Um pacto às escuras: da autorrepresentação em Alanis Morissette
Ninguém muda de pele com a facilidade das cobras
Eugénio de Andrade
We are temporary arrangements
Alanis Morissette
O presente estudo queda-se na interpretação (diga-se ‘literária’, se
insistirmos num perímetro convincentemente diferencial entre essa designação
terminológica e a de ‘intersemiótica’ ou ‘intermedial’, mais atinentes com os
tempos que correm) de duas letras de Alanis Morissette, cantora e compositora
de origens canadianas, às quais, segundo a própria[1], se foi acrescentando
muito do que se entranha e dissolve na miríade de designações (abstratas)
daquilo que possamos denominar por eu: termos ambíguos e temerosos como
identidade, caráter, sujeito, pessoa ou personalidade, com um espectro
semântico que respira, entre todos, um plausível “ar de família”. Não tivesse a
artista musical nascido no ano de 1974, trilhando uma carreira que se estende
até aos dias de hoje, talvez a leitura das suas letras musicais fosse
facilmente catalogável usando os estilemas que, por norma (sublinhe-se: norma
convencional), classificam um autor à luz de figuras e topoï que confluem para
um isomorfismo quase translúcido, denunciador de um conjunto de tratos que
inscrevem, por exemplo, o sujeito num certo tipo de identidade cultural, num
dado período de transição, com nervuras ou acalmias psicológicas que
subjetivizam questões de amplitude política. Em resumo, ler a obra é ler-lhe os
quadrantes, é contextualizar o sujeito e compreendê-lo num regime in locoe não
ex nihilo: o microcosmo do eu singularizando inquietações macrocósmicas.
De facto, a escrita musical de Alanis Morissette, nascida sob etiquetas
periodológicas facilmente descoláveis, porque inconsistentes, como as que o
‘pós-modernismo’, ‘pós-modernidade’ ou ‘hiper-modernidade’ designam, tanto se
ins-creve como se ex-creve enquanto escrita, que é ex-crita, nessas cronotopias
pouco fiáveis, se se tomar em consideração que o eu descrito nas suas canções
dificilmente se filia a linhas de leitura preestabelecidas que facilitam a
decifração de uma “mensagem” (uniforme) de uma artista que apresenta o seu
trabalho, muito simplisticamente, como matéria autobiográfica. Se, enquanto
subgénero mais ou menos coeso e definido dentro do sistema semiótico literário
(esqueçamos, por agora, que Alanis canta o que escreve), a autobiografia
acontece hoje sob a alçada teórica e filosófica do sujeito cartesiano
descentrado, seja pelo contributo de Derrida, seja, muito antes, pelo impulso,
até então inclassificado, do inconsciente freudiano, seja ainda pelo
protagonismo usurpador da linguagem que nos substitui, à luz de Lacan, como
imago, ludíbrio ou clivagem entre o moi e o je –, então, o que dizer do
pressuposto de que o sujeito descrito por Morissette nas suas lyrics é o mesmo
sujeito que ela pensa ou diz ser? Por outras palavras, depois de Marx,
Nietzsche e Freud (e apenas para citar três nomes ditos incontornáveis pelas
indecisões e querelas psicopolíticas do Ocidente), como encher as brechas
deixadas no eu clássico kantiano, que se torna descoincidente consigo mesmo?
Tapar buracos, coser pontos, engessar fraturas – como e com o quê? À parte o
serem prosaísmos e metáforas, estes três gestos ortopédicos confirmam somente a
natureza interminável do seu designatum e denotatum – o eu –, enquanto
irradiarem da ansiedade gnómica do sujeito, confrontado com a ruína da equação
iluminista “homem = animal racional”.
O bios da raiz etimológica de ‘autobiografia’ situa-se entre duas margens
intervenientes no processo de viver: o eu, de um lado, e a escrita, do outro.
Todos os preliminares impulsionadores da noção de descentramento deram azo a
que se autonomizasse a escrita, o grafo na diegese do eu pelo eu, atribuindo-
lhe propriedades genesíacas (quiçá intuitivas, diria Bergson) que surpreendem o
criador, supostamente atento a todo o processo.[2] Por sua vez, como reza a
doxa, se é verdade que Deus escreve direito por linhas tortas, será mentira
afirmar que o mesmo Deus morreu depois de Nietzsche ter escrito sobre Ele, ou
seja, não apenas uma escrita d’Ele, mas sobre Ele, por cima d’Ele?
Do cadáver de Deus ainda se faz um luto penitencial (que é existencial), e a
linguagem artística, no seu caráter multiforme de modelizar o mundo, parece
estar ao serviço de restituir ao homem alguma da fé que este havia depositado,
e depois sentido extinguir-se, na antiga transcendência ou metafísica,
servindo-se dela para sublimar o presente sem a almofada do passado (mítico,
histórico…).[3] Parte dessa fé, tanto quanto é legítimo afirmá-lo, reabilita o
sujeito nos múltiplos espelhos onde ainda consegue ver refletida a sua imagem,
apesar de todas as nódoas e névoas que os possam recobrir (recorde-se que a
psicose do sujeito (cf. Lacan, 1966: 89-97) devém a única verdade possível
desde o seu nascimento, sendo precipitado no mundo como um corpo que já vem
precocemente fragmentado, tateando a unidade de si numa sombra imaginária, ou
seja, no seu reflexo no espelho).
Deste modo, e face à condição teológica tragicamente órfã e desamparada do
sujeito, a escrita autobiográfica ressuscita a figura do autor (continuamos,
portanto, no plano da imagem), que Barthes celebremente matara num contexto
associado à premência autotélica do texto sobre as leituras de cariz
biografista. O autorretrato, pictórico ou literário, restitui-lhe uma certa
“euidade” de si, re(in)veste o eu retratado de uma aura subjetiva (sem que isso
recubra démarches de furor expressionista), alheia aos regimes legitimadores
que conferem à arte o seu poder “museológico”, depois da segurança simbólica
bebida das grandes meta-narrativas, segundo Lyotard, se ter simplesmente
esvanecido na sua inoperância ontológica, encolhendo o que na ideologia parecia
grande. Quando já nada extrínseco parece conseguir defini-lo, o sujeito procura
autodefinir-se com o que sabe – mas também com o que desconhece, com a
insolência pregnante de uma ignorância insuperável que, para citar duas
metáforas antunianas, apenas permite ao leitor de (auto)biografias ficar “a par
de uma casca, porque o acesso ao miolo é impossível e o conhecimento da
intimidade nos está vedado” (Antunes, 2012: 12). Das duas vias – a da gnose e a
da ignorância –, talvez a segunda tenha sido a mais profícua: um furar contínuo
dessa casca desafiante.
Supposed Former Infatuation Junkie, editado em 1998, figura hoje como um álbum
musical sui generis, seja pelo seu sincretismo a nível dos registos pop, rock e
indie, seja dentro da própria consistência técnico-compositiva e conceptual
morissetteana, que com este lançamento discográfico não só comprometeu todo o
histerismo mediático à volta de Jagged Little Pill, mas também consignou a sua
assinatura pessoal enquanto artista “estranha” ao meio (tanto musical como
político) que anos antes a acolhera, ensimesmada no que realmente deseja
exprimir e desinteressada de todos os satélites (comerciais) extrínsecos a esse
imperativo primordial, o escrever(-se).[4] Nesse sentido, o booklet do segundo
álbum surpreende e intimida o expectável ouvinte de música, sobretudo porque,
visualmente, muitas das lyrics se apresentam como longas manchas grafémicas,
com refrões alternativos no corpo da mesma canção, alguns dificilmente
memorizáveis (quando não é o caso de nem existirem de todo), sujeitando o
ouvinte a esforços de concentração sobre a natureza lisível e reflexiva da
música, antes de se quedar numa simples audibilidade diletante que, por norma,
facilita a receção de um texto emergente da ora vexada ora indemne pop culture
(não fosse o epíteto ‘música comercial’ lido pela crítica mais conservadora, de
Theodor W. Adorno a Roger Scruton, como algo de nefastamente demolidor, porque
desgastado, acrítico e, pior, atraente e hipnotizante).[5]
À parte aquilo que possa estreitar os mais sensatos vaivéns de correspondências
entre a escrita morissetteana e outros discursos (literário, filosófico,
intermedial), o limbo dos “estudos literários” ou dos “estudos culturais”, com
uma brecha por onde as designadas “poéticas do rock” possam respirar,
permanecerá límbico: até que ponto será ou não justo considerar como falsa
modéstia o facto de a instituição literária, enquanto linguagem normativa por
excelência, celebrar a ruína e a famigerada decadência dos seus cultos, como o
cânone de moldes bloomianos, promovendo colóquios, seminários e mesas redondas
sobre uma morte que, pelo menos na prática, permanece bem viva sob outros meios
de materialização e reprodução do literário? Américo Lindeza Diogo concretiza:
“Serão as bazófias da juventude o heavy metal dos Faetontes de sempre? Será que
a Vénus com suas ‘lácteas tetas’ e ‘roxos lírios’ shoot to thrill?” (Diogo,
2002/2005: 14).
Enredando-se nos trâmites topológicos da autobiografia, cedo se depreende que a
escrita morissetteana não gravita em torno de um sujeito estável, mas de um eu
que se vê ao espelho e se apercebe de que também é visto, em sentido merleau-
pontiano, ergo construído também pela alteridade, por uma inevitável
reversibilidade do percurso fenomenológico da visão, em particular, e do corpo
em toda a sua intensa, profusa e profunda estesiologia, em geral, corpo que se
impõe figural e figurativamente numa hermenêutica das lyrics, pelo facto de o
emissor dar rosto, voz e carne ao seu texto. Trata-se, portanto, de um ato
performativo, se tomarmos a linguagem em contexto pragmático, como o que, neste
estudo, serve de princípio estruturante. O apagamento do sujeito, se de facto
acontece, é apenas metafórico, porque nunca deixa de ser/estar encorpado, sob a
espessura da casca antuniana, desunhando aquele que diz eu. Por sua vez, se
tomarmos em conta a interferência dos desígnios autobiográficos, mais
irrepreensível se torna a afirmação barthesiana, segundo a qual “quanto mais
‘sincero’ sou, mais me torno interpretável” (Barthes, 2009: 148).
No sofá: um estágio ao espelho
A letra de The Couch, sétima faixa do álbum, constrói-se num jogo entre
ambiguidades interpretativas e ambiguidades emocionais, ainda que o sentido
conotativo das palavras seja quase embaraçosamente banal ou antipoético (à
parte os critérios – se existentes e/ou válidos – que possam ajuizar o que
eleva a poesia a ser poesia). É típico em Morissette servir-se das
marginalidades da vida como matéria criativa, um anelo ostensivo sobre o que
possa parecer espontâneo e óbvio, salvo o pleonasmo ou a redundância: quando
tudo é demasiado transparente e hiper-informacional (cf. Baudrillard,
Lipovetsky, Steiner, entre outros), como dar algum repouso ao olhar, que tudo
vê e em nada repara, como um “olho sem pálpebra”? Fechar os olhos – não só em
sentido figurado, mas também em sentido literal (relembre-se: as lyrics
envolvem o corpo, a performance), – pode proporcionar uma clarividência
acrescida. A propósito, Mario Perniola parte da polissemia do verbo sentire, na
língua italiana, que é a sua, para assinalar como ao mesmo é afeta tanto uma
perceção sensível do mundo, como o significado mais específico de ‘ouvir’ ou
‘escutar’: “[o] acusma, aquilo que se ouve, é mais fluido e circulante do que o
theasma, aquilo que se vê” (Perniola, 1992: 46). No caso de The Couch, a voz
recobre-se de um estatuto especial, que o mero facto de se tratar de música, e
por isso cantável, não deve de todo esquivar-se à interpretação: num plano
pragmático da análise discursiva, a voz do eu, escapando ao seu controlo pelo
fluxo “direto” que imprime, colige a possibilidade de pluralizar o sujeito e de
autorrepresentá-lo sob a carne experiencial do outro, com profundas implicações
éticas mútuas: mais especificamente, falamos de um pai e de uma filha, mediados
por um psicólogo (ou psicanalista) e, em menor grau de influência, pela
presença da mãe, abafada pela díade referida logo após as duas primeiras
estâncias (o espectro edipiano do desejo incestuoso é hermeneuticamente
tentador).
Coincidências ou arrojos intertextuais à parte, The Couch assemelha-se ao que
acontece em alguns dos ‘metadiálogos’ de Gregory Bateson, nos quais também pai
e filha escrutinam o metabolismo do processo dialógico: são conversas de
domínio filosófico, cuja veemência proposicional permite que se extrapole o
cerne temático para incidir na estrutura da própria conversa, que se revela
igualmente essencial para o desenvolvimento do assunto (cf. Bateson, 1989: 7).
Esta articulação batesoniana forma/conteúdo serve, assim, de pressuposto
teórico para a leitura de Morissette.
The Couch
you hadn’t seen your father in such a long time
he died in the arms of his lover how dare he
your mother never left the house
she never married anyone else you took it upon yourself to console her
you reminded her so much of your father
so you were banished and you wonder why you’re so hypersensitive
and why you can’t trust anyone but us
but then how can I begin to forgive her so many years under bridges with dirty
water
she was foolish and selfish and cowardly if you ask me
I don’t know where to begin in all of my 50 odd years
I have been silently suffering and adapting perpetuating and enduring
who are you younger generation to tell me that I have unresolved problems
not many examples of fruits of this type of excruciating labour
how can you just throw words around like grieve and heal and mourn
I feel fine we may not have been born as awake as you were
it was much harder in those days we had paper routes uphill both ways
we went from school to a job to a wife to instant parenthood
I walked into his office I felt so self-conscious on the couch
he was sitting down across from me he was writing down his hypothesis I don’t
know
I’ve got a loving supportive wife who doesn’t know how involved she should get
you say his interjecting was him just calling me on my shit?
