Democracia, Partidos e Elites Políticas: Ensaios
Maurizio Cotta, Democracia, Partidos e Elites Políticas: Ensaios, Lisboa,
Livros Horizonte, 2008, 245 páginas.
Depois de um período marcado por uma certa colonização económica e sociológica,
a ciência política tem vindo a recuperar a sua autonomia nas últimas décadas
com o regresso (em novos moldes, evidentemente) do estudo das instituições e
das elites. Maurizio Cotta tem sido um importante protagonista neste processo,
retomando, nas suas próprias palavras, o “trilho da gloriosa escola italiana de
ciência política de Mosca, Pareto e Michels” (p. 10). Dele apenas conhecíamos,
em edições portuguesas, o capítulo sobre a Itália (em co-autoria com Luca
Verzichelli) no livro Quem Governa a Europa do Sul? (Pedro Tavares de Almeida,
António Costa Pinto, Nancy Bermeo, orgs., Lisboa, ICS, 2006). A colecção
“Estudos Políticos” da Livros Horizonte traz-nos agora a tradução de um
conjunto de ensaios publicados por este politólogo nos últimos dezassete anos,
apresentados em duas partes fundamentais: uma primeira mais comparativa e uma
segunda mais centrada no caso italiano.
Nos primeiros dois capítulos do livro, Cotta discute e aprofunda o tema das
relações entre partidos e governos nas democracias ocidentais, começando por
redefinir os conceitos através de uma detalhada decomposição destas
instituições, mais complexa, necessariamente, no que toca aos partidos (p. 20).
Partindo da literatura mais relevante sobre organizações partidárias — onde só
falta, talvez, a referência ao contributo de Herbert Kitschelt, interessante,
por exemplo, para a análise das motivações dos diferentes tipos de militantes
(Herbert Kitschelt, The Transformation of European Social Democracy, Cambridge,
Cambridge University Press, 1994) —, o autor apresenta-nos uma tipologia das
relações entre partidos e governos (pp. 38 e 56). Teoricamente, o governo tanto
pode ser o elemento principal desta relação como uma componente do elemento
principal ou mesmo um elemento secundário. Tudo “depende da maneira como se
organiza e funciona o jogo representativo” (p. 65), isto é, do sistema de
governo, do grau de autonomia das organizações partidárias face ao poder
executivo e da própria margem de manobra da burocracia que Cotta reconhece, sem
identificar, contudo, as estratégias que têm sido seguidas pelos políticos para
a contornar.
Assim sendo, importava perceber como teria evoluído nesta equação o peso
relativo da instituição governo nas democracias ocidentais. Para Maurizio
Cotta, à partida, o declínio das ideologias e da identificação partidária, bem
como o aumento da volatilidade eleitoral, podem favorecer a autonomia dos
grupos parlamentares face à organização (p. 31) e, hipótese mais provável,
funcionar como incentivos para a integração no governo dos principais
dirigentes do partido (p. 62). Mas a própria intensidade do papel da
organização partidária no processo de decisão pode variar ao longo do ciclo
político, aumentando, evidentemente, nos períodos imediatamente anteriores e
posteriores às eleições (p. 98).
Relativamente ao poder da burocracia, o autor também identifica variações não
só de país para país (mais conhecidas), mas no interior do mesmo governo entre
diferentes ministérios: “Se compararmos, por exemplo, o Ministério das Finanças
ou o dos Negócios Estrangeiros com os do Trabalho ou da Agricultura, é provável
que os primeiros sejam mais autónomos e eficazes do que os segundos no
exercício da influência política e na resistência a influências externas” (p.
55). É também para aí que aponta o caso português (v. Filipe Nunes, “Os
directores-gerais: perfil social e político”, in António Costa Pinto e André
Freire, orgs., Elites, Sociedade e Mudança Política, Oeiras, Celta, 2003).
No centro desta relação entre partidos e governos estão os ministros, tema do
último capítulo desta primeira parte do livro aqui analisado nas suas duas
perspectivas principais: recrutamento e policy-making. As conclusões, a saber,
que “a maioria dos ministros tinha experiência parlamentar” (p. 106), poderão
surpreender os leitores portugueses menos familiarizados com os dados
comparativos (designadamente os referentes à Europa ocidental) e habituados à
valorização pública do recrutamento de “técnicos independentes” na formação dos
governos nacionais. Mais, se à experiência parlamentar juntarmos a experiência
política local e regional, “com esse indicador múltiplo as diferenças entre
países estreitam-se” (p. 107). Isto leva Cotta a concluir que “a carreira
ministerial tem vindo a politizar-se cada vez mais” (p. 117), apesar (ou por
causa) das crescentes funções técnicas e sociais do Estado. E não parece que se
estejam a sair mal em comparação com os colegas da “sociedade civil”, uma vez
que “os ministros que ocupam mais tempo o cargo governativo tendem a ter mais
experiência” (p. 119). Esta tendência, observada no início da década de 90 em
relação a várias democracias ocidentais, é confirmada no estudo comparado do
recrutamento ministerial na Europa do Sul (o já citado Quem Governa a Europa do
Sul?). A excepção é, de facto, Portugal. Daí que, face à relação que o autor
estabelece entre democratização e politização dos governos (p. 102), sejamos
levados a questionar se a abertura nacional aos ministros independentes não
representará, afinal, mais um sintoma (e mais uma causa) do frágil enraizamento
do sistema partidário português.
