Where Have All the Intellectuals Gone?
Frank Furedi, Where Have All the Intellectuals Gone?, Londres, Continuum, 2004.
Maria Filomena Mónica
Em Maio de 2001, Frank Furedi, sociólogo da Universidade de Kent, escreveu um
artigo para o jornal The Sunday Times, intitulado «What is university for
now?», no qual levantava problemas que surgem, com outro desenvolvimento, no
livro que acaba de publicar, Where Have All the Intellectuals Gone? Segundo
ele, a cultura superior passou, nas sociedades modernas, a ser substituída por
«culturas», um termo nascido na antropologia, com conotações igualitaristas, no
sentido em que, ao abordar os comportamentos dos nativos, o profissional não
deveria tecer juízos de valor, mas tentar compreender os seus modos de vida.
Dentro dos seus muros disciplinares, a ideia era justa. Importada para outras
áreas, é um veneno. De facto, é nela que radica a concepção dos curricula
alternativos para os alunos provindo de meios desfavorecidos: não para eles
Homero, Mozart ou Eça, mas a análise de uma telenovela, de uma canção rap ou do
resumo de Os Maias.
Esta ideologia veio juntar-se à ideia de que a escola, incluindo a
universidade, deve transmitir apenas conhecimentos úteis. O saber puro, o
deleite de descobrir algo de novo, o prazer da experimentação, deixaram de ter
cabimento nos estabelecimentos de ensino, substituído, como foi, por «saberes»
que vão de «choques tecnológicos» a «competências linguísticas». Como recorda
Furedi, foi aqui que nasceu a ideia de que o saber fosse considerado, não o
fruto do trabalho desinteressado, mas o produto final de um processo
tecnológico. É por estas e por outras que o pós-modernista Jean François
Lyotard anunciou, ao que parece com ar radiante, a era da morte do professor.
Segundo ele, «na transmissão do conhecimento, um professor não é mais
competente do que um banco de dados». A escola poderia, por conseguinte, ser
substituída com vantagem por um computador. O que este filósofo esquece é o
facto que qualquer ser humano sabe por experiência própria: mais do que o
conteúdo de uma disciplina, o que nos marca para a vida é a personalidade de um
professor.
Conheço melhor a universidade do que outros níveis de escolaridade e, por isso,
prefiro falar do que ali se passa. Mas a nova ideologia permeia o sistema de
ponta a ponta. Uma vez que a noção de «um nível adequado de conhecimento», de
uma barreira que tem de ser ultrapassada, é geralmente considerada elitista, a
instituição sente-se mal quando confrontada com alunos que, ou porque não
estudaram, ou porque são estúpidos ou, caso mais trágico, por provirem de meios
socialmente desfavorecidos, não conseguem corresponder ao mínimo que lhes
deveria ser exigido.
A noção de elite deixou de ser aceitável. Tente argumentar que o ensino
superior deve ser elitista e verá o que lhe acontece. Em vez de analisarem a
forma como a origem social determina o acesso às universidades o único estudo
sobre o tema feito em Portugal tem mais de quarenta anos , os intelectuais,
ou, para ser justa, grande parte dos intelectuais, negam, à partida, a
concepção meritocrática da instituição. O meu
pessimismo relativamente às universidades é frequentemente criticado. Devo
esclarecer que o meu cepticismo não se reduz ao solo pátrio, estendendo-se,
pelo contrário, ao mundo europeu e americano, embora reconheça que nas nossas
escolas surgem dislates que jamais encontrei em qualquer outro país. Para
muitos, o facto de a universidade portuguesa se ter expandido passando dos 40
000 alunos dos anos 1960 para os 400 000 de hoje é uma proeza sem mácula.
Mas, como justamente argumenta Furedi, um dos crimes cometidos nas instituições
de ensino superior massificadas é a infantilização dos alunos, os quais, pela
sua idade, percurso e maturidade, deveriam ser olhados como adultos e não como
menores intelectuais.
Neste contexto, a valorização dos «saberes» trazidos pelos estudantes para as
salas de aula é hostil à difusão do conhecimento. O que os alunos já sabem não
carece de ser elaborado. Mais valia às universidades transmitirem aquilo que as
famílias não podem dar, ponto tanto mais grave quanto, em Portugal, muitos
alunos provêm de lares cujos pais, avós e bisavós são analfabetos. A passagem
mais importante do livro de Furedi vem perto do fim, quando, com razão, chama a
atenção para o facto de a institucionalização das atitudes antielitistas não
constituir uma resposta à procura vinda de baixo, das populações, mas
corresponder a uma ideia surgida no interior da própria elite. Trata-se de um
caso evidente de snobismo invertido. A palavra snob é geralmente aplicada a
alguém cuja conduta é determinada pela admiração bacoca diante da riqueza ou do
status de outrem. Por seu lado, o termo anti-snob refere-se aos que optam por
reverenciarem o vulgar, o ordinário e o popular. Esta posição, rara em eras
passadas, tem vido a alargar-se, afectanto, de forma inesperada, os
intelectuais, com especial relevo para os radicais, que deixaram de acreditar
nas reformas, quaisquer reformas, a fim de fazerem a apologia da tábua rasa
revolucionária.
Em 1964, Pierre Bourdieu, num livro justamente famoso, Les héritiers, defendeu
a ideia de que o gosto estético, a cultura superior e a admiração pelas obras
de arte eram socialmente determinados. Como é patente, a tese contém uma dose
de verdade. Na altura, a obra conquistou-me. O risco consiste na interdição
informal dos mais desfavorecidos à cultura superior com base em que esta é mais
um meio ao seu alcance para os poderosos dominarem os pobres. Nos livros
seguintes, nomeadamente em la reproduction, de 1976, Bourdieu encurralou-se num
programa absurdo. As medidas tendentes a democratizarem o acesso à cultura
seriam inúteis, por constituírem estratégias subtis da burguesia para dominar
as classes trabalhadoras. Todos os critérios de avaliação, tanto do belo quanto
da verdade, desapareceram. Aquilo de que gosto, acredito ou admiro, proclamavam
os relativistas culturais, vale tanto quanto aquilo de que tu gostas, acreditas
ou admiras.
O objectivo dos progressistas pretéritos era a elite social, não a intelectual.
Mas o antielitismo contemporâneo raramente se dirige aos ricos, concentrando-se
preferencialmente nos que defendem a existência da cultura superior. A
exigência de níveis de excelência é tida como um pecado, uma vez que, por
implicação, desrespeita aqueles que não conseguem chegar ao patamar superior. A
fim de se manter a «auto-estima» de todos os meninos, seria necessário destruir
as diferenças. Ironicamente, quem mais sofre com a difusão desta ideologia são
os pobres.
Para os relativistas culturais, o povo seria incapaz de apreciar um produto
cultural de qualidade. O que se está a passar nas escolas indigna Furedi. É
esse, aliás, um dos méritos do livro. Num momento em que tantos baixam os
braços, ele continua a lutar e, mérito seu, a ter saudades do tempo em que
existiam intelectuais, como Bertrand Russell (cuja Autobiografia recomendo
vivamente), capazes de, em simultâneo, produzirem obras intelectuais de peso e
de se envolverem nos debates contemporâneos.
Na raiz do mal está a incapacidade de os intelectuais estabelecerem a
necessária distinção entre elitismo e exclusão social. Se é verdade que, por
vezes, elites sociais e intelectuais coincidem, isto está longe de ser a regra,
especialmente em Portugal, onde, desde sempre, as classes altas consideraram a
cultura um adereço desnecessário. Como Furedi salienta, os populistas culturais
não são democratas. Nenhum cigano, que eu saiba, pediu ao Estado para ensinar
os filhos a atirar facas, nenhum angolano a explicar-lhes como se tocam
tambores, nenhum camponês a introduzi-los na arte das desfolhadas. Para eles,
contudo, esta objecção não interessa, porque são estas «modernices» que lhes
conferem poder.
A nova ideologia é paternalista no pior sentido da palavra: trata-se de dar aos
filhos dos pobres o conhecimento que os «filósofos-cientistas» julgam acessível
aos materialmente desmunidos. Do cimo da sua sapiência, pensam que o homem
comum não é capaz de apreciar a cultura superior, excepto na versão diluída
que, da escola primária à universidade, lhe é oferecida. As actuais políticas
educativas constituem um cruzamento entre a menorização e a psicoterapia:
menorizam os estudantes, porque os nivelam pelo menor denominador comum, e
psicoterapizam a cultura, porque não querem beliscar a «auto-estima» dos
adolescentes.
As últimas linhas do livro de Frank Furedi constituem um apelo importante.
Segundo ele, ao sermos cúmplices do relativismo cultural, estamos a dar cabo de
nós próprios. A obra termina da seguinte forma: «Há muito pouco que possamos
fazer para forçar as elites a abandonarem uma visão do mundo instrumental e
inimiga da cultura. Mas podemos envolver-nos num combate, no campo das ideias,
a fim de conquistarmos o coração e o espírito do público. A forma como o
fizermos é uma das questões cruciais do nosso tempo.»