just the other day my sweet daughter I was driving past 203 I walked up the
stairs
[in my mind’s eye
I remember how they would creak loudly
she was only responsive with a drink he was only responsive by photo
I was only trying to be the best big brother I could
I’ve walked sometimes confused sometimes ready to crack open wide
sometimes indignant sometimes raw
can you imagine I pay him 75 dollars an hour sometimes
it feels like highway robbery
and sometimes it’s peanuts
I wish it could last a couple more hours
so here we both are battling similar demons (not coincidentally)
you see in getting beyond knowing it solely intellectually you’re not
relinquishing
[your majestry
you are wise you are warm you are courageous you are big
and I love you more now than I ever have in my whole life
Na óbvia narratividade que atravessa este tema, a personagem inicial apresenta
a situação-problema e os seus intervenientes: o drama familiar centrado na
figura de um pai ausente na vida da filha, primeiro, porque ele refizera a vida
com outra pessoa (he died in the arms of his lover), segundo, porque aquela
fora negligente com ele (you hadn’t seen your father in such a long time: há um
quid incriminatório neste ato de fala, pois, parafraseando nomes incontroversos
da pragmática, aquilo que se diz ultrapassa o que, na iminência, parece ser
dito). Há ainda a figura da mãe, resiliente e submissa à condição falocêntrica
do regime patriarcal: nunca abandonou a casa, nem voltou a casar. Numa vertente
psicanalítica, que é sempre arriscada, a progressão do texto dará conta de que
a morte do pai aqui encenada mais não é do que uma figuração fantasmática, um
subterfúgio (defensivo) erguido pela filha para impedir que o episódio
traumático por excelência – a perda do pai – se renove: afinal, parece justa a
alegação de que a mera existência do pai age por si só como um crime de
repercussões atávicas, dado que, por reminiscência, a filha convoca à mãe a
imagem paterna, padecendo, por isso, com o ostracismo (so you were banished) e
um impasse nascido da incompreensão (you wonder why you’re so hypersensitive/
and why you can’t trust anyone but us).
Se houver um motivo na letra que seja de algum modo medular e transversal ao
desassossego psicológico dos vários eus, talvez ele se quede no poder
intimidante da gramática genética dos homens. Como assinala Mario Perniola, a
propósito da sensologia, ou aisthesis, que recobre o mundo social e a imagem
especular que os sujeitos partilham entre si, “[o] que está por sentir pode ser
sentido ou não; mas o já sentido só pode ser recalcado […]” (Perniola, 1993:
12). Não é por acaso que o título da música joga com o léxico da psicanálise: o
sofá ou o divã freudiano são os espaços emblemáticos onde o inconsciente fala,
o qual, num estribilho por demais familiar, está estruturado como uma
linguagem. Falar é, assim, o primeiro passo para desertar o desconforto que a
comunicabilidade – o material da comunicação – tende a infligir, separando os
eus, precisamente, pela parte que os une. O corte nos laços, quer afetivos quer
comunicacionais, revela-se depois na inibição ou na autocensura, que, por sua
vez, se reflete em expressões que desvendam as inconveniências do discurso
aberto (a mãe: under brigdes with dirty water)[6] ou o autoflagelo estóico e
ruminante que permeia os intervalos da maturação individual (o pai: I have been
silently suffering and adapting perpetuating and enduring).
No que toca à filha, o seu silêncio interventivo reveste-a de uma natureza algo
flutuante, porque nunca chega a ganhar corpo explícito na letra, salvo os
dúbios enredamentos emocionais das duas últimas estrofes, cuja enunciação tanto
pode partir do pai, como da filha (ainda que a hipótese do primeiro prevaleça
sobre a segunda); é essa, aliás, a melhor estratégia narrativa para (con)fundir
os sujeitos, reconciliando-os no facto de terem em comum uma divergência, seja
externa (pai/filha) seja interna (as desavenças interiores). O seguinte verso,
paradigmático na sua intenção puramente metatextual, decalca e corrobora a
osmose dilemática dos eus pelo uso do pronome de primeira pessoa do plural, por
um lado, e pelo dilema como clave de leitura, por outro: so here we both are
battling similar demons (not coincidentally). O marcador conclusivo – so – é
igualmente inaugural da ressonância afetiva (não apenas biológica ou
hereditária), fazendo do amor (love) a última grande meta-narrativa, aquela que
sobrevive ao desgaste do sentido.[7] Mesmo a nível entoacional[8], Morissette
tende a diminuir o volume e a arrastar a voz nos versos finais, jogando com a
entropia que é causa/efeito de um verso dito em constante atropelo vocal (as
barras oblíquas marcam as pausas): you see in getting / beyond knowing it
solely / intellectually you’re not / relinquishing your majestry. Pelo
contrário, as unidades verbais que constituem os dois últimos versos fluem com
maior clareza enunciativa, pondo a nu a intenção textual de abrir espaço à
reconciliação, algo que, no foro dos atos perlocutórios, ecoa o sentido de
“espiritualização do discurso pela escrita” (Ricœur, 2005: 50). Arrisca-se a
leitura de que se visa transpor um sentido extrínseco às combinatórias formais
de tempos (se acatarmos uma linha de pensamento stravinksiana, que dirime a
hipótese de haver sentido ou emoção na música) para dentro da própria música:
depois da tempestade (emocional), eis que chega o prenúncio de bonança – que se
sente (texto-corpo) e, por isso, se canta (música-corpo). Realizações
diferentes do discurso, portanto, são atinentes à natureza das lyrics: discurso
oral e discurso escrito, à parte as demarcações que os afetam singularmente,
têm em comum o facto de serem isso – discurso (cf. idem, 38-39), radicalmente
vivo porque ao vivo, porque é agente da (e agido pela) força de enunciação. Por
outras palavras, porque é um événement[9]e não uma mera sombra da idealidade,
convertendo-se uma significação objetiva, ou utterance’s meaning, numa
significação subjetiva, ou utterer’s meaning (Paul Grice apud idem, 58).
Porque se trata de lyrics, pensar na expropriação da palavra à música que a
anima parece incongruente, e é-o de facto. Porém, uma leitura centrada apenas
no texto desvelaria que muito do que está escrito não parece o mesmo quando é
cantado. Isto, porque a performance de The Couch – e, neste ponto, é
indiferente tratar-se do registo em estúdio ou de um registo ao vivo –
constrói-se com base numa série de desconexões entre os elementos métricos e os
elementos sintáticos, entre o ritmo sonoro e o desvelamento semântico,
semelhantes aos encavalgamentos que, no discurso poético, fraturam a unidade
entre som e sentido, e servem de tributo, implícito ou não, à transgressão da
identidade poética, “esboçando”, como diz Agamben, “uma figura de prosa”
(Agamben, 1999: 32). Há, de facto, pausas na articulação frásica que ficam
momentaneamente suspensas; núcleos nominais que hesitam a ligação aos
respetivos núcleos do predicado verbal; eixos de sentido desconexos, aliados à
ausência de pontuação gráfica, que se atropelam no misto de desafogo e
desconsolo que é expor uma torrente emocional que levou cinquenta anos a
levedar – e, insista-se, silenciosamente (primeiro e segundo versos, terceira
estância).
