Timor na 2.ª Guerra Mundial - O Diário do Tenente Pires
António Monteiro Cardoso, Timor na 2.ª Guerra Mundial — O Diário do Tenente
Pires, Lisboa, Centro de Estudos de História Contemporânea, ISCTE, 2007, 271
páginas.
A 7 de Dezembro de 1941, o ataque japonês a Pearl Harbour deu início à guerra
do Pacífico. A expansão nipónica foi fulminante: nesse mesmo mês caíram os
territórios americanos de Guam e Wake Island, assim como Hong-Kong; em
Fevereiro de 1942 rendeu-se Singapura e a frota aliada sofreu uma pesada
derrota na batalha do mar de Java. É neste contexto que uma força australiana e
holandesa desembarca em Timor Oriental, a 17 de Dezembro de 1941, à revelia do
governo de Lisboa, e que os japoneses invadem, por sua vez, o mesmo território,
a 19 de Fevereiro do ano seguinte, sem resistência portuguesa e com a rendição
do grosso das tropas aliadas, cinco dias depois. Assim começava uma ocupação
que durará até ao fim da guerra, em Agosto de 1945.
De tudo isto se ocupa geralmente a história política, e em particular a
história diplomática e a militar, abrindo perspectivas relevantes, porque
tratam de factos de que dependem as vidas de milhões de pessoas. A
historiografia tem dificuldade em ir mais além, em atingir o nível mais
concreto — o de saber, ou sequer pressentir, o que essas pessoas, envoltas no
turbilhão, sentem e pensam. Mas há por vezes testemunhos que, como um clarão,
permitem vislumbrar esse lado mais nocturno da história. O "diário"
do tenente Pires é um deles, iluminando de uma luz diferente o que se passou em
Timor no tempo marcado pelas sucessivas invasões.
Do próprio "diário", bem como do texto de António Monteiro Cardoso
que o precede, vemos que a invasão nipónica suscitou na ilha um surto de
violência incontrolável, de origens várias. Por seu lado, os japoneses, que
incitavam os timorenses contra os brancos, em nome da fraternidade asiática e
da construção da "Grande Ásia", formaram a partir de Agosto de 1942
as chamadas "colunas negras" — "grupos de indígenas,
recrutados tanto no Timor holandês como no português, os quais espalharão o
terror, matando e roubando, com a cobertura dos militares japoneses"
(introdução, p. 63). Estes últimos saqueavam, espancavam e assassinavam também
por sua conta, não poupando os próprios naturais da ilha, apesar da retórica de
que se serviam. Por outro lado, ocorreram também revoltas espontâneas de
timorenses na parte oeste do território contra as autoridades portugueses (que
se mantiveram em função na primeira fase da ocupação nipónica) — revoltas com
"origem em antigos ressentimentos contra a colonização portuguesa que se
tinham mantido encobertos devido à dureza da repressão exercida e que agora se
exprimiam, aproveitando a oportunidade criada pela debilitação do sistema
colonial provocada pela invasão japonesa" (ibid.). Em resposta, alguns
dos administradores portugueses mobilizaram contra os revoltosos forças
"indígenas", que agiram também com extrema violência, cometendo
massacres indiscriminados, sem excluir mulheres e crianças. Tomando como
pretexto o clima de insegurança assim criado, o comando nipónico propôs ao
governador português, que a aceitou, a formação de uma zona de protecção onde
se concentraria a população branca do território. Mas parte desta —
nomeadamente os deportados da metrópole, muito numerosos — recusou esta
solução, fugindo e ligando-se às forças australianas ainda activas em Timor,
que lhes prometeram protecção e auxílio. Perseguidos pelos japoneses, alguns
conseguiram embarcar para a Austrália a partir de Novembro de 1942, mas, após a
decisão australiana de abandonar a ilha, tomada a 3 de Janeiro de 1943, os que
restavam "ficaram ao abandono em Timor, sujeitos a morrer de fome, de
doença ou às mãos dos militares japoneses e dos seus colaboradores, como
sucedeu a muitos deles" (introdução, p. 72).
É nesta fase crítica que se inicia o "diário" do tenente Pires,
cuja primeira entrada data de 26 de Dezembro de 1942. Por esta altura, o seu
autor encontra-se na montanha de Matabaia, a leste do território, acossado
pelos japoneses, com um grupo de "cerca de 300 europeus e assimilados,
com mulheres e crianças" (introdução, p. 76). Dispondo de um armamento
reduzido, sem força suficiente para resistir ao avanço das tropas nipónicas,
Pires vai progressivamente assumir como objectivo a obtenção de socorros
"para embarcarem todos os portugueses, vítimas do egoísmo feroz dos
soldados australianos, que embarcaram, abandonando cobardemente à pior e à mais
horrível sorte os portugueses, que na Colónia vivem abandonados pelo Governo da
Metrópole […]", como escreve a 26 de Janeiro de 1943. Não o conseguindo
obter, foi a custo convencido a partir num submarino para a Austrália a 10 de
Fevereiro, dando-se por missão persuadir os aliados a "salvar os
portugueses e os indígenas, vítimas das atrocidades japonesas"
(introdução, p. 80). No resto do "diário", Pires dá conta das
múltiplas diligências que empreendeu para cumprir esse objectivo, esbarrando
sempre no que ele pensava ser a inércia australiana, quando, na verdade, se
estava perante a decisão aliada de nada arriscar nessa altura em favor de
Timor, que de momento perdera a sua importância estratégica. Tomado pela
angústia de trair a confiança dos companheiros que tinham ficado na ilha, passa
a pedir que o lancem de pára-quedas nas montanhas timorenses. Por fim, oferece-
se para desembarcar no território com um pequeno grupo, que ficaria a fornecer
informações aos aliados, em troca da evacuação de 50 portugueses — o que é,
finalmente, aceite pelos serviços secretos australianos. Neste ponto termina o
"diário", a 16 de Maio de 1943.
Pelo texto introdutório de António Monteiro Cardoso sabe-se que o tenente Pires
desembarcou de facto em Timor na noite de 1 para 2 de Julho. A 3 de Agosto,
pelos seus esforços, foram evacuados para a Austrália 89 refugiados. A 29 de
Setembro, Pires viu-se cercado e capturado pelos japoneses, às mãos dos quais
veio a morrer meses mais tarde.
O "diário" do tenente Pires é, em si, um texto admirável que se lê
como uma tragédia grega: vemos os dilemas da sua consciência e assistimos à
realização inexorável do seu destino. Apercebemo-nos, nesse percurso, de que
estamos perante a história, não de um herói português das hagiografias oficiais
ou da historiografia marcada por objectivos políticos mais ou menos explícitos,
mas de um dos obscuros heróis do nosso tempo: alguém que, seguindo os impulsos
da sua consciência, procura salvar quem nele confiou e que, sacrificando-se,
acaba por salvar de facto algumas dezenas de companheiros, europeus e
timorenses.
Por vezes, o interesse de documentos como este perde-se em publicações mal
cuidadas que acabam por ocupar o espaço editorial, desperdiçando-o. Felizmente,
tal não acontece neste caso: o "diário" é-nos apresentado com um
impressionante aparelho crítico que facilita a sua compreensão e a dos factos a
que se refere. Não há nome próprio nele citado que não mereça uma referência
biográfica, não há localidade que não seja situada, não há incidente que não
seja explicado. Tudo isto supõe um imenso trabalho de recolha de informação e
de cruzamento de fontes (trabalho em que, como Cardoso faz questão de
sublinhar, foi importante a colaboração de Luísa Tiago de Oliveira). Para além
da muito boa bibliografia de apoio, a pesquisa estendeu-se a vários arquivos
portugueses, podendo ainda contar com preciosos documentos dos arquivos
nacionais da Austrália, disponíveis na Internet. Em anexo é publicada a
correspondência de Pires para entidades de vários países enquanto esteve na
Austrália, bem como a trocada com alguns dos seus companheiros, que completam o
"diário", permitindo aferir melhor as suas perspectivas sobre a
situação então vivida na zona de guerra do sudeste asiático. Única ressalva a
fazer quanto a este ponto: julgamos que teria sido útil incluir também a
directiva de 12 de Junho de 1943 dos serviços australianos ao tenente Pires, na
qual se fixavam os objectivos do pequeno grupo que ele ia chefiar em Timor.
Tanto quanto se pode inferir da breve referência que lhe é feita na introdução
(p. 93), trata-se de um texto trabalhado ou acordado com o próprio Pires: assim
se explicariam as alusões nela contidas à necessidade de "imbuir os
chefes e os nativos do sentimento de lealdade à bandeira portuguesa" e ao
"restabelecimento da autoridade portuguesa na colónia".
Tudo isto é precedido de uma introdução que vai muito além de um simples
comentário ao texto de Pires: estamos perante uma verdadeira história de Timor
durante a primeira metade do século xx, nas suas linhas gerais, muito sucinta,
mas captando o essencial, com grande rigor de análise.
O relato começa com as guerras de ocupação do governador Celestino da Costa
(1894-1908), utilizando os timorenses mais ligados ao colonizador ("em
especial nalgumas povoações do litoral norte, como Díli, Baucau e sobretudo
Manatuto e Lacló") contra os mais hostis (na zona oeste e principalmente
sudoeste do território). Caracterizada por uma grande violência, a campanha
tinha "um objectivo bem definido: a imposição aos indígenas do trabalho
obrigatório, centrado na cultura do café" (pp. 18-19). Reprimida em 1912,
pelos mesmos métodos, a revolta do Manufai, no sul do território — "a
maior e mais longa insurreição contra a dominação colonial, que esteve à beira
de expulsar os portugueses da ilha" (p. 20) —, estava consumada, no
essencial, a "pacificação" de Timor. Seguiu-se um regime de
administração militar, que António Monteiro Cardoso descreve sem complacência
no capítulo iii. Só o título — "um paternalismo áspero" — nos
parece frouxo para referir um sistema colonial em que se prendia, desterrava e
matava arbitrariamente, além de outros abusos, como a prática
institucionalizada do trabalho forçado. Sobre a situação nos anos 30, Cardoso
mostra com pertinência a sua dupla face: o "considerável esforço
colonizador" então realizado, "através de uma política
assimilacionista mais acentuada, no quadro da euforia nacionalista que
caracteriza esta época" (p. 25"), e a crise económica resultante da
depressão mundial, que introduziu novas tensões. Quatro outros capítulos — o
vi, o viii, o ix e o x — tratam da conjuntura da guerra, levando a análise até
1945, por altura do restabelecimento da autoridade portuguesa.
Para além do seu objectivo geral, amplamente conseguido — o de contextualizar a
acção do tenente Pires e o seu "diário" —, estas páginas sobre a
história de Timor têm o mérito suplementar de nos darem pistas relevantes para
compreendermos a evolução do território até aos nossos dias.
O texto introdutório está ainda enriquecido com um capítulo sobre os deportados
políticos, que se justifica pela importância que assumiram em Timor (onde
constituíam uma boa parte da população colonizadora) sobretudo durante a
segunda guerra mundial. Em anexo, um quadro contém informações muito detalhadas
sobre os remetidos em grandes vagas de 1927 a 1931 — parte deles presos e
deportados sem processo ainda durante a i República.
Finalmente, outro capítulo intercalar é dedicado à acção do tenente Pires como
administrador. Parece-nos o menos conseguido do volume, aproximando-se das
biografias tradicionais dos funcionários do império. É possível, e até
provável, pelo que dele sabemos, que Pires tivesse uma relação com os
"indígenas" mais humana do que era habitual na ilha, mas não
deixaria por isso de ser o representante do poder colonial, com as funções
inerentes de comando, exigindo subordinação. Dificilmente a abertura de
estradas ou a promoção da cultura do algodão, que lhe são creditadas, se fariam
à margem das coerções correntemente exercidas pela administração portuguesa.
Terá pesado aqui, na análise de Cardoso, a compreensível simpatia pelo
biografado.
Mas trata-se de um pecado menor. No seu conjunto, estamos perante uma obra
exemplar. Venham mais, muitos mais livros como este, da autoria de António
Monteiro Cardoso ou de outros que lhe sigam a lição de rigor. Há, nomeadamente,
outro drama colectivo — o vivido no norte de Angola em 1961 — que merece uma
abordagem semelhante, a partir de textos de carácter memorialístico, muitos já
publicados, outros por publicar, todos a necessitarem de uma análise crítica
com a qualidade da que acabámos de recensear.
Valentim Alexandre
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa