A Europa, a América, a Guerra, Reflexões sobre a Mediação Europeia
Étienne Balibar, A Europa, a América, a Guerra, Reflexões sobre a Mediação
Europeia, Porto, Campo das Letras, 2005, 185 páginas.
Este livro sofre, à partida, de dois handicaps. Não só a sua premissa se
encontra já ultrapassada, como também não podemos considerar que se trate de um
livro propriamente dito. Ou seja, o autor parte da premissa de que a Europa
deveria servir como mediadora entre a América e o Iraque de Sadam Hussein. O
livro não foi planeado à partida como uma monografia, assentando antes na
actividade académica do autor: uma conferência realizada em Novembro de 2002 na
Universidade de Humboldt, em Berlim, sobre o poder mediador da Europa; uma
polémica com Bertrand Ogilvie (professor de Filosofia Política e de Psicologia
na Universidade de Paris-X Nanterre) que o autor intitulou "política da
impotência"; nove pequenos textos para completar a conferência; uma
discussão com John Carlos Rowe (professor de Literatura Inglesa e Comparada na
Universidade da Califórnia, Irvine) sobre as contradições entre o conceito de
mediações locais e a reforma das instituições internacionais.
Balibar é um conceituado professor de Filosofia Política na Universidade de
Paris-X Nanterre e na Universidade da Califórnia, Irvine. É conhecido, acima de
tudo, por ter pertencido ao grupo de ideólogos marxistas do Partido Comunista
Francês (PCF) que causou um enorme impacto político nos finais da década de 60
e começo dos anos 70. A obra Lire Le Capital (com L. Althusser, P. Macherey, J.
Rancière e R. Establet) é emblemática e representa uma visão hipercientista do
marxismo. Posteriormente, haveria a cisão com o PCF. Outras obras poderão ser
citadas para exemplificar a importância deste investigador nos meios
intelectuais e académicos: Cinq études du matérialisme historique (1974), Les
frontières de la démocratie (1992), Nous citoyens d’Europe? Les frontières,
l’État, le people (2001).
Mas regressemos à obra em questão. A Europa, a América, a Guerra faz lembrar a
expressão futebolística "jogo para cumprir calendário". A edição
portuguesa acaba por ser uma formalidade sem verdadeiro impacto académico
quando comparada com as obras acima citadas. Se a premissa de Balibar é
justificável em 2003, data da edição original em francês, já o é menos em 2005,
quando o cenário é o de resolver as consequências da invasão americana, e não
uma suposta mediação europeia entre os principais intervenientes, neste triste
episódio que continua a manchar as notícias.
Balibar justifica a sua obra com o argumento de que as questões da política
europeia são abordadas em diálogo com intelectuais liberais americanos. O ponto
de partida não parece ser o mais acertado. Por que é que este suposto diálogo é
apenas com os intelectuais liberais americanos? Os argumentos dos intelectuais
conservadores americanos não deveriam também ser tomados em consideração,
especialmente quando estes se encontram enfeudados nas acções do governo
republicano de George W. Bush? Fica a impressão de que Balibar quis discutir
este assunto dentro de parâmetros liberais que estabeleceu à partida sem
qualquer tentativa para abrir a discussão.
Adiante. Balibar afirma que algumas vozes de intelectuais americanos (e de
intelectuais que trabalham nos Estados Unidos) se fazem ouvir para que a Europa
exerça uma mediação. Estes intelectuais exigem da Europa que ajude a parar a
escalada militarista norte-americana que põe em causa os direitos fundamentais
democráticos e polarizam as relações entre o mundo cristão e o muçulmano. Este
argumento é falacioso. Em democracia encontram-se sempre vozes discordantes. O
impacto destes intelectuais foi praticamente nulo: o Congresso norte-americano
apoiou por larga maioria a guerra do Iraque e, posteriormente à invasão deste
país, Bush seria reeleito com ampla maioria. Fica a suspeita de que a
importância destes intelectuais reside na vontade de Balibar em construir um
castelo nas nuvens europeias para açaimar o hard-power norte-americano.
