Terra Calada - Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia
Susana de Matos Viegas,Terra Calada Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da
Bahia,Coimbra, Almedina, 2008, 344 páginas.
Terra Calada é uma investigação de base etnográfica sobre processos de
identidade e socialidade entre os tupinambá de Olivença que habitam a região da
Mata Atlântica no sul da Bahia, perto da vila de Olivença, no município de
Ilhéus. Assenta numa pesquisa de campo feita entre 1997 e 1998, com regressos
ao terreno em 2003 e 2004 para prossecução do trabalho de identificação da
terra indígena para a FUNAI. A motivação inicial deste estudo prendia-se com
questões de etnicidade e de politização da identidade, algo que o trabalho de
campo viria alterar. Susana de Matos Viegas defende uma interpretação de formas
de identificação que, em vez "de se fundamentarem em noções
substancialistas e classificatórias estanques de `tipos de pessoa', dizem
respeito a modos de criar afecto, de viver e habitar e a modos de conceber como
a vida social se faz no tempo" (p. 18).
O trabalho insere-se numa antropologia da vida quotidiana (explorada por
autores como Peter Gow, Janet Carsten ou Cecilia McCallum), assente numa
crítica ao conceito de sociedade, preterido a favor de uma abordagem da
socialidade. Parte igualmente de uma perspectiva processual, conjugando
aspectos sociais e culturais numa análise micro-histórica e regionalmente
específica, tentando "derrubar o muro erguido entre a etnografia dos povos
ameríndios que habitam o Nordeste brasileiro e a dos que habitam na
Amazónia" (p. 49) e gerando antes uma perspectiva comparativa. Assente em
premissas fenomenológicas, o trabalho parte do princípio de que o social não
pode ser visto como um processo "pós-facto e o indivíduo como um agente
que começa por surgir no mundo de modo a-social e a-histórico", rejeitando
ainda a noção de que "para que o social exista tenha que ser susceptível
de uma reificação como entidade agregativa de partes num todo" (p. 50). O
mundo social é, outrossim, conhecido por meio da "experiência
vivida", a qual se constitui na intersubjectividade, na esteira das
aproximações entre antropologia e fenomenologia propostas por antropólogos como
Christina Toren ou Peter Gow.
A análise etnográfica propriamente dita tem um dos seus momentos de grande
fôlego na abordagem da dinâmica dos sentidos de habitar, surgindo em torno da
casa "um conjunto de sentidos sobre processos de sociabilidade, nos quais
os actos alimentares ganham uma posição de destaque " (p. 98). É, aliás,
no corpo enquanto locus de afecções que se desencadeiam certos aspectos de
diferenciação entre os índios-caboclos e a restante população vizinha,
demarcando "um certo tipo de pessoa [ ] próximo ao que Viveiros de Castro
identifica ser central a alguns contextos ameríndios" (p. 99). Para Susana
de Matos Viegas, "pertencer a uma casa não diz respeito a uma ordem de
relação entre pessoas e coisas, mediada pelo direito de umas sobre as outras.
Significa, sim, que a casa é aqui melhor descrita por meio de conceitos como o
de `unidade social primária' [proposto por Pina Cabral] em alternativa ao
`grupo doméstico' [ ] por fugir à conceptualização da ligação entre pessoas e
casas pela relação entre sujeito e objecto, mediada pela posse alienável"
(p. 99).
Estabelecendo uma diferenciação entre os significados do parentesco para os
tupinambá de Olivença e para as populações dos contextos social ou
regionalmente próximos, a autora defende que o que está em causa nas práticas
de parentesco dos tupinambá permite escapar à presunção de que uma abordagem do
parentesco nos obriga necessariamente a pensar em termos de equilíbrios entre
aspectos ditos "biológicos" e aspectos ditos "construídos",
crítica que partilha com Carsten (Cultures of Relatedness: New Approaches to
the Study of Kinship,Cambridge, Cambridge University Press, 2000). Para Viegas,
uma das consequências importantes de um modo de produção do parentesco assente
na prática de "agradar", como é o caso dos tupinambá de Olivença,
"é a sua ligação a uma temporalidade marcada pela persistência da vida
diária, rejeitando-se que a vida social se faça de modo epifenomenal" (p.
138). Esta é, aliás, uma das linhas de força do argumento, sustentada por
riquíssimas vinhetas etnográficas, como, a mero título de exemplo, a das pp.
128-129, que demonstra como para uma dada pessoa a sua mãe é quem
conjunturalmente cumpre as funções de sustento, alimentação e cuidado, para lá
da normatividade.
Uma das preocupações centrais presentes nesta obra é a busca daquilo "que
estrutura a vida social quando, à luz dos modelos convencionais juralistas,
lidamos com uma propensão específica para a informalidade" (p. 175). Neste
estudo, teoria e etnografia conjugam-se de forma feliz na capacidade de
oferecer um entendimento alternativo da vida social. A informalidade local
aplica-se, por exemplo, também ao casamento, o qual não só não se celebra nem
ritualiza, como não existem quaisquer tipos de prestações entre as famílias do
noivo e da noiva. A união conjugal é tida inicialmente como experimental,
apesar de a informalidade não poder ser confundida nem com uma concepção
liberal das uniões matrimoniais nem com a carência de disposições
estruturantes. Na realidade, não se trata de dar conta da ausência de forças
estruturantes da vida social, mas sim de apresentar a necessidade de uma
abordagem que, mantendo um ponto de vista sócio-estrutural, "se liberte,
no entanto, das suas âncoras sistémicas" (p. 177), num exercício a que eu
chamaria de transmutação teórica, isto é, de inovação sem deitar fora o
proverbial bebé com a água do banho. Daí decorre a necessidade explicitada de
procurar "`disposições estruturantes' da vida social sem que, no entanto,
as encerremos em lógicas de convergência ou divergência" (p. 177). Essas
disposições são-nos apresentadas e sistematicamente demonstradas com rigor
etnográfico: o facto de o núcleo reprodutivo mínimo corresponder à relação mãe/
casa; a importância do lugar como unidade social primária; a tendência agnática
que, no entanto, não impede uma relação entre géneros mais igualitária do que
nas outras populações da região; o "ideal de viver junto num lugar"
(p. 179), em contraposição com a tendência agnática; e a valorização dos
atributos da feminilidade hegemónica, em especial o da transitividade feminina.
Aprofundando a ideia de que não devemos procurar um "tipo de pessoa",
Susana Matos Viegas demonstra como a teoria local se manifesta "em
comportamentos de inconformismo, na sensação do quanto a existência pode ser
falível, e na alternância entre estar ébrio e alegre ou sóbrio e cismado [ ]
Essa ideia de pessoa complementa a de temporalidade reversível, [presente] na
produção do parentesco. O parentesco é a marca de que a vida fixa muito pouco,
se não for continuamente repetida e reiterada na rotina diária, por meio de
laços intersubjectivos" (p. 203, na linha de Viveiros de Castro, que
distinguiu entre uma teoria do "ente" e uma teoria de um "entre-
dois"). É também por isso que, para Viegas, o conceito de etnicidade é
insuficiente para falar sobre os processos de construção da identidade local:
"Em vez da referência a origens comuns ou autoclassificações de
descendência, entre os tupinambá, além dos aspectos ligados ao género e ao
parentesco (no sentido da reiteração quotidiana do afecto e sustento) e ao que
normalmente se chama a organização social (reforçando a importância da casa e
do lugar), são também os modos de estar e de falar que marcam processos de
identificação" (p. 203).
Em consonância, as pessoas de diferentes lugares entrelaçam-se por meio de
casamentos preferenciais, mas não existe sentimento de união entre tupinambás
de localidades dispersas, "excepto no caso de se fundarem em laços
interpessoais" (p. 229). Isto não se explica "nem por sentimentos de
enraizamento num espaço territorial, nem pela invocação de uma origem nativa
(ou indígena), como seria o caso se o que estivesse em questão fosse a
constituição de um `grupo étnico', mas pelo estreitamento continuado de
relações fundadas em laços interpessoais" (p. 230). Insatisfeita com a
interpretação clássica de Pierre Clastres sobre a aversão à autoridade ou ao
uno, ou com a de Peter Rivière sobre o carácter atomístico das sociedades
indígenas da América do Sul, Viegas subscreve Viveiros de Castro (Arawete: Os
Deuses Canibais, Rio de Janeiro, Jorge Zahar/ANPOCS, 1986), para quem "a
dispersão diferir/dispersar ganha um sentido denso na sua articulação com
formas de ver o poder, o qual deixará de ser pensado como uma `aversão ao uno'
para ser visto como o cerne de um sentido de viver socialmente sem viver
colectivamente" (p. 231). Não se trata de colocar o indivíduo no centro da
vida social em detrimento do colectivo, porque o que está em causa é
precisamente a anulação de ambos: "um mundo `individualista' sem
indivíduo, e uma vontade colectiva sem sociedade" (p. 232), nas palavras
de Viveiros de Castro (1986).
Terra Calada é apresentada como expressão-síntese da história da vivência do
espaço e das estéticas de acção dos tupinambá, descritas em riquíssimas
análises das práticas quotidianas do parentesco, do género, da sociabilidade,
do espaço: "os sentidos da terra partem da tranquilidade como aspiração e
ideal de socialidade [ ] a capacidade de criar compatibilidades, as quais
expressam melhor uma história feita `pelas caladas' do que na guerra e na
rebelião" (p. 271). É por isto que a autora repensa a ideia feita sobre a
questão indígena como uma questão de luta entre povos indígenas e Estado-nação.
O espaço, para os tupinambá, está mais de acordo com uma noção fenomenológica,
"no sentido de que `estar-no-espaço' (place) tem um estatuto epistémico
antecedente ao de espaço enquanto extensão [...] Os dois sentidos de espaço
(place e space) foram-se transformando, sobrepondo e ressignificando, de tal
forma que, para os tupinambá de Olivença, o espaço é hoje também terra, no
sentido material " (p. 272). É por esta razão que eles reivindicam hoje
uma terra indígena.
Terra Calada será, sem dúvida, um marco na antropologia dos povos indígenas do
Brasil e muito particularmente das configurações identitárias aparentemente
ambíguas que surgem nas zonas, como o Nordeste, menos "tradicionais"
do que a referência amazónica.
Miguel Vale de Almeida
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa