António Sardinha (1887-1925). Um Intelectual no Século
Ana Isabel Sardinha Desvignes, António Sardinha (1887-1925). Um Intelectual no
Século, 1.ª ed., Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006, 291 páginas,
ilustrado.
A historiografia que se tem debruçado sobre a primeira metade do século XX
português atribuiu ao Integralismo Lusitano (IL) uma importância que,
objectivamente, nunca teve (Martins, H., Classe, Status e Poder e Outros
Ensaios sobre Portugal Contemporâneo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais,
1998, pp. 19-28; Cruz, M. B. da, “O Integralismo Lusitano nas origens do
salazarismo”, in Monárquicos e Republicanos no Estado Novo, Lisboa, D. Quixote,
1986, pp. 13-74). Depois de J. M. Quintas ter publicado alguns textos dispersos
sobre o IL — em que analisou a conturbada relação deste e dos integralistas com
o sidonismo, a ditadura militar e o salazarismo —, é pacífico reconhecer-se que
a sua influência na história dos regimes políticos portugueses que vigoraram
entre 1917 e 1974, assim como no pensamento político português de todo o século
XX, foi praticamente nula no primeiro caso e modesta no segundo (Quintas, J.
M., “O integralismo face à institucionalização do Estado Novo: contra a
‘salazarquia’”, in História, ano XXIV, II série, n.º 44, Abril de 2002, pp. 34-
41). Não tendo sido absoluto o seu insucesso, até por ter galgado fronteiras
para a Espanha e para o Brasil nas décadas de 20 e 30, ou por ter formado
jovens quadros que serviram Salazar e o Estado Novo em posições de destaque
(casos de Manuel Múrias, Pedro Theotónio Pereira e Marcello Caetano), certo é
que se transformou numa agremiação politicamente inconsequente [Gutiérrez
Sánchez e Jiménez Núñez, F., “La recepción del Integralismo Lusitano en el
mundo intelectual español”, in Baiôa, Manuel, ed., Elites e Poder. A Crise do
Sistema Liberal em Portugal e Espanha (1918-1931), Lisboa, Colibri — CIDEHUS-
EU, 2004, pp. 303-321; Brito, Giselda, “O pensamento político de António
Sardinha no Brasil”, comunicação apresentada no XXIV Simpósio Nacional de
História, UNISINOS, São Leopoldo, RS, Brasil, Julho de 2007, no prelo].
Apesar de esta realidade melancólica marcar a história do IL, é bem-vindo o
livro de Ana Isabel Sardinha Desvignes, redigido a partir da sua tese de
doutoramento em História defendida no ISCTE e cujo âmbito cronológico se ficava
pelo período da vida de António Sardinha decorrido entre 1903 e 1915. O
trabalho de Ana Desvignes é a biografia “intelectual” de um homem que se
notabilizou por ter liderado, com Luís de Almeida Braga, Hipólito Raposo,
Alberto Monsaraz e Pequito Rebelo o IL e por ter tido também pretensões
enquanto poeta, ensaísta e historiador. Para a sua redacção, a autora utilizou,
além da obra de Sardinha publicada em vida e postumamente, as inúmeras cartas
que este escreveu à sua prometida e depois mulher (as cartas enviadas por Ana
Júlia Nunes da Silva a Sardinha foram por esta destruídas). O espólio cobre,
principalmente, os períodos que vão de 1910 (último ano da estada de Sardinha
em Coimbra) a Junho de 1912 (ano em que contraíram matrimónio) e do início de
1919 a meados de 1921 (anos do exílio de Sardinha em Espanha). Infelizmente, e
sobretudo para o período posterior a 1921, quando Sardinha passou boa parte da
sua vida em Elvas, a autora não utiliza a vasta e importante correspondência
que lhe foi dirigida por figuras que iam de Manuel Múrias a Theotónio Pereira,
de Alberto Monsaraz a Hipólito Raposo, de João Ameal a Rodrigues Cavalheiro ou
de António Sérgio a Rolão Preto e que se encontra depositada na Biblioteca João
Paulo II da Universidade Católica.