Balibar admite que explora um paradoxo: a construção de uma antiestratégia
alternativa à mundialização e as novas guerras. Confesso que este conceito me
parece bastante estranho. O fenómeno da mundialização, ou globalização, como é
mais comum ser referido, é um fenómeno histórico que começou com as explorações
portuguesas e espanholas e, quer se seja favorável ou não, parece inevitável. A
questão não é a de aceitar ou rejeitar a mundialização. Se não queremos viver
como o paraíso isolado da Coreia do Norte, os países vão ter de viver num mundo
global. Podem negociar-se, em parte, os termos e os prazos, mas não o conceito
de globalização. Uma alternativa às novas guerras parece igualmente
problemática. Infelizmente, a guerra sempre existiu entre os homens. A guerra
não é velha nem nova, é uma característica negativa do homem que, até prova em
contrário, continuará a manchar a Terra.
A que se resume a antiestratégia de Balibar? A quatro proposições, nenhuma das
quais é nova e que demonstram o passado intelectual de Balibar: uma nova ordem
pública internacional, o desarmamento progressivo e controlado, o primado das
negociações sobre os conflitos, responsabilizando os intervenientes, e a
construção do conjunto euro-mediterrânico como exemplo da redução das divisões
entre civilizações (neste caso a cristã e a muçulmana). A utopia escapa ao
homem desde que Sir Thomas Moore escreveu a obra com esse título. Como
exercício académico, o esforço de Balibar é de louvar. Como exercício académico
com possíveis efeitos práticos, as propostas de Balibar são pouco realistas.
Como exercício político, as propostas de Balibar são irrealistas.
Lembro-me de que numa recensão na Análise Social, há uns anos, José Cutileiro,
com a sua conhecida contundência, descreveu como a escrita sobre antropologia
podia ser uma "seca". A escrita sobre relações internacionais, por
vezes, também pode ser uma "seca". Tendo anunciado as suas quatro
proposições, Balibar escreve o seguinte: "nesta reflexão igualmente se
evidencia — por conta do próprio autor — a procura de uma figura de intelectual
viajante e tradutor para o qual, como para a própria Europa, desviei a
expressão dialéctica "mediador em declínio", que retirei de um
ensaio de Frederic Jameson publicado em 1973. Espero contribuir deste modo para
a discussão em curso acerca da função política dos intelectuais, que me parecem
muitas vezes perder-se em querelas "sem interesse" de gerações e
etiquetas. Ao mesmo tempo desejei pôr à prova uma concepção da relação da
filosofia com a actualidade que impõe articular a reflexão sobre o próprio
acontecimento com a enunciação do lugar em que se fala (e onde se escuta) e a
análise das condições de escrita pública. Esse lugar, quer se queira, quer não,
não é puramente ideológico, antes está sujeito a forças materiais cujos efeitos
se relacionam com a vida e a morte. Portanto, não se estabelece e se delimita
apenas através de palavras, representações e ideias" (p. 8-9).
Infelizmente, Balibar, neste livro, contribui pouco para a função pública dos
intelectuais. Procura relacionar a filosofia com a actualidade e acaba por não
responder nem à filosofia nem à actualidade. Talvez tivesse sido mais bem
sucedido se tivesse dividido o livro em duas partes. A primeira seria dedicada
a uma exploração filosófica dos objectivos que a sociedade humana deveria
estabelecer, mediante os problemas com que se debate. A segunda parte seria
dedicada à análise da forma como estes objectivos poderiam, ou não, ser
concretizados.
Em resumo, a principal premissa do poder mediador da Europa parece ultrapassada
pelos eventos, os conceitos discutidos são debatidos de forma divorciada da
realidade política e a estrutura do livro obedece à actividade académica do
autor e não a um projecto global de monografia.
NICOLAU ANDRESEN LEITÃO