Para o efeito, concorrem algumas construções frásicas que mimetizam o discurso
oral e vivificam a palavra escrita com o seu quid de fisicalidade: por exemplo,
how dare he; if you ask me (no sentido de dar uma opinião não solicitada); how
can youjust (com o polissíndeto like grieveandhealandmourn); I don’t know
(posposto a he was writing down his hypothesis, reforçando a vanidade do
assunto em questão e acelerando a conversa para o seu âmago, que se tende
constantemente a adiar); a interrogação you say his interjecting was him just
calling me on my shit? (mais retórica do que inquisitiva, mas inequivocamente
expiatória); can you imagine (sentimento de indignação). A figura retórica da
paralipse parece parcelarmente ajustável, porquanto o eufinge não querer
desenvolver o que o atormenta, mas vai deixando escapar algumas iluminações que
confirmam a sua natureza umbrátil. Repare-se nos seguintes versos: just the
other day [o recuo cronológico afere que a dor não é de agora, mas vem de trás,
logo tocou-o profundamente] my sweet daughter [por um lado, a cumplicidade
inegável do afeto, que somente a prática parece ofuscar; por outro, replica um
dado sabido – já se sabe que ela é sua filha – como eco de uma culpabilidade
terrível no exercício (falhado) da sua função paterna: designá-la como daughter
é nomear, é encarnar o significante] I was driving past 203 [uma informação
geográfica despicienda, mas que aproxima os sujeitos na familiaridade
“enciclopédica” evocada por cenários mutuamente reconhecíveis; acentua o seu
drama, interior, na condição de nómada moderno, de sujeito sem repouso] I
walked up the stairs in my mind’s eye/ I remember how they would creak loudly
[imagem arquitetónica do seu delírio imaginativo: umas escadas que rangem, que
avisam da presença do eu, enquanto corpo que se faz notar pelo peso que exerce
no mundo – leitura que se clarifica encavalgando-se no verso seguinte] she was
only responsive with a drink [mãe, problema com o álcool] he was only
responsive by photo [pai, amnésia seletiva: precisa de ver para se recordar de
quem abandonou e, por conseguinte, da sua função paterna] I was only trying to
be the best big brother I could [questão que se coloca: tratar-se-á de uma
irrupção do discurso do psicólogo, descongelando a frieza deontológica e
sucumbindo a um certa inclinação paternalista, mas de manifesta impotência? O
superlativo – the best – é icário, como quase todos os excessos no choque entre
a linguagem e o real: uma ambição que voa alto e cai longe].
A penúltima estância corrobora a intervenção de um terceiro (o psicólogo), no
momento em que o pai se indigna contra o preço das consultas (can you imagine I
pay him 75 dollars an hour – note-se o implícito do discurso: como se não
bastasse sentir dor ou remorso, ainda teve a preocupação de procurar ajuda
terapêutica especializada; ele reconheceu que tinha um demónio a exorcizar).
Simultaneamente, esta ganga digressiva – sometimes/ it feels like highway
robbery and sometimes it’s peanuts/ I wish it could last a couple more hours –
condiz com o intuito obscurecedor do sujeito a que antes nos reportamos como
atinente à paralipse: por um lado, oculta a fragilidade que advém de um sujeito
dissociado de si (na quarta estância, a expressão “I feel fine” é uma clara
denegação freudiana: negar o ponto nevrálgico é camuflar um sim); por outro, e
em consonância com a premissa anterior, enche o discurso de entulho para
preterir o irremediável choque frontal entre pai e filha.
Sendo The Couch uma espécie de tudo-ou-nada confessional que se vai
gradativamente intensificando (note-se como a repetição adverbial adensa o
clímax da dissociação e alienação do sujeito: I’ve
walkedsometimesconfusedsometimesready to crack open wide/
sometimesindignantsometimesraw), a desculpabilização cínica do eu, além de tudo
o que aqui foi mencionado, passa pela tentativa de se encarnar no lugar e na
pele do outro, tentativa que, do ponto de vista liminarmente fenomenológico,
está condenada ao fracasso. À parte a inocência quase risível do detalhe, e sem
nos transviarmos pelo decalque biografista, importa relembrar que é a filha
quem tenta vozear a consciência do pai, cruzando-a com a sua consciência. Mais
do que “tolerar” o outro (equivalente a “diminuir”, no sentido, repugnante, com
que iek (cf. 2006) trata a “tolerância” pós-Locke na era do capitalismo
universal), o mérito do esforço passa por procurar compreendê-lo e partilhar o
que se sente; subscreve-se a nível ético, mediado pela figura ondulatória do
psicólogo que estimula a aproximação dos dois pelo que, entre eles, parece ser
suscetível de desnovelar liames reatáveis.
O contraponto paralelístico vem na própria sintaxe de The Couch, se retomarmos
a linha agambeniana sobre a métrica encavalgada: “O enjambement traz, assim, à
luz o andamento originário, nem poético, nem prosaico, mas, por assim dizer,
bustrofédico da poesia, o essencial hibridismo de todo o discurso humano”
(Agamben, 1999: 32). Hibridismo que, humanamente irredutível, rastreia o
insondável entre o pai e a filha, ou melhor, entre o pai e si mesmo (os seus
múltiplos eus: we went from school to a job to a wife to instant parenthood) e
entre a filha e si mesma, como espelhos compossíveis. Em linguística, isso
passa com recorrência pelo jogo entre pronomes pessoais, pondo a tónica
expressiva naquilo que “[…] la première personne avait tendance à fondre:
clivages, tensions, métamorphoses” (Lejeune, 1988: 86). De facto, a primeira
pessoa do singular estabelece para o leitor apenas uma posição relativa do
sujeito face ao texto, sem com isso lhe dar quaisquer garantias de objetivismo.
Assim, por muito que o discurso chegue a desnudar a subjetividade dos seus
diferentes locutores[10], diz Agamben que, “[…] conhecendo a incognoscibilidade
do outro, não conhecemos alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós” (idem,
26).
À espera: marinar um cancro
Se Kurt Cobain foi, tanto literalmente como em sentido figurado, o mártir de
toda uma geração que, sem ele, se resignaria à mumificação vegetativa – Here we
are now! Entertain us![11] – e ao gregarismo identitário dos “frangos de
aviário” (Cobain, 2000: 19), se foi um “suicida introvertido” (consciente dessa
lobotomia metafórica, mas não virtual) que os media vestiram da cabeça aos pés
com os signos fisiognomónicos mais convenientes ao escândalo mediático (cf.
idem, 62) – então, em 1995, Alanis Morissette tornar-se-ia a candidata ideal
para incorporar o papel de novo bode expiatório (disse-se “incorporar”, porque
no showbiz pós-Cobain, no seio da era capitalista, “representar” não basta). No
entanto, contra as expectativas mais sádicas dos media, que assomam a rodos mal
se pressente a iminência do cheiro a sangue, Alanis não se deixou imolar pela/
para a remissão de pecados anónimos que nada tinham a ver com os seus. Mesmo
assim, durantes largos meses após a tournée de Jagged Little Pill, ela própria
chegou a suspeitar que não voltaria a compor, esquivando-se para um Oriente
onde o eco do seu nome próprio não fazia, de todo, tremer as águas. Com ela, o
esquematismo girardiano do desejo mimético e da vítima sacrificial parecera ter
sido suspenso: desta vez, não houve nem suicídios, nem overdoses de heroína,
nem clínicas de desintoxicação, nem intervenções policiais a meio dos
concertos; muito antes de haver o dobre de sinos como anúncio de um luto, já
Alanis dizia “aleluia” com Supposed…, nua e serena, agradecendo à Índia, ao
terror, à desilusão e a outros agrores.[12] Arriscar-se-ia dizer que Cobain
formou uma banda cujo sonho maior seria alcançar o nome que lhe deram, mas foi
Morissette quem terá compreendido melhor o sentido e o alcance do vislumbre
nirvânico (thank you nothingness – uma atualização do Nada segundo
Schopenhauer?).