Concluída a leitura do trabalho de Desvignes, o leitor pode ficar com uma
certeza. A obra e o pensamento de Sardinha têm interesse em si, mas não muito
mais do que isso. Recordei-me, por isso, de uma avaliação que Alfredo Pimenta
fez ao menos uma vez sobre uma e outro. Cheio de bom senso, Pimenta disse
praticamente tudo sobre a estatura intelectual do homem de Monforte (Sardinha
era natural desta vila do Alto Alentejo) ao ter sentenciado que, embora este
tivesse morrido “cedo” para “a sua família e para os seus amigos”,
desaparecera, “porém, a tempo para o seu nome”, concluindo em seguida que
Sardinha tinha sido um daqueles “homens que só lucram em não sobreviverem a
certos acontecimentos”. O mesmo Pimenta, que conhecia as fracas qualidades de
Sardinha como doutrinador, foi ainda lapidar na avaliação que dele fez enquanto
historiador. Não hesitou em considerar absurda a pretensão de Sardinha em
escrever uma história de Portugal à luz da doutrina integralista e em acusá-lo
de não dominar as técnicas do ofício de historiador, censurando-o por escrever
história como se de tratasse de pura ficção (não quanto ao estilo, mas quanto à
substância). Sardinha, segundo Alfredo Pimenta, era sobretudo um espírito vivo
e eficaz no modo como polemizava, na forma que imprimia à sua escrita
jornalística e no jeito que dava às palavras e aos gestos para electrizar
alguns jovens espíritos no ambiente próprio da conspiração política (Pimenta,
Alfredo, A propósito de António Sardinha. Carta ao Escritor Brasileiro
Guilherme Auler com Quatro Cartas de António Sardinha, Lisboa, ed. do autor,
1944, passim). Como se não bastasse, e como Ana Isabel Desvignes reconhece
através das reacções que recolheu à publicação da obra poética de Sardinha nas
décadas de 10 e 20, nem sequer neste género que tanto cultivou pôde o
biografado sair da mediania, para não dizer da mediocridade (pp. 36 e 204).
António Sardinha passou mais de vinte anos da sua curta vida a tentar ler,
escrever e fazer política de forma original. Oriundo de uma família burguesa de
Monforte ligada à terra, mas com crescentes dificuldades em travar a sua curva
descendente na escala social, Sardinha interessou-se pelas letras, pelo
pensamento e pela acção política e pelo fenómeno religioso. Frequentou Direito
na Universidade de Coimbra entre 1906 e 1911. Durante esses anos foi
republicano. Rejubilou (às vezes com reservas) com o radicalismo político-
ideológico e social da jovem república. Neste período, muito por influência dos
seus amigos aristocratas de Coimbra, como Alberto Monsaraz, foi “esotérico”.
Ainda em Coimbra procurou cultivar as amizades certas que lhe permitissem
escapar ao exílio penoso que seria um regresso a Monforte. Apostou na protecção
de Teófilo Braga, de quem esperava elogios públicos e um lugar na Faculdade de
Letras de Lisboa. Teófilo Braga acabaria, aliás, por fazer parte de um júri
que, naquela escola, no ano de 1914, o reprovou nas provas de acesso à docência
ao considerar que a dissertação apresentada não possuía “solidez científica”
(p. 133). Da sua fase republicana, que Ana Isabel Desvignes classifica
bondosamente como juvenil e romântica (p. 89), sobrou o culto do
“municipalismo” (uma influência transmitida pelo pensamento do já citado
Teófilo Braga e de José Félix Henriques Nogueira).
Como republicano heterodoxo que foi, Sardinha nunca desdenhou o convívio social
e uma boa dose de cumplicidade política com meios conservadores, monárquicos e
tradicionalistas de Coimbra. Será essa cumplicidade e as amizades ali feitas e
mais tarde consolidadas que lhe darão o lastro para que, por volta de 1914-
1915, iniciasse uma actividade política e doutrinal no IL (cujo primeiro
momento verdadeiramente importante serão as conferências da Liga Naval em
Lisboa). Estas solidariedades permitir-lhe-ão publicar regularmente os seus
livros de poesia e de ensaios (como é o caso de O Valor da Raça, que, editado
em 1914, reproduz grande parte da tese chumbada na Faculdade de Letras de
Lisboa). Pelo meio, e já em Monforte (onde é colocado como oficial do Registo
Civil), abandona o republicanismo e casa-se com Ana Júlia, uma jovem
pertencente a uma família abastada de Elvas.