A segunda parte do livro é exclusivamente dedicada ao caso italiano, o que se
apresenta, desde logo, tanto mais interessante quanto se trata de um país ao
qual Portugal dedica pouca atenção, apesar das semelhanças que, aliás, aqui
ficam patentes, por exemplo, na forma como os partidos de governo se legitimam
eleitoralmente e no tipo de relação que estabelecem com a União Europeia (v.
capítulo 6).
O primeiro capítulo desta parte é uma análise da consolidação da democracia e
da transformação das elites políticas italianas à luz do modelo teórico
desenvolvido por John Higley e Richard Gunther (eds.) (Elites and Democratic
Consolidation in Latin America and Southern Europe,Cambridge, Cambridge
University Press, 1992). Através de uma série de episódios históricos
devidamente periodizados em função do tipo dominante de relações entre elites
políticas, temos acesso a temas essenciais de mais de cem anos de história
política do Estado-nação italiano. Fica, no entanto, a dúvida acerca da
pertinência da publicação isolada de um capítulo cuja leitura só funciona se
for acompanhada pela clarificação conceptual que Higley e Gunther fazem na
introdução do livro donde foi extraído (estamos a falar de conceitos como
“acordo”, “cooperação”, “convergência” ou “unificação” de elites).
Neste sentido, torna-se mais interessante, por exemplo, a leitura do capítulo
seguinte, centrado na crise do sistema partidário italiano nos anos 90. Depois
de quarenta anos em que, como lembra Cotta (p. 165), a II República superou
quase tudo (reconstrução no pós-guerra, clivagens ideológicas em torno da
guerra fria, terrorismo e choques petrolíferos), o “governo de partidos à
italiana” não resistiu nas eleições legislativas de Março de 1994. Para se ter
uma ideia da dimensão da ruptura basta um número: “71% dos novos deputados
foram eleitos pela primeira vez [em 1994]” (p. 167). A Democracia Cristã e o
Partido Socialista Italiano, partidos dominantes não só no plano institucional,
mas em várias esferas da vida social (banca, empresas, cultura, comunicação
social), praticamente desapareceram. Não surpreende, assim, que este se tenha
tornado um motivo de romaria historiográfica e politológica.
A explicação de um fenómeno com este alcance não podia, evidentemente, ser
reduzida ao efeito da operação “mãos-limpas”; era necessária uma análise mais
fina, capaz de recuar e perceber as características específicas deste modelo de
governo de partidos. Foi precisamente o que fez Cotta.
Entre 1945 e 1994, o modelo italiano assentou numa espécie de “governo
atrelado” em que “era normal a maioria da direcção do partido ficar fora do
executivo” (p. 174). Fora do governo, os principais dirigentes dos partidos
podiam mobilizar mais facilmente os temas metapolíticos (ideologia) e exigir
micropolíticas (para as clientelas), sem nunca se sujeitarem às consequências
das mesopolíticas (reformas estruturais) a que eles, aliás, militantemente
resistiam.
Mas, progressivamente, a extensão das nomeações partidocráticas que o modelo
implicava “levou a opinião pública a identificar com os partidos um vastíssimo
conjunto de instituições, entidades, empresas e aparelhos burocráticos” (p.
176). Por outro lado, no final dos anos 80, o fim do comunismo, associado à
integração económica e monetária da Europa (tema do último capítulo), colocou
sérios constrangimentos à prossecução desta estratégia de consolidação
partidária. No fundo, à medida que as ideologias declinavam e que as
dificuldades orçamentais aumentavam, a dimensão “meso” ganhava força e a
centralidade do governo tornava-se incontornável (p. 175). A política de cortes
orçamentais teve, segundo Cotta, “um resultado provavelmente louvável do ponto
de vista económico, mas que significava que os partidos estavam a cortar o
último ramo em que se encontravam sentados. O governo de partidos à italiana
ficou assim preso por uma espécie de tenaz. Os dois níveis fundamentais da
competição política — o das metapolíticas e o das micropolíticas […] tinham
esgotado completamente ou de maneira muito significativa as suas
potencialidades” (p. 195).
Este texto foi escrito pouco tempo depois da crise de 1994 e, como tal, não foi
possível ao autor avaliar as estratégias de legitimação dos novos actores
partidários. Mas depois de ler este capítulo apetece perguntar se o segredo do
persistente sucesso eleitoral de Berlusconi, muitas vezes inexplicável para o
observador internacional, não assentará na sua capacidade de reinventar — com a
retórica anticomunista, as políticas dirigidas a clientelas, a relutância
reformista e a desresponsabilização via Bruxelas — aqueles que foram os dois
níveis fundamentais de legitimação e competição eleitorais até ao fim dos anos
80: a ideologia e as micropolíticas.
Não há livro académico sobre o qual não se diga que interessa a estudantes,
investigadores e ao público em geral. Mas neste caso é mesmo verdade. Em
Democracia, Partidos e Elites Políticas temos um conjunto de textos onde
funciona uma boa combinação entre a perspectiva comparada e o estudo de caso;
entre o estudo dos actores e das instituições políticas; entre as elites e o
eleitorado; entre a análise longitudinal e a análise mais intensiva. Além
disso, genericamente, os textos são de leitura acessível, sem que isso implique
menos rigor ou valor teórico. Neste sentido, estamos perante a ciência política
no seu melhor — análises informadas que interpelam o leitor a discutir as
ideias feitas que, diariamente, lhe são fornecidas pelo senso comum.
Filipe Abreu Nunes
ICS/Universidade de Lisboa