A Oposição ao Estado Novo no exílio brasileiro 1956-1974
Douglas Mansur da Silva, A Oposição ao Estado Novo no exílio brasileiro 1956-
1974, Lisboa, ICS, 2006, 162 páginas.
Muito se tem avançado no estudo da resistência à ditadura portuguesa. Depois da
revolução de Abril de 1974 reconhece-se unanimemente a importância de recuperar
a memória e fazer a história dos que haviam estado «na outra margem».
Todavia, quase esquecida permanece a oposição no exílio. Porventura pela maior
dificuldade de acesso às fontes, pelo parco eco que as suas acções tiveram em
Portugal ou mesmo por um certo desinteresse, em consequência da distância
geográfica. Ocasionalmente, são publicados testemunhos que evocam essas lutas,
mas os investigadores concentram-se no interior do país, considerado o
verdadeiro centro de todas as batalhas. A actividade dos vários núcleos de
emigrados políticos espalhados pelo continente americano, africano e europeu é,
em geral, abordada apenas superficialmente, cingindo-se à actuação de figuras
notáveis e, quantas vezes, à repetição de ideias preconcebidas. Na sombra tem
ficado a acção desenvolvida por tantos «militantes de base» reunidos em torno
daqueles líderes ou organizados em pequenos agrupamentos e que, a par da sua
vida profissional, asseguram a publicação de periódicos, colaboram na
preparação de conferências e de outras iniciativas, garantem emissões de rádio
ou simplesmente redigem documentos onde procuram divulgar a situação
portuguesa.
O livro de Mansur da Silva é, justamente, um contributo para colmatar essa
lacuna. Partindo da análise do Portugal Democrático,jornal publicado por
emigrados políticos portugueses no Brasil entre 1956 e 1975, o autor fala das
actividades desenvolvidas pelos oposicionistas residentes nesse país e dos
principais debates que os aproximaram ou dividiram durante esse período. Avança
ainda elementos sobre a sua relação com a restante comunidade portuguesa aí
estabelecida e com a sociedade brasileira em geral, dando particular destaque
ao esforço de adaptação às mudanças políticas ocorridas no país de acolhimento.
A iniciativa de lançar um periódico de oposição ao regime salazarista no Brasil
parte de Vítor de Almeida Ramos e Manuel Ferreira de Moura, dois comunistas
portugueses chegados ao país há pouco mais de um ano. Nesse sentido diligenciam
junto de compatriotas de diferentes quadrantes políticos residentes em São
Paulo que se associam ao projecto. A 7 de Julho de 1956 sai a público o
primeiro número do jornal.
As dificuldades em granjear audiência entre a comunidade portuguesa imigrada e
na própria sociedade brasileira, pouco interessadas no discurso oposicionista,
aliadas à falta de recursos económicos e humanos, levam à suspensão do jornal
um ano depois. A publicação é retomada em Junho de 1958, para o que muito
contribui a chegada ao Brasil de um grupo de jornalistas, ex-quadros do jornal
lisboeta Diário Ilustrado, no ano anterior. São nessa altura formados o
primeiro conselho de redacção e o conselho de administração, instalando-se a
sede no Centro Republicano Português de São Paulo.
A ampla divulgação da campanha presidencial de 1958 no Brasil alerta para a
situação portuguesa e o Portugal Democrático vai conquistando público ou, mais
propriamente, criando uma rede de solidariedade nos meios políticos,
intelectuais e artísticos brasileiros. Nos primeiros tempos, a preocupação
fundamental é desmistificar a propaganda do regime português, contestando a
justaposição de pátria e governo defendida no discurso oficial, questionando a
representatividade da sua presença institucional, personificada nos
«comendadores», defendendo a liberdade de expressão e o fim da censura,
apelando à amnistia dos presos e exilados políticos. Procura-se igualmente o
apoio junto dos emigrantes económicos e políticos, sublinhando que ambos haviam
sido forçados a sair da terra natal pelo mesmo poder político.
Mais tarde, o mensário centra-se nos debates sobre a questão colonial, o papel
que cabe à oposição no exílio e as estratégias a adoptar para o derrube da
ditadura e no Portugal que se pretende quando esse objectivo for alcançado. A
partir de 1964, com a ditadura militar brasileira, abster-se-á completamente de
comentar a realidade brasileira. Esta opção, defende Mansur da Silva, aliada ao
grande enfoque dado à guerra nas colónias, por um lado, e ao sentimento
nacionalista brasileiro contra o colonizador português presente em certos
sectores militares, por outro, terá assegurado a sobrevivência do periódico. O
jornal passa a ser mais informativo, recebendo colaborações de diversas partes
do mundo onde estão estabelecidos exilados portugueses, tornando-se mais lido
fora do que dentro do Brasil.
Simultaneamente à edição do Portugal Democrático, o grupo responsável promove
várias iniciativas de contestação ao Estado Novo, de que são exemplos a criação
do Comité dos Intelectuais e Artistas Portugueses Pró-Liberdade de Expressão,
em 1958, e a realização da I Conferência Sul-Americana Pró-Amnistia para os
Presos e Exilados Políticos da Espanha e Portugal (Janeiro de 1960), do «Acto
Público de Solidariedade aos Trabalhadores e aos Povos de Espanha e Portugal»
(27 de Maio de 1962) ou do debate «42 anos de fascismo em Portugal» na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (finais de 1968).
Procura também contactar com outros núcleos de oposição portugueses, no Brasil
e fora, visando constituir uma rede de representantes locais que pudessem
encarregar-se da divulgação e distribuição do jornal. Reflexo da preocupação do
grupo em conseguir o entendimento e articulação do conjunto da emigração
política no Brasil e a sua unidade em torno de um plano de acção comum aos
restantes núcleos de exilados espalhados pelo mundo. A criação do Serviço de
Informação Internacional Portugal Democrático no Rio de Janeiro em Agosto de
1960, espécie de sucursal do periódico, resulta em parte desse esforço.