Ensaie-se um regime de comparações entre os dois artistas a partir das suas
próprias reflexões autocríticas e metatextuais. Por um lado, os escritos do
frontman dos Nirvana mencionam a imensidade do perigo autobiográfico na
escrita, com um despudor – “inédito”, logo irreverente – sincronizado, por
antífrase, com o seu tempo: por exemplo, para se referir às letras do álbum
Bleach (em português, “lixívia”, evidenciando a natureza corrosiva do conteúdo,
mas ao mesmo tempo desinfetante), Cobain equipara-as “à descarga de uma fossa
estagnada durante anos: eram a purga da minha consciência quase a apodrecer,
depois dos anos de Aberdeen e de toda a merda em que tinha sido obrigado a
viver” (Cobain, 2000: 33-34). O risco dessa “purga” foi a sua mediatização
exponencial, algo que, para William Burroughs, escritor preferido de Cobain
[13], dá azo à seguinte interpelação de alarme: “Já notaram que figurar na capa
do Time é receber o beijo da morte?” (Burroughs, 2002: 34) – como quem diz que
a autenticidade irredutível do artista (que antes de ser artista é humano) não
se imiscui na luz dos holofotes, sob o risco da pele da “aura” ser
fotossensível e inflamável.
Por outro lado, e face à escassez de fontes que denunciem o inverso, Alanis
Morissette não pareceria tão afim de usar imagens excrementícias para ilustrar
o seu misto de raiva e desânimo contra os traumas de infância e outros entraves
da sua antropologia familiar (considere-se a letra de Perfect, do álbum Jagged
Little Pill). Nas entrevistas, a sua sobriedade poderia ser considerada
surpreendentemente desconcertante, tendo em conta que a sua forma de
apresentação mundial condensou, numa mesma letra, expressões de uma Inquisição
contra a pujança fálica (imediatamente sujeitas ao bip censório), tais como
would she go down on you in the theatre e and are you thinking of me when you
fuck her. Sob as lentes externas, a questão paradigmática tropeçava no erro de
uma resposta meticulosamente confecionada: num escrutínio deficientemente
biografista, esperava-se que a artista irreverente do palco e das músicas fosse
coincidir ipsis verbis com a jovem adulta, vinte e um anos, olhos castanhos,
natural de Toronto, aluna de mérito, maria-rapaz, signo gémeos, etc., etc.[14]
Seria necessário um certo distanciamento temporal (físico e psicológico) para
que Morissette conseguisse retroceder na carreira e obter uma maior acutilância
crítica a respeito de tudo o que viveu, por escrito e por ex-crito. Ao pensar
em retrospetiva, no ano de 2004, sobre o segundo álbum, apelida-o de “my fuck-
you record”, admitindo não ter tido perceção do seu desaforo artístico na
altura em questão: “I guess I was simply writing what I needed to write. I
found it all quite cathartic, actually, although I don't think the record
company agreed”.[15] É só quando entra em cheque a pulsão confessional,
alcançando na escrita (diarística, musical) uma forma de expressão satisfatória
e plenipotenciária, que Morissette se aproxima nitidamente de Cobain: não pelos
resíduos fisiológicos e pelos canos do esgoto (que Cobain acolhe
inevitavelmente, vitimando-se por isso), mas antes pelas metástases
cancerígenas (que Morissette faz por curar ab ovo ad mala, renunciando à
condição de vítima):
“It is never my intention to hurt or vilify someone through my songs. If that
happens, then I am genuinely sorry, but I write them because I have to, in
order to develop my sense of self. If I were to keep them bottled up, then all
those bad feelings would marinate and I'd get cancer. I don't want cancer.”[16]
Revivalismo da autobiografia, em registo radiofónico, e que nasce das
intimidades como subterfúgio ímpio (Cobain) e como catarse holística ou
medicina alternativa (Morissette): sem sucumbir às generalizações impróprias
para consumo (validado pelo aparelho institucional) literário, a autobiografia
como género dilata as suas margens trazendo a periferia para o centro, ou
melhor (numa reivindicável atualização do discurso), trazendo as periferiaspara
oscentros, dissolvendo as insolubilidades molares, os seus organismos
abalizantes e todos os órgãos que afastam, por dentro, o eu – no caso da
autorrepresentação – do seu núcleo essencial, que é o seu si mais fenotípico
(cf. Deleuze & Guattari, 2004). Enquanto eventuais sortilégios genológicos,
que beneficiam cada vez mais do seu hibridismo (se contornarem as Cassandras da
literatura e as suas ameaças de crise[17]), as diferentes estratégias de
autorrepresentação do sujeito, tal como as varinhas mágicas do Harry Potter,
denunciam que não será tanto o sujeito a escolher o seu autorretrato ou a sua
autobiografia, mas antes o autorretrato ou a autobiografia que interpelam o
rosto e/ou a “euidade” do sujeito neles representado. Terá sido esse plasma
flutuante que Cobain não compreendera a tempo? A tal “fossa estagnada” que não
quis drenar para proteger o que em si julgava ser mais irredutível? Ao cometer
suicídio, seria só o seu dedo a premir o gatilho, como último desejo da sua
megalomania de romântico pós-moderno, ou seria o Grande dedo do Outro sistémico
a projetar na tela mediática um filme trágico perpetrado ao pormenor?
O “cancro” a que Morissette acima se referia é ao mesmo tempo um sintoma de
morte e um sintoma de vida, um sintoma de morte que cria vida, revelando-se-lhe
um caminho divergente do de Cobain e garantindo-lhe a salvação. É o motor de
todo um processo que combina inseparavelmente criação e bios, até que a
pertinência da distinção entre os dois caia no anacronismo e dispense
averiguações obsolescentes ou extrapolativas. É na esperança de curar esse
cancro que o sujeito de I Was Hoping alicerça a sua fé na linguagem (e profere
a linguagem da sua fé):
I Was Hoping
as we were taking outside it was cold we were shivering yet warmed by the
subject matter
my wife is in the next room we’ve been having troubles you know please don’t
tell her or anyone
but I need to talk to somebody
you said “wouldn’t it be a shame if I knew how great I was five minutes before
I died i’d be filled
with such regret before I took my last breath” and I said “you’re willing to
tell me this now
and you’re not going to die any time soon”
and I said I haven’t been eating chicken or meat or anything and you said yes
but you’ve been wearing leather and laughed and said we’re at the top of the
food chain
and yes you’re still a fine woman and I cringed
I was hoping I was hoping we could heal each other
I was hoping I was hoping we could be raw together
we left the restaurant where the head waiter (in his 60's) said “good-bye sir
thank you for your
[business sir you’re
successful and established sir and we like the frequency with which you dine
here sir
and your money” and when I walked by they said “thank you too dear” I was all
pigtails and cords
and there was a day when I would’ve said something like “hey dude I could buy
and sell this place
[so kiss it”
I too once thought I was owed something
I was hoping I was hoping we could challenge each other
I was hoping I was hoping we could crack each other up
I too thought that when proved wrong I lost somehow
I too once thought life was cruel
it’s a cycle really you think I’m withdrawing and guilt tripping you I think
you’re insensitive
and I don’t feel heard and I said do you believe we are fundamentally
judgmental? fundamentally
[evil?
and you said yes I said I don’t believe in revenge in right or wrong good or
bad you said
“well what about that man that I saw handcuffed in the emergency room bleeding
after beating his
[kid
and she threw a shoe at his head.
I think what he did was wrong and I would’ve had a hard time feeling compassion
for him”
I had to watch my tone for fear of having you feel judged.