A estada de Sardinha em Monforte a partir de finais de 1911 fá-lo-á abandonar o
republicanismo e abraçar a fé católica. Aparentemente, foi pela razão que
redescobriu o cristianismo, que para si só podia ter a forma católica. Passou
então, no que ao catolicismo diz respeito, de uma fase estética e superficial
para uma outra político-ideológica, instrumental, “matriz de uma ideologia
conservadora”: o IL. A sua conversão foi influenciada por autores franceses,
como Maurice Barrès e Henri Bergson, ou seja, o nacionalismo de Sardinha e do
IL, como bem viram os seus adversários republicanos, muito pouco tinha de
português. No essencial, e para responder aos desafios políticos colocados pelo
regime republicano, inspirou-se no modo de pensar e de agir dos contra-
revolucionários franceses seus contemporâneos. Ainda que conhecesse a obra de
alguns teóricos portugueses da contra- revolução, a verdade é que foi na França
de finais do século XIX e do início do século XX que encontrou a matéria-prima
que permitiu dar ao IL um conjunto de ferramentas que lhe garantiram algum
êxito político. Se não estivesse disponível no mercado internacional das ideias
políticas um pensamento e uma prática contra-revolucionária franceses prontos a
serem aproveitados por potenciais contra-revolucionários portugueses,
dificilmente Sardinha e os integralistas teriam sido aquilo que foram.
A chegada de Sidónio Pais ao poder em Dezembro de 1917 revelar-se- -á uma
bênção para o IL e para a generalidade de um campo monárquico dividido em
várias facções. Entre Dezembro de 1917 e Dezembro de 1918, o IL funda o diário
A Monarquia. Sardinha (que será deputado), com outros correligionários, terá
uma oportunidade única para se aproximar do exercício do poder e, mais tarde,
iniciar um processo de afastamento de Sidónio, ao ponto de, em vésperas do
assassinato deste, estar em marcha, com colaboração integralista, um golpe
monárquico contra o presidente-rei e a sua República Nova.
Uma vez que Ana Desvignes prefere a biografia intelectual à política, o texto
para o período posterior a 1914 perde densidade pelo facto de nesta data se ter
consolidado, por via ideológica, aquilo que designa como o seu processo de
“afirmação integralista”. No entanto, a narrativa não perde interesse. Por
exemplo, nas cartas trocadas com a sua mulher durante o exílio em Espanha (após
o fracasso da Monarquia do Norte) são de assinalar as referências, embora
curtas, às divergências políticas existentes no seio do IL (p. 238) e à Junta
Central [exigências no sentido de o integralismo reduzir a sua acção política a
um trabalho metódico de doutrinação através da publicação de uma nova série da
Nação Portuguesa(p. 238)], a influência que a Action française e Charles
Maurras tiveram nas opções políticas impostas por Sardinha depois da sua
chegada do exílio e a análise que é feita do impacto que o exílio em Madrid
teve na formação política de Sardinha, quer na forma como Sardinha examina a
política portuguesa e o papel que nela o IL deve desempenhar, quer no modo como
interpreta aquilo que deveria ser o novo relacionamento político entre os dois
Estados ibéricos e a sua projecção no mundo (que explicará na Aliança
Peninsular publicada em 1924).
O livro de Ana Desvignes tem o mérito de não ocultar o anti-semitismo de
Sardinha, mas é demasiadamente compreensivo com a sua “germanofilia” (analisa-
a não no contexto do combate político da época, mas no estrito domínio do
confronto de ideias em que Sardinha e outros integralistas, para sua
conveniência, o colocaram). Finalmente, não explora aquele que é um filão
importante na vida política de Sardinha depois de 1921. Ou seja, o facto de
este ter iniciado paulatinamente uma estratégia de acção política — de que
jovens integralistas dos liceus e das universidades eram seus importantes
aliados — cujo objectivo era patrocinar, e talvez até liderar, um projecto de
união política da direita nacionalista e autoritária, mas que a morte precoce
impediu de tentar concretizar e que, a partir de 1928, já em plena ditadura
militar, Oliveira Salazar, oriundo do Centro Católico, conseguiria realizar.
Fernando Martins
Universidade de Évora