Idêntico objectivo tem a formação da Unidade Democrática Portuguesa em Outubro
do ano seguinte. Estas organizações pretenderiam minimizar divergências
políticas decorrentes da crescente influência comunista no Portugal Democrático
e contribuir para uma maior denúncia da ditadura portuguesa e das guerras
coloniais. Mas os impasses que inviabilizam a unidade mantêm-se a posição
perante a questão colonial, o alcance que deveria ter a transformação social
almejada, as formas de actuação da resistência no exílio e no interior mesmo
entre a oposição radicada no Brasil.
A revolução em Portugal é saudada com entusiasmo nas páginas do jornal. A
partir daí, o propósito principal é o de fazer a cobertura dos acontecimentos.
Em Outubro de 1974, a periodicidade passa a ser semanal. Na edição comemorativa
do 1.º aniversário do 25 de Abril é, por fim, anunciado o encerramento do
periódico, cumprido que está o objectivo que lhe dera origem. A anunciada
intenção de retomar a publicação acabará por não acontecer, consequência da
pressão exercida junto ao comando de caça aos comunistas brasileiro pelos
partidários do Estado Novo português «refugiados» no país.
O trabalho de Mansur da Silva explicita bem a importância do jornal como espaço
privilegiado para a circulação e debate de questões políticas e culturais, o
seu carácter unitário (apesar de mais formal do que real) e o facto de este
resultar da colaboração de gente com formação profissional e académica diversa,
desde operários a artistas. É interessante a descrição da composição do
periódico e as referências a alguns dos nomes a ele ligados. Pena é que o autor
não tenha optado pela introdução de notas biográficas dos elementos citados, ao
menos dos colaboradores mais empenhados. Os motivos da saída de Portugal, o
campo político a que pertenciam, as funções desempenhadas no jornal e o período
cronológico da colaboração de cada um seriam dados relevantes para melhor
compreender o tema em análise. Como importante seria aproveitar os depoimentos
orais recolhidos e avançar informações acerca dos responsáveis de «segunda
linha», sempre tão difíceis de identificar e biografar. Quando constam, esses
elementos surgem de forma dispersa e algo desorganizada.
O autor faz a necessária contextualização do objecto, inserindo breves notas
sobre a história da oposição em Portugal e da imigração política no Brasil. Já
a introdução do subcapítulo dedicado ao debate em torno da natureza do regime
português parece um pouco descabida.
Reconhece-se a dificuldade de sintetizar sem que a descrição da realidade se
assemelhe a uma imagem monocromática, mas é menos aceitável que não se
actualize a bibliografia consultada (tanto mais que a publicação da tese é
feita seis anos depois da sua apresentação) e que estas descrições contenham
diversas imprecisões e omissões. Por exemplo, não é consultada a dissertação de
doutoramento de Heloísa Paulo, obra dedicada exclusivamente à comunidade
portuguesa radicada no Brasil e sua relação com o regime salazarista até ao
limiar da década de 1960 (Aqui também é Portugal. A Colónia Portuguesa do
Brasil e o Salazarismo,Coimbra, Quarteto, 2000).
Quanto ao resumo da actividade oposicionista em Portugal, o autor cinge-se, sem
que seja explicitado, aos movimentos unitários da década de 1940. De entre
estes, enquanto o Movimento Nacional Democrático merece um desenvolvimento
razoável, o Movimento de Unidade Democrática é referido muito de passagem, não
obstante ter tido um impacto relativo bastante maior. Como também mereceria ser
desenvolvido o período das eleições presidenciais de 1958 e os anos
imediatamente subsequentes, motivo de exílio de vários dos elementos do núcleo
do Portugal Democrático. Outra lacuna é o silêncio quase absoluto sobre outros
núcleos de exilados portugueses e a sua relação com o jornal, particularmente
os de Paris ou de Argel, destinos preferenciais da emigração política a partir
do início dos anos 1960. Refira-se ainda que toda a nota de rodapé dedicada à
Frente Patriótica de Libertação Nacional, organização com quem o grupo mantém
uma ligação significativa, é pouco rigorosa.
Positiva é a incursão na história da oposição portuguesa no Brasil. O asilo
político de Humberto Delgado e algumas actividades por ele desenvolvidas nesse
período, o aparecimento do Portugal Livre, a ruptura com Henrique Galvão, a
forte influência da revolução cubana na luta dos oposicionistas portugueses ou
a vigilância que sobre eles é exercida pelo Departamento de Ordem Política e
Social brasileiro são alguns dos pontos aflorados. Ainda assim, poderiam ter
sido mais exploradas as razões do distanciamento e corte entre Delgado e alguns
membros do núcleo do Portugal Democrático, que terão estado na base da saída
desses elementos em Março de 1963 (e que o autor relaciona unicamente com o
aumento da influência do PCP), ou a criação da Comissão de Interligação em
Março de 1961, precursora da Unidade Democrática Portuguesa. Finalmente, de
salientar a chamada de atenção para a contribuição dos intelectuais portugueses
para a cultura brasileira do século xx, protagonizada em grande medida por
personalidades da oposição.
Como podemos ler na introdução, fazer a história do Portugal Democrático e da
ética de resistência política do núcleo flutuante por ele responsável é o
propósito do livro de Mansur da Silva, intento assaz atingido. Mas a escolha de
um título de capa mais lato e ambicioso, quiçá mais apelativo comercialmente,
acaba por deixar o sentimento de que o trabalho fica aquém do prometido.
Susana Martins