I was hoping I was hoping we could dance together
I was hoping I was hoping we could be creamy together
A interpretação a que a artista sujeitara inúmeras vezes a música, sobretudo
durante as digressões mundiais de The Junkie Tour e The One Tour (1998-2000),
raramente se cingiu à reprodução mimética da versão registada no álbum. Nesta
última, a letra é proferida num ímpeto vocálico que raia o relato
futebolístico, marcado pela velocidade com que longos trechos de informação,
sob a forma de diálogos ininterruptos (exceto pelos refrões, com variações
frásicas), parecem querer impedir que a música se torne aderente à condição de
ser reproduzida de memória, enquanto forma de organização e integração sociais,
seguindo a lógica (silenciosa, sistémica, mas evidente) das moedas e do
capital, porquanto funcionam como bandeiras das massas. Longe de reclamar para
si um efeito terapêutico (uma espécie de feng shui musical que propicie
atmosferas de conciliação solipsista, introspeção autoanalítica ou simples
descarga de prazer libidinal, uma catarse), a letra e o respetivo trabalho de
edição propiciam, ao invés, na opinião de fãs convictos da artista, sintomas de
cefalalgia[18]: no seu conjunto, a canção distingue-se pela intensa carga de
orquestração instrumental, arquitetada por motivos elétricos, tremulações
bruscas e ruidosas, uso excessivo de guitarras e sintetizadores, assim como por
evidentes manipulações vocais (como o jogo fónico de duplicação do emissor,
isto é, a sobreposição de uma voz secundária àquela que domina o fluxo emissor,
jogo esse pensado seja para figurar como um desinteressado artifício estético,
seja, pelo contrário, para reforçar propositadamente determinados detalhes da
letra, que só uma entoação diferente e uma colocação atenta de pausas conseguem
iluminar, funcionando como chaves-de-ouro interpretativas).[19]
Entrevendo uma qualidade evocativa similar à do pleno storytelling, a canção
fala, em três diferentes momentos divididos pela ocorrência do refrão, do
sentimento de julgar, de se sentir julgado e de se sentir julgando o outro,
respetivamente. A tríade não decorre necessariamente de um fluir cronológico
situado, por exemplo, num mesmo dia, podendo ser legitimamente interpretada
como uma interligação de tempos desfasados que convergem, porém, pela densidade
do pathos, para um mesmo assunto dilemático. O percurso historiográfico do eu,
se existir, será mais premente como linha de leitura a propósito da sequência
proposicional dos refrões, que adiante explicitaremos. De resto, as três
micronarrativas interpoladas, lidas num contexto atinente à autorrepresentação
e seus derivados, oferecem um fulgor circunvolutivo, sempre in media res, que,
entre o corpo do texto (lyrics) e o texto do corpo (performance), deixará – e
bem – muitas coisas por dizer sobre o eu enquanto corpo no mundo.
Há sempre uma relação dialógica entre um eu e um tu, pontuada por imersões
silenciosas de um narrador que parece sempre hesitar em dizer o que pensa. No
primeiro desses momentos, decorrente ao ar livre, numa daquelas situações em
que a intensidade dos tópicos de conversa relativiza e faz olvidar as
circunstâncias envolventes (we were shivering yet warmed by the subject
matter), o acompanhante do sujeito lírico admite, por um lado, os problemas
conjugais que obrigam os dois a um pacto de sigilo (please don’t tell her or
anyone/ but I need to talk to somebody), catapultando os versos seguintes para
um regime de leitura que nunca se descola da pressão vigilante e dos sentidos
tensos que permeiam o dito pelo não dito (e os respetivos interditos – afinal,
como vincou Lacan, o laço social é essencialmente paranoico: nunca se sabe ao
certo medir a ousadia numa conversa, mesmo entre conhecidos, destrinçando com
desenvencilhada espontaneidade o que é “intimismo” e o que é “atrevimento”,
onde começa um e acaba o outro). De facto, segue-se uma pergunta existencial –
se seria vergonhoso constatar, na hora do aperto (mais precisamente, “cinco
minutos antes de morrer”), how great I was –, uma pergunta que, não sendo
intrinsecamente retórica, fica, porém, sem resposta, dada a perplexidade e/ou a
imaturidade que caracteriza(m) o feedback apaziguador do sujeito, para depois
reforçar esse gesto esquivando-se ao tópico da morte (real) por intermédio de
um breve small talk à volta de inocuidades como novos hábitos alimentares (que
excluem chicken or meat or anything you said), temperados com o cómico de
situação (but you’ve been wearing leather).
O recurso à irrupção dos marcadores fáticos da coloquialidade reforça essa
ideia: o you know do segundo verso é tanto a confirmação de que as crises
conjugais são filhas da humanidade, como pode ser interpretado como um apelo à
compreensão de um terceiro, de um buddy de confiança. A comunicação fática é,
por si só, uma estratégia para assegurar uma presença, o que, num contexto como
o que a letra apresenta no início, esvazia referencialmente tópicos
subordinados à carne ou ao cabedal da indumentária, preenchendo-os com o valor
axiológico de um paliativo contra a solidão (note-se que o par se encontra ao
relento e ao frio, isolado, porque um deles tem um segredo que mais ninguém
pode saber…). Por sua vez, considere-se a afinidade entre a carne e o cabedal:
o segundo, produto industrial, confirma a superioridade do homem em relação ao
primeiro, que é um dado bruto; como na história do Rei que vai nu pela parada,
o tu da canção tem o seu campo percetivo confinado à perpetuação de uma herança
simbólica falsamente consciente, como diria Sloterdijk (we’re at the top of the
food chain).[20] A rutura interior que se dá neste novo Rei deve-se à “banha”
em excesso que as fórmulas hiperidentitárias – a linguagem, a ideologia
sobranceira, as várias camadas do ego, enquanto instâncias territorializantes,
i.e., bloqueadoras (cf. Gil, 2009: 21) – atrofiam até ao expoente do próprio
excesso, que passa a devorar-se a si mesmo: como refere o tu, se somos senhores
da cadeia alimentar, imunes aos esquemas da predação, admitimos, portanto, que
estamos lúcidos de que, um dia, vamos morrer, ainda que vivamos como se não
acreditássemos nisso (cf. ibidem).
Na situação seguinte, a do restaurante, a fórmula aplicada é a mesma, desta vez
reforçada a nível entoacional. A construção repetitiva – good-byesirthank you
for your businesssiryou’re/ successful and establishedsirand we like the
frequency with which you dine heresir – embate, no fim, contra um efeito
vocálico de suspense, ao arrastar o sintagma and your money, colocando-o em
extrema evidência, não apenas do ponto de vista fónico, mas igualmente
semântico: revela o que, na interpretação do sujeito, é a verdadeira chave-de-
ouro (cínica) por detrás de toda aquela efusividade lisonjeira dramatizada pelo
head waiter do estabelecimento. Eis um exemplo adequado para figurar na montra
das teratologias (pós-)modernas, cujos monstros são tão-só projeções empoladas
da melhor versão que o sujeito tem de si mesmo: o (apelidar alguém de) sir é
quanto basta para denunciar o mal-estar da civilização que, depois de Freud e
do desejo frustrado por um objeto (materno) traído pela orgânica umbilical (a
carência reenviando para uma positividade do desejo), dá lugar, como advertiram
Deleuze e Guattari (cf. 2004), aos múltiplos desejos flutuantes que não
encontram – nem precisam de – um objeto onde possam achar repouso e absorvência
de fluxos (o desejo reenviando para uma negatividade da carência).
A neurose passa por aí, aliando esquizofrenia às políticas do neo-liberalismo
(and your money, novamente): uma identidade que só se compraz numa dieta
exagerada à base de indulgência e bezerros de ouro simbólicos, que engordam o
complexo hiperidentiário do eu e, ao mesmo tempo, emagrecem o sentido cru que
lhe é subtraível (reitere-se o fragmento I was hoping we could be raw together,
com destaque para o adjetivo raw). A obsessão, que devém esquizofrénica, passa
pela existência rizomática do eu pulverizada em mil bocados, o que, numa
leitura despida de cinismos pós-modernos, é tudo menos encomiasta face à
subversão guattaro-deleuziana do sujeito estilhaçado como um tipo único que
rivaliza contra as arrogâncias ideológicas dominantes (cf. iek, 2006: 79). Em
Morissette, passa mais concretamente pelo facto de o sujeito se projetar no
outro atribuindo-lhe a sua própria subjetividade, nunca cessando de lhe
atribuir (segundas, terceiras…) intenções – daí a cólera insubordinada que a
forma de agradecimento thank you too dear desencadeia na protagonista,
subitamente minimizada pelo paternalismo do empregado, sentindo-se reduzida ao
estatuto morfológico de um advérbio aditivo (ela seria, assim, um elemento
apendicular do sir, é o too do sir, inscrevendo-se na trama falogocêntrica de
assinatura derrideana). Não é a linguagem em si, mas o contexto que dita o
sentido: assim, a pretensa dear, revestida por folhos de puerilidade e ternura
(I was all pigtails and cords), prefere ler o qualificativo simpático como uma
subversão da retórica da auxesis ou amplificatio, i.e., quando, ironicamente, o
sujeito sobrevaloriza alguma coisa que, pela sua natureza, não tem um valor
socialmente reconhecido (como quando dizemos, perante um casebre, que é uma
“mansão”; no contexto da letra, o termo dear estaria a forrar a versão
defeituosa de cada uma das virtudes reconhecidas pelo empregado no acompanhante
da lesada).
A atmosfera da terceira situação assume-se mais existencial, a avaliar pelo
tipo de interrogações e inquéritos maniqueístas que levanta. O conteúdo
proposicional, aliado ao tom de voz e ao ritmo acelerado com que desenrola
intensidades (a versão gravada em estúdio corrobora esta descrição com um vinco
de maior saliência intrigante, porque os movimentos de frases expiradas são
mais impetuosos), estrutura-se de um modo paralelístico, mas que não pode ser
considerado quiasmático, ou seja, desvela o cruzamento de desafogos e
renúncias, de insinuações e críticas diretas, mas esse cruzamento não chega a
permitir o choque e a subsequente dissolução (catártica, aurífera) das
adversidades, cada vez mais severas. A nível da articulação sintática, os
marcadores do discurso (direto e indireto) – and I said… and you said… I said…
you said… – acentuam a dimensão disjuntiva e sideral de um diálogo que, numa
transposição filosófica, ficaria perto de um cenário com contornos
schopenhauerianos, cujo paroxismo mais insuportável seria culminar numa relação
simbiótica entre os intervenientes. De facto, os marcadores impõem uma cesura
entre o que é da minha responsabilidade e o que é da tua; deixam a nu os
‘bordos’, as ‘pregas’ ou as ‘costuras’ da comunicação, os relevos que, como
numa superfície em formação, obstruem o seu nivelamento: é o que Barthes
designa, pondo a tónica na expressividade da linguagem, como as “figuras de
interrupção e de curto-circuito”, como o assíndeto e o anacoluto em construções
paratáticas (Barthes, 2009: 117), figuras que tornam o sujeito – porque carne,
corpo, matéria opaca que a pele objetivamente resguarda – inconvertível na e
pela linguagem, resistente ao sentido (cf. idem, 107).
As nuances schopenhauerianas não serão tanto uma intertextualidade ensaística,
rebuscando na letra marcas residuais que infirmam inquestionavelmente o
filósofo das vontades resignadas, mas serão antes um deslize psicológico que
ressoa a uma atualização encorpada do seu pensamento: parece que nada no texto,
ou na vida dos seus sujeitos, vai acabar bem, qual lei de Murphy. Por um lado,
o sujeito desmistifica alguns mitos pessoais constrangedores, como o sentir-se
descartável, minimizado, ao tornar cada conversa (como a que de momento
estabelece) numa arena e cada interlocutor, num potencial adversário (I too
thought that when proved wrong I lost somehow). Por outro, contesta e
desacredita uma fórmula anti-leibniziana, segundo a qual o homem viveria no
pior dos mundos possíveis, apenas para dar de cara a seguir com uma dissonância
assertiva (ela: I too once thought life was cruel; ele: do you believe we are
fundamentally judgemental? fundamentally evil?/ and you said yes). Condenados
ao sofrimento, ao caos, ao ressentimento, à nuvem incondensável da
indiferenciação, repetidos ciclicamente mas sem certezas (it’s a cycle really)
– os dois sujeitos repercutem o estigma schopenhaueriano, segundo o qual a
metafísica é tributária de uma interpretação da realidade empírica que, não
sendo infalível (ao invés do idealismo especulativo de Fichte, Schelling e
Hegel), pode ser reexaminada e corrigida. “O mundo é a minha representação”
absolve a hipótese de isomorfismo, mas absorve os essencialismos pios no mesmo
caldo de promiscuidade: o mundo fenomenal é a pura representação de um mundo
volitivo, das vontades pessoais como aspirações prementes de vida, de desejos
que, por instinto, são irrefreados. As volições tornam-se, assim,
democraticamente suportáveis, porque a peneira do mundo, que é vontade e
representação, deixa passar tudo, está furada; e, se assim é, o sofrimento é
inevitável, porque conspira sempre contra nós, iludindo-nos com a frugalidade
dos apetites (Schopenhauer antecipa, portanto, Freud e o acefalismo
intransitivo das pulsões, que ficam sempre à deriva, insatisfeitas).
Eis, na letra, uma concretização desse aspeto: 1) I said I don’t believe in
revenge in right or wrong good or bad (assume-se a insolvência do maniqueísmo
perante a frigidez dos valores decantados que objetivam o mundo ou, para
retomar imagens anteriores do texto, que encouraçam a sua carne fazendo-
a passar por biológica ou natural; a crença no que é relativo ou subjetivo mina
a realidade enquanto categoria universal hegeliana; rompe-a por intrusão da
ética, em sentido levinasiano, enfraquecendo a nobreza tutelar ou a presunção
apofântica das dicotomias, as linhas finas cada vez mais representativas do
declínio da modernidade num prefixo pós- que sabe sempre a pouco); 2) “well
what about that man that I saw handcuffed in the emergency room bleeding after
beating his kid/ and she threw a shoe at his head./ I think what he did was
wrong and I would’ve had a hard time feeling compassion for him” (o introdutor
adverbial reitera o condão desafiante a que a protagonista antes se reportara
no verso I too thought that when proved wrong I lost somehow; a sideração entre
os dois é irreconciliável, com o interlocutor a ripostar os argumentos do
adversário num esquema similar ao da antanagoge; a ética zen do eu influi um
alheamento contestável, segundo o outro, quando este descreve o caso de um
homem algemado por ter batido no filho que, fazendo jus ao karma budista, foi
ele próprio vítima de violência pela mulher que lhe arremessou um sapato,
pondo-o a sangrar da cabeça; o tu manifestamente se esquiva às ambiguidades
morais e adota afetos partitivos: o fulano agiu mal, merecendo ser duplamente
castigado – pela justiça pessoal, com o sapato da esposa, e pela justiça civil,
razão pela qual está preso –, sem direito a condolências ou alternativas
antálgicas; por outras palavras, aquele fulano não sou eu: é a cabeça dele que
sangra, não a minha; o sangue que escorre é indolor e asséptico, porque o meu
olhar recusa-se a tocar-lhe; aquela cabeça que eu vi, mas não olhei, não tem
visage, porque não houve entre mim e aquele homem a erradicação essencial da
espacialidade, fazendo do Outro um absoluto Outro; cf. Lévinas, 1988).[21]
Sem a mediação da alteridade que lhe outorga um sentido de si – eu sou um quem,
e não uma coisa impercetível, pelo facto de haver um outro além de mim que me
reconhece –, o sujeito não existiria como tal. Não é esse o caso aqui – porém a
mediação fica, na prática, muito aquém do que o esperado (nem só de pão vive
homem, mas ainda assim o pão nunca deixa de ser indispensável): o sujeito que
repete duas vezes I was hoping por verso, em cada refrão, é posto à prova, na
sua experiência pessoal, para perceber que a sua performance ético-narrativa,
alicerçada em cada uma das “esperanças” ou “expectativas”, se queda apenas nas
boas intenções. Por outras palavras, muito literalmente, repete duas vezes “eu”
(I) e apenas uma “nós” (we); o campo de reversibilidade é autofágico, não
recíproco, dentro do imaginário do sujeito que, como no mito de Eco (versus
Narciso), fica condenado a ouvir-se a si próprio (quando profere I was hoping,
logo a seguir repete-seI was hoping), insistente na sua obstinação sem objeto
(porque este, o tu, só é imaginariamente objetal), ficando emparedado pelo que
é impenetrável, inegociável e incognoscível no destinatário do seu afeto.
A ordem sequencial das expectativas em cada refrão permite construir o seguinte
campo de ação imaginário, em que as projeções obedecem a fases psicologicamente
determinadas: 1) uma projeção de cariz mais utópico, idealista ou romântico,
confiante na reciprocidade terapêutica (we could heal each other) e na
franqueza que advém de um completo desnudamento mútuo, como o que o adjetivo
raw sugere no verso imediatamente a seguir; 2) e porque a anterior tentativa se
revelara inoperante, segue-se uma projeção mais realista, violenta e intrusiva,
que abale profundamente os dois sujeitos (we could challenge each other; we
could crack each other up); 3) face ao fracasso das outras duas e, agora, sob
uma urgência que se afirma cada vez mais improvável de acabar vitoriosa ou
resolvida, o sujeito constrói uma situação socialmente convencional, que
desbloqueie o que os atravanca na relação ou, numa perspetiva conducente à
mesma ideia, mas de uma forma mais direta, que aproxime o nós daquilo que fazem
os outros (we could dance together), mesmo que o puro facilitismo raie a
vulgarização do eu, que se mostra demasiado disponível e lançado ao despudor e
à comoção descaradamente “melosa” (we could be creamy together). O correlato
literário desta última atitude seria o equivalente a uma anagnórise patética
num romance de tipo sentimental, oscilando entre o cómico e o trágico (mas em
que o primeiro triunfa, aos olhos heterónomos, sobre o segundo, fazendo jus, de
novo, à paranoia lacaniana): quando a postura e a sobriedade de nada valem,
estala-se o verniz e resvala-se para uma necessidade bruscamente desenfreada,
tendendo para a humilhação pessoal, na tentativa de palmilhar à pressa o que
resta de um destino possivelmente promissor – ou a imago que o eu preserva
ainda, dentro de si, desse destino, como a última esperança sobrevivente no
psicodrama do seu (conceito de) amor.
Se a linguagem substitui o mundo ostensível, acolchoando-o com a seda do
simbólico (a enunciação imperativa “morre” não mata ipso facto), essa
substituição não deixa de esconder uma intenção agressiva, vampirizando o mundo
daquilo que nele é natural para nele investirmos projeções, sonhos e ânsias
espectrais que jamais dissolverão as suas insatisfações (o objeto petit a,
segundo Lacan). Sendo assim, a linguagem implica sempre uma violência
incondicional, dado ser ela o barómetro pela qual os desejos são encaminhados,
como diria Freud, para lá do princípio do prazer, para fora das suas imediações
seguras e convenientes. Neste sentido, em I Was Hoping, é sob a ameaça de
violência que o eu se retesa, sendo coagido a manobrar as suas respostas
“sinceras” para fora do circuito fático e metalinguístico da comunicação, num
regime de auto-sabotagem: tanto o canal como o código são afetados (na senda
estruturalista de Jakobson, o eu não prolonga o vazio estruturante do contacto
social: o outro sabe da sua presença, mas não obtém a confirmação de que está a
ser ouvido, nem pode testar ou verificar se o mesmo código é mutuamente
partilhado). Exemplo disso é a possibilidade do retraimento do eu se tornar
ofensivo, seja ele deliberado ou não, por ser indutor de culpabilidade (you
think I’m withdrawing and guilt tripping you); mas, logo de seguida, explica
por que os fins justificam os meios (I think you’re insensitive/ and I don’t
feel heard): ou seja, se existe primeiro uma auto-vitimização involuntária
(como quando dizemos que “foi sem querer”), logo a seguir o dispositivo
incriminatório é acionado para aliviar as eventuais repreensões (“foi sem
querer, mas tu também fizeste alguma coisa que, se te pusesses no meu lugar,
levar-te-ia a fazer o mesmo que te fiz”).
Outra manifestação do insucesso fático ou metalinguístico prende-se com o facto
de cada uma das três partes da canção terminar com um verso que exprime
manifestamente a contenção do sujeito no confronto com a alteridade, que surge
sempre atrofiante e inibidora, manifestando-se em atitudes corporais de
prudência e concomitante renúncia: 1) um elogio inoportuno – porque ele é
casado, sente-se emocionalmente fragilizado e confessa ter problemas com a
esposa – revela-se mais glacial do que as condições atmosféricas locais e mais
anorexigénio do que qualquer dieta seletiva (and I cringed); 2) a coragem com
que enfrenta o empregado de mesa – politicamente correto, ergo derrogatório por
definição – é fruto de um arrufo imaginário (o karma: and there was a day when
I would’ve said something like “hey dude I could by and sell this place so kiss
it”) e termina com um amuo silencioso, ou seja, acaba por subscrever
involuntariamente o dito popular segundo o qual “quem cala consente”, ao mesmo
tempo que intensifica a fratura lacaniana (apud iek, 2009: 85) entre o
“sujeito do enunciado” (o modo como o eu, sujeito falante, se representa no seu
discurso) e o “sujeito da enunciação” (o próprio falante), invejando o outro
que reside em si mesmo (I too once thought I was owed something); 3) a
consciência de que a coação individual é sintoma de uma relação que ficará dada
por perdida, a partir do momento em que o eu se retrai com medo de magoar o seu
semelhante/dissemelhante (I had to watch my tone for fear of having you feel
judged). O procedimento é semelhante ao usado em The Couch pelo pai: a
manifestação do verdