Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música
Max Weber,Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música, São Paulo, Edusp
Editora da Universidade de São Paulo, 1995, 168 páginas.
Entre os fundadores da sociologia, foi Max Weber (1864-1920) quem estudou e
escreveu de modo mais sistemático e aprofundado sobre a arte, como mostra o seu
trabalho dedicado à música moderna ocidental, Os Fundamentos Racionais e
Sociológicos da Música. Neste texto menos difundido de Weber, o estudo da
esfera artística e da música, em particular, constitui outra via de conjugar o
tema de fundo das obras weberianas: o processo de racionalização, tendo por
referência a especificidade das suas diversas manifestações no mundo ocidental
moderno. Escrita por volta de 1911, a obra manteve-se, durante décadas,
secundarizada no lugar de apêndice do livro Economia e Sociedade, de 1922.
Traduzida nos EUA no final dos anos 50 do século xx, é actualmente considerada
a peça fundadora da sociologia da música.
Na sua análise da esfera artística e da música, em especial, enquanto
manifestação da racionalização cultural, Weber concentrou-se na arte, dando
ênfase aos meios técnicos e ao modo como a racionalização os atingiu e
influenciou desenvolvimentos aos níveis da criação e da recepção, passando pela
difusão. Com esta abordagem abre-se e desenvolve-se, de forma rasgada, a visão
de que a arte tendo, como todas as diversas esferas têm, linhas de acção
próprias se relaciona, em ligações de menor ou maior tensão, com outras
dimensões da vida social.
Através da aproximação a outros textos do autor, torna-se mais claro o lugar do
seu estudo sobre a música moderna, bem como se obtém uma visão mais ampla do
seu pensamento sobre a racionalização e a arte (no texto de Weber, a expressão
"música moderna" designa a música do Ocidente desde, aproximadamente,
1700). Como aponta Leopoldo Waizbort na excelente introdução à obra trata-se
da única tradução disponível em língua portuguesa , afigura-se pertinente
convocar especialmente dois textos de Weber: "Consideração
intermediária"(Zwischenbetrachtung), de 1915, e "Introdução"
(Vormerberkung), uma das últimas peças produzidas pelo autor. Se a
"Consideração intermediária" tem a virtualidade de destacar a
autonomização da arte, bem como a de outras dimensões, em consequência do
processo de racionalização, o interesse da "Introdução" reside no
facto de aí se sistematizar de modo particularmente desenvolvido a problemática
que mais atravessa os estudos weberianos, ou seja, a compreensão dos factores
que explicam por que motivos apenas no Ocidente determinadas formas da
ciência à economia, passando pelo direito e pela arte são praticadas de modo
racional e sistemático.
Na primeira parte de Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música é focada
a racionalização dos materiais sonoros. Uma linha condutora liga o que
representa para Weber a circunstância inicial decisiva para o processo de
racionalização a divisão aritmética da oitava e a consequente criação dos
intervalos até à formulação do que entende ser o facto fundamental da
racionalização do material musical sonoro: o temperamento. Neste percurso é
largamente usado o método comparativista característico da sociologia
weberiana, apreciando-se em paralelo sistemas sonoros do Ocidente e do Oriente
com a finalidade de salientar diferenças e fundamentar a música racionalizada
harmonicamente (a ocidental), em contraposição com a música racionalizada de
forma não harmónica, que privilegia a melodia (a oriental).
A exposição ao longo da qual Weber introduz outras marcas e problemas
característicos da música moderna ocidental evolui de modo muito imbricado.
Repare-se: da divisão da oitava decorre a formação de intervalos e de escalas;
o diatonismo e o cromatismo encontram-se no centro da formação das escalas; das
escalas dependem, por sua vez, os procedimentos vocais, que influenciaram as
formas composicionais; a própria notação musical foi influenciada pelos
sistemas de composição.
No que se refere especificamente à notação, Weber assinala a sua extrema
importância na racionalização da música quando defende que apenas a
"elevação da música polivocal à condição de uma arte escrita produziu
então verdadeiros `compositores' e assegurou às condições polifónicas do
Ocidente, em oposição às de outros povos, duração, repercussão e
desenvolvimento continuado" (Weber, p. 119). A invenção da moderna notação
musical em que assenta a especificidade do desenvolvimento da música
ocidental e a fixação da obra na partitura possibilitaram também, no entender
de outros estudiosos, uma profunda alteração qualitativa nos procedimentos da
música ocidental.
Ao permitir a transmissão e reprodução das obras de arte musical moderna, a
notação reforçou as propriedades dos criadores e a sua especialização. Se, por
um lado, apenas a elevação da música polivocal a arte escrita produziu
"verdadeiros compositores" e garantiu às criações ocidentais
repercussão e desenvolvimento continuado , por outro lado, a substituição das
"velhas fórmulas sonoras típicas" por sistemas escritos atribuiu
maior destaque à figura do artista profissional educado para a interpretação
virtuosa.
