadores, Beresford recorreu com êxito ao governo de D. João VI no Rio de
Janeiro. A articulação entre esta persistência de um sistema de alerta e de
penosa sustentação de uma reserva militar sem uma plausível justificação a
não ser o envio de forças para o Brasil ou a ameaça de uma invasão espanhola
e os outros aspectos da vida social pareceu ser completamente ignorada. O
problema da sustentabilidade económica e social de um tal regime não ocorria
sequer a Beresford. O «mecanicismo» da autoridade era levado a um ponto
extremo. Neste quadro, o marechal general procurou e obteve no governo do Rio
de Janeiro apoio para ele. Permanece um mistério afirma Newitt esta
confiança posta por D. João VI em Beresford (p. 93). Mas será assim tão
misteriosa? Nestes anos de deslocação do centro para o Rio, Beresford era,
neste caso, um agente de uma agressão «colonial» paradoxal exercida pelo
governo do Rio sobre o reino de Portugal. Este funcionava como uma retaguarda
militar de um projecto político e diplomático que se tornara essencialmente
americano.
Beresford não ignorava, contudo, como já foi assinalado, o descontentamento que
crescia contra ele e o seu governo militar. Embora uns anos mais tarde se tenha
tentado distanciar da repressão exercida sobre os homens envolvidos na chamada
«conspiração de Gomes Freire», e podendo sempre subsistir as dúvidas levantadas
pela insinuação sobre os conspiradores que teriam ficado na sombra, é
impensável que a repressão sobre militares pudesse ter ganho uma forma tão
rápida e brutal sem o seu acordo.
Malyn Newitt analisa a conspiração célebre à luz de dois documentos, escritos
aparentemente entre Maio e Outubro de 1817, remetidos para o irmão John
Beresford (p. 124), nomeadamente omemorandumdatado de 9 de Junho (pp. 141-156).
A sua conclusão é a de que essa correspondência não é a «de um político
maquiavélico que planeara todos os seus passos» (p. 127), apesar de assinalar a
presença de uma «paranóia» conspirativa, também considerada uma característica
dos membros da aristocracia anglo-irlandesa.
Importa sublinhar o uso do argumento da ameaça espanhola neste contexto.
Beresford, depois das hesitações detectáveis na carta de 31 de Maio escreve
Newitt , estava «determinado a apresentá-la como uma conspiração dirigida por
espanhóis». Tudo indica que esse argumento era conscientemente usado para que o
assunto ganhasse importância e perigosidade, a ameaça estrangeira sendo sempre
o argumento ideal para justificar os objectivos inconfessáveis dos governantes.
Deste modo, ao contrário do que propõe o autor, parece improvável que tenha
efectivamente pensado que houvesse uma ligação entre a conspiração e as
actividades dos espanhóis (p. 138).
Neste caso, Beresford surge como um mero oportunista, usando esse argumento
para justificar aquilo que foi uma operação de intimidação e desonra, por meio
da qual se tentava aplacar o descontentamento, que se previa que iria sempre
crescer. Esta é, aliás, a conclusão de Newitt: aproveitando esta ocasião,
«conseguiu silenciar o antagonismo dos governadores» e reafirmou «o seu
controlo do exército», as «cartas que Beresford escreveu à família» revelando
«claramente que os acontecimentos do Verão de 1817 têm de ser vistos como
oportunismo e não como calculismo frio» (p. 139). Mas os resultados duraram
apenas alguns meses.
Note-se que, nestas peças para uma composição sobre Beresford e o seu tempo, as
fontes portuguesas estão ausentes, assim como os autores portugueses, sendo
únicas excepções Raul Brandão (naturalmente a propósito do caso Gomes Freire) e
a inefável Históriade Veríssimo Serrão.
A tradução e a revisão não estão, infelizmente, isentas de reparos negativos,
assim como a transcrição de palavras abreviadas na edição de textos originais.