Jaime Batalha Reis e Celeste Cinatti: diálogo sobre um retrato incompleto
Jaime Batalha Reis e Celeste Cinatti: diálogo sobre um retrato incompleto
Maria José Marinho*
O relato da paixão de Jaime Batalha Reis pela sua futura mulher, Celeste
Cinatti, que procurámos seguir ao longo das 301 cartas que transcrevemos e
que estão disponíveis no site do ICS em «Arquivo de História Social» ,
representa um retrato incompleto, na medida em que, infelizmente, faltam quase
todas as respostas da namorada, destruídas a seu pedido. Quem eram Jaime e
Celeste, a que famílias pertenciam, em que espaços físicos e sociais se moviam?
A resposta é: Lisboa, segunda metade do século xix, burguesia letrada.
O apaixonado, filho de um velho liberal, António Nunes dos Reis, amigo chegado
de Almeida Garrett e José Estevão, antigo funcionário das Cortes, bem
relacionado com a elite política portuguesa, era um abastado proprietário no
Turcifal, perto de Torres Vedras, onde produzia vinho, que depois exportava. A
mãe, de origem italiana Maria Romana Bataglia , era uma figura apagada. Dos
três filhos do casal, só Jaime continuava solteiro, a estudar em Lisboa,
primeiro, como interno, no conceituado colégio alemão Roeder, depois
frequentando um curso superior. Vivia num andar, no Bairro Alto, na Travessa do
Guarda-mor, 19, 1.º, com um criado, o «Via Láctea», assim chamado por ter a
cara crivada de marcas de bexigas.
O objecto da sua paixão, uma menina da boa sociedade lisboeta, fora educada por
freiras irlandesas no Convento do Bom Sucesso, em Belém, sendo filha do famoso
cenógrafo e arquitecto José Cinatti, italiano, em fuga por razões políticas e
que fora acolhido e protegido em Lisboa pela importante colónia de
conterrâneos. A mãe, também italiana Maria Rivolta , aspirante à carreira de
cantora lírica, morrera de febre-amarela em 1857. Dos setes irmãos e irmãs,
que, em pequenos, haviam povoado a casa do Largo de Quintela, 11, 3.º, com uma
ampla varanda que dava também para as ruas das Flores e do Alecrim, só as duas
mais velhas, Adelaide e Beatriz, estavam casadas. Provavelmente, os dois
namorados já se teriam cruzado antes de 1868 nos chás-dançantes do «Clube
Lisbonense», nos saraus musicais da «Associação Portuguesa», nas óperas de São
Carlos ou nos teatros da Trindade e do Ginásio e, naturalmente, no Passeio
Público, onde a burguesia lisboeta se encontrava. Tinham amigos comuns, tais
como as Castelo Branco, as Amzalak e as Abecasis. Mas ainda não haviam sido
tocados pela «centelha da paixão».
Jaime Batalha Reis nascera a 24 de Dezembro de 1847, tendo acabado o curso de
Agronomia e Engenharia Florestal, no Instituto Geral de Agricultura de Lisboa,
com 19 anos de idade. Fizera um curso brilhante. Alguns dos seus mestres, como
Ferreira Lapa e Andrade Corvo, prognosticaram-lhe um futuro promissor. Nos fins
de 1867, ao folhear casualmente um álbum de fotografias, reparou num retrato de
Celeste Cinatti. No mesmo dia viu-a no Passeio Público e apaixonou-se por ela.
Um encontro num concerto possibilitou-lhe a primeira troca de palavras.
A paixão de Jaime Batalha Reis é exclusivista. Celeste já tivera um primeiro
namoro com Fortunato Lodi, filho do primeiro empresário de São Carlos e cunhado
do conde de Farrobo. Mas, quase às portas do casamento, rompera com este noivo,
cujo feitio violento a assustara. Jaime sentia-se roído de ciúmes. Os seus
veementes protestos de amor revelam, de facto, uma certa insegurança.
Entretanto, Jaime Batalha Reis conhecera Eça de Queirós e mergulhara na boémia
lisboeta. Conversador infatigável, inteligência viva, melómano militante, com
uma cultura invulgar para a idade, facilmente conquistou a consideração do meio
literário da época. A sua casa, na travessa do Guarda-Mor, transformou-se numa
tertúlia lisboeta, o «Cenáculo», como depois lhe viriam a chamar-lhe. A entrada
de Antero de Quental neste círculo de amigos possibilitou a Jaime Batalha Reis
um interlocutor à sua medida. As preocupações filosóficas de Antero
correspondiam a algumas das aspirações do jovem agrónomo, cujas inquietações
intelectuais não encontravam resposta satisfatória na convivência com outros
companheiros de ceias, noitadas e discussões literárias. Só um ano mais tarde
Oliveira Martins se lhes juntará. É deste período, nomeadamente do ano de 1869,
que data a criação do pseudónimo literário colectivo Fradique Mendes, sob o
qual tanto ele como Antero e Eça publicariam poemas.
Os esforços do pai para lhe arranjar emprego, condição necessária para o
casamento desejado pelos namorados, não se concretizavam. O «negócio», como lhe
chamava Batalha Reis, tardava. É então que, juntamente com Eça, resolve
candidatar-se a cônsul. Nesse mesmo ano de 1870, alguns deles, entre os quais
Antero e Batalha Reis, envolvem-se em conspirações políticas e fundam jornais
de cariz progressista. Vêm depois as Conferências Democráticas do «Casino
Lisbonense», organizadas sobretudo por Antero e Batalha Reis: nessa altura,
Oliveira Martins estava já a trabalhar em Espanha, nas minas de Santa Eufémia.
Ao jovem agrónomo cabia, de acordo com o programa, abordar o tema do
socialismo, matéria escaldante, se recordarmos que a sua intervenção foi
contemporânea do levantamento da Comuna, em Paris. Quando as Conferências foram
proibidas, a celeuma que então se levantou atingiu a pessoa do marquês de
Avila, presidente do Conselho, contra o qual Batalha Reis escreverá um folheto
violento. Embora houvesse sido aprovado no concurso feito no Ministério dos
Negócios Estrangeiros em Setembro de 1870, a sua intervenção nas Conferências
terá posto em perigo a nomeação para o cargo de cônsul. De facto, só a
conseguirá doze anos volvidos.
Que fez entretanto? Os seus conhecimentos no campo da enologia, preciosos numa
época em que o aparecimento da filoxera atingira gravemente a produção
vinícola, valeram-lhe uma ascensão rápida nos meios afectos à agronomia.
Participa em comissões que tratam do problema e é nomeado, por Morais Soares,
presidente da comissão encarregada de estudar a moléstia das vinhas.
Finalmente, veio o emprego definitivo: em Fevereiro de 1872 era nomeado chefe
do Serviço Agrícola do Instituto Geral de Agricultura e alguns meses depois, a
5 de Setembro desse ano, realizava-se o casamento.
Nessa altura, já Batalha Reis desempenhava as funções de professor substituto
de João Andrade Corvo, ministrando as cadeiras de Botânica, Economia Rural e
Florestal. Em 1876 é enviado como um dos comissários à Exposição Universal de
Filadélfia, com a missão de estudar o plantio da vinha nos Estados Unidos, o
combate à filoxera, assim como a cultura do algodão e da cana-de-açúcar.
Consegue levar consigo a mulher e a filha, Celeste, então com 2 anos de idade.
Contudo, não permanece ali até ao fim, porque uma mudança ministerial o obriga
a regressar.
Em 1878 é nomeado vice-presidente da Real Associação Central de Agricultura,
órgão fulcral neste campo de actividade, já que reunia, a par dos especialistas
nas várias áreas agrícolas, os grandes proprietários da época. Dois anos depois
é criada a cadeira de Microscopia e Nosologia Vegetal, regida por Batalha Reis.
Vê a sua carreira universitária coroada de êxito, tendo sido então despachado
lente. Em Julho de 1882 foi, por fim, nomeado cônsul em Newcastle. Antes não
descurara a actividade cultural. De 1873 a 1875 empenhara-se com Antero e
Oliveira Martins e alguns nomes importantes da intelectualidade espanhola, tais
como Pi y Margall, Cánovas del Castillo, Francisco Maria Tubino e Fernandez de
los Rios, no lançamento da Revista Ocidental,que, retomando o espírito das
Conferências Democráticas, e associando a Espanha ao projecto, pretendia
promover a renovação cultural. Aliás, o seu nome vai continuar a aparecer
ligado a actividades intelectuais: sócio honorário correspondente do Gabinete
Português de Leitura no Rio de Janeiro (1879), membro da Comissão Executiva do
Tricentenário de Camões (1880), membro efectivo da Sociedade de Geografia e
delegado extraordinário às comemorações do 2.º centenário de Calderón de la
Barca (1881).
Finalmente, em 1883, parte para Inglaterra. O que terá levado este homem, com
uma carreira já firmada no campo da agronomia, a abandonar a pátria? Como
muitos companheiros de geração, talvez se sentisse limitado na estreiteza do
ambiente lisboeta e sonhasse com uma vivência cultural que os meios
diplomáticos podiam proporcionar. Seja como for, em Agosto de 1883 fixa
residência em Newcastle, onde, alguns anos antes, vivera o seu amigo Eça de
Queirós. Aí terá mais quatro filhos, duas raparigas e dois rapazes, daí partirá
para missões diplomáticas em Bruxelas, Berlim e Paris. Jaime Batalha Reis é
agora um estudioso de história, de geografia e da política internacional.
Publica artigos na imprensa inglesa e francesa nem sempre assinados com o seu
nome em defesa dos direitos portugueses em África. Redige estudos, é membro
de sociedades literárias inglesas, trava amizade com escritores, pintores,
escultores e músicos de várias nacionalidades. Sempre que pode dá um saltinho a
Paris, onde Eça lhe oferece guarida. Mas, como a sua correspondência o atesta,
continua atento aos problemas da pátria. Lembremos ainda a sua magnífica
colaboração no In Memoriamde Antero, a «Introdução» às Prosas Bárbarasde Eça e
os esforços de comercialização, na Grã-Bretanha, dos vinhos portugueses.
Só depois da implantação da República deixará definitivamente a Inglaterra,
país de que, curiosamente, nunca gostou. Ficavam-lhe três filhos, os dois
rapazes e Maria, a afilhada de Antero, que se casara com um súbdito inglês. Num
cemitério ficava também a mulher que amara, morta de cancro, em 1900. Tinham
vivido juntos vinte e oito anos. Depois do seu regresso a Portugal, já na
disponibilidade, ainda é encarregado de representar Portugal no tricentenário
da dinastia Romanov. Enviado a Sampetersburgo, acaba por se ver envolvido nos
acontecimentos que precedem e acompanham o deflagrar da revolução de Outubro.
Tinha então 71 anos. De regresso a Portugal em 1918, é, nesse mesmo ano,
enviado como delegado à Conferência de Paz, em Paris. Em 1921 pede, finalmente,
a reforma e vai viver com as duas filhas, Celeste e Beatriz, na Quinta da
Viscondessa, no Turcifal, onde morre em 1935.
* Biblioteca Nacional.