Um dos principais traços distintivos da racionalização do material sonoro no
Ocidente reside, segundo Weber, no seu carácter intramusical, a partir do
interior do sistema sonoro, o que significa `temperamento' e aqui desemboca a
linha condutora desfiada a partir da questão da divisão da oitava, com que
Weber inicia a discussão da racionalização da música ocidental. Na perspectiva
weberiana, o temperamento orientado harmonicamente representa a grande
realização do racionalismo ocidental na esfera musical, em claro contraste com
a racionalização extramusical do sistema sonoro oriental.
Na segunda parte de Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música,Weber
centra a análise no desenvolvimento de alguns dos modernos instrumentos
musicais: violino, órgão, piano. Trata-se agora de salientar o processo de
racionalização na construção dos instrumentos e averiguar os seus efeitos na
música em vários planos (criação, difusão, recepção).
Na abordagem do órgão o instrumento que mais se aproxima da máquina, pela
maior intensidade da ligação entre quem o utiliza e as possibilidades
objectivas que a técnica proporciona em termos de configuração do som , Weber
destaca o papel central do monacato no desenvolvimento da moderna música
ocidental. Com efeito, sendo o órgão um instrumento privativo das catedrais e
dos mosteiros, apenas nestes contextos encontrou condições para evoluir e
contribuir para o desenvolvimento dos materiais sonoros, isto por duas vias
distintas. Uma de natureza mais material pois os construtores de órgãos e
organistas eram inicialmente monges ou técnicos de conventos, ensinados pelos
primeiros. Outra de carácter mais imaterial eram aqueles agentes que
coordenavam procedimentos como a afinação do órgão e da afinação em geral,
"pois no órgão pode-se de fato observar de modo especialmente fácil os
batimentos na afinação impura" (p. 143). O autor considera ainda que o
período de maior aperfeiçoamento técnico do órgão foi simultâneo de uma época
de grandes inovações na polivocalidade, participando o instrumento
significativamente na racionalização do canto polivocal.
Outra é a história do piano, cuja "actual posição imperturbável", que
Weber lhe atribui, assenta nos seguintes aspectos: utilização universal para a
apropriação doméstica da maior parte do acervo da literatura musical;
abundância da literatura que lhe é dedicada; primazia enquanto instrumento de
acompanhamento e de formação escolar; adequação a peça mobiliária da cultura
burguesa.
Tendo raízes em instrumentos distintos o clavicórdio e o clavecin, ou cembalo
, o piano e a sua música emanciparam-se da estilística do órgão devido, em
primeiro lugar, à influência da dança na música instrumental francesa (p. 146).
O "virtuosismo pianístico incipiente", no século xvii e princípios do
século xviii, aliado ao nascimento de uma grande indústria do cembalo,
representou as "últimas grandes transformações técnicas do instrumento e
da sua padronização" (p. 147).
A relação entre culturas e diferentes apropriações do piano é um tópico que
Weber também aborda. Assim, embora o desenvolvimento do moderno pianoforte
(Hammerklavier) tenha tido lugar nos territórios italiano e alemão, o
aproveitamento desta descoberta conheceu diversa intensidade num e noutro país.
Com efeito, a cultura italiana permanecia distante do "carácter
camerístico" da cultura musical do Norte, devendo-se esta limitação, no
olhar de Weber, à ausência em terras italianas do culto do conforto doméstico
burguês, por motivos climáticos e históricos. Foi, pois, a Saxónia que se
tornou o centro da produção e do desenvolvimento técnico posterior do piano.
O triunfo do Hammerklavier radicou, segundo Weber, na crescente necessidade de
editores musicais e empresários de concertos e no acentuado consumo musical, de
acordo com uma lógica de mercado. A produção do instrumento proliferou primeiro
em Inglaterra (com a marca Broadwood na segunda metade do século xviii) e
estendeu-se depois à América, sendo que no início do século xix o piano era um
objecto de comércio regular. Para o aperfeiçoamento técnico do instrumento
contribuíram vários factores, como a muito forte concorrência entre fabricantes
e a criação de exposições e salas de concerto específicas na proximidade das
fábricas de instrumentos.
No estudo de Weber sobre a música moderna ocidental assume especial importância
a ideia de que a racionalização na arte incide nos meios artísticos: materiais
sonoros, instrumentos, formas de composição. O modo como se desenvolvem os
meios musicais tem múltiplos efeitos: a invenção da notação, por exemplo, foi a
condição da objectivação da obra e da atribuição de um maior relevo aos
criadores é pela partitura e por um suporte impresso que é possível preservar
e transmitir a obra, bem como pode ser melhor aferido um desempenho; as
mutações nos meios técnicos concorrem para a afirmação e especialização de
perfis artísticos; os factores culturais influem no favorecimento (ou não) da
cultura musical; as lógicas de mercado e os factores económicos condicionam a
configuração e circulação dos instrumentos. Desenha-se, assim, uma história
social da música e da arte que relaciona meios técnicos, agentes, mercado. E é
pelo acento na importância dos meios técnicos para o desenvolvimento da arte
que a visão weberiana vem demonstrar a relação muito directa que existe entre o
sentido da expressão artística e as condições da sua produção.
Teresa Duarte Martinho
Observatório das Actividades Culturais (OAC)