Manejos da religião, da etnicidade e recursos de classe na construção de uma
cultura migratória transnacional
Notas conclusivas
Como sublinha Tololyan, "as diásporas têm vindo a ser idealizadas como
comunidades transnacionais exemplares, abertas, porosas, cosmopolitas […]
desterritorializadas e, deste modo, capazes de fornecer — mas não de impor,
como fazem os Estados-nações, aos seus cidadãos/súbditos — identidades
flexíveis e múltiplas" (2000, p. 112). Distanciando-nos em parte desta
idealização (e das antinomias conceptuais que lhe subjazem), procurámos
analisar as práticas transnacionais dos indo-britânicos que se estabeleceram em
Moçambique, bem como os seus investimentos e estratégias de reterritorialização
enquanto processos estreitamente relacionados. Enfatizámos, em paralelo, que a
compreensão de tais processos exige uma articulação sistemática entre as
agencialidades e os recursos dos actores migrantes envolvidos com as políticas
nacionais (e suas variações), bem como com as próprias circunstâncias
internacionais. Nem os actores (apoiados nos seus múltiplos recursos) constroem
e reconstroem autonomamente experiências transnacionais nem os Estados e as
relações internacionais produzem automaticamente processos de ressedentarização
ou de transnacionalização (Waldinger e Fitzgerald, 2004).
Problematizando, sobretudo, a influência da filiação religiosa, da etnicidade e
dos recursos de classe quer na reconfiguração das práticas transnacionais
desenvolvidas pelos pioneiros indo-britânicos em Moçambique, quer nas suas
estratégias de integração nacional, destacámos a existência de uma cultura
migratória e mercantil prévia centrada em certas microlocalidades, a qual
atravessava diferentes comunidades de casta e várias identidades étnico-
religiosas, uma cultura caracterizada por uma notável capacidade de circulação
(de informações, bens, créditos, homens e até, posteriormente, mulheres) no
interior de redes que combinavam um grau de fechamento (assente em laços de
parentesco, de casta e/ou de comunidade) com uma dose significativa de abertura
interétnica.
Como argumentámos, foi sobretudo ao nível das relações interétnicas que os
repertórios religiosos de orientação ofereceram recursos indispensáveis aos
processos de reterritorialização, os quais, por extensão, não só não
funcionaram como uma tendência antagónica, como potenciaram as ambições e
opções transnacionais dos passengers gujaratis. Com efeito, ao questionarem a
existência de relações de poder estanques e irreversíveis (em particular, as
baseadas na cor da pele e no poder económico) e condenarem processos de
fechamento e de hierarquização excessivos, quer o islão indiano, quer o
hinduísmo vividos em Moçambique viabilizaram (legitimando também no plano
religioso) as múltiplas interacções e trocas quotidianas entre indianos e
africanos, indispensáveis ao negócio da permuta, fonte principal da
prosperidade indiana.
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De outro ângulo, e apesar de a filiação religiosa, hindu ou muçulmana, não
constituir uma influência significativa na cultura empresarial indiana, a
relação diferencial que as autoridades coloniais portuguesas mantinham com
hindus, sunitas e ismaelitas desempenhou um papel importante nas práticas de
transnacionalismo que se desenvolveram, em particular, a partir da década de
60. Embora os sunitas de origem indiana tenham sido perioridicamente encarados
como uma fonte potencial de transmissão de "ideias subversivas", a
obsessão com o suposto nacionalismo hindu, enquanto "inimigo" do
sonho imperial a partir de 1961, confirmou (sobretudo a estes últimos e aos
seus descendentes) a importância das conexões e dos investimentos multilocais.
Neste sentido, a própria ambivalência colonial em relação à presença indiana
acabou por contribuir para a renovação de saberes e estratégias de circulação e
de relacionamento interétnico que voltariam a ser cruciais nas decisões e nos
investimentos pós-coloniais dos indo-moçambicanos.
Fontes e Bibliografia
Fontes
IANTT, Correspondência da comissão coordenadora dos assuntos relativos a
pessoas e bens dos súbditos da União Indiana à PIDE.
Keshavjee, H. V. (1945), The Aga Khan and Africa, His Leadership and
Inspiration, Durban, The Mercantile Printing Works.
Guardian (Lourenço Marques), 2 de Outubro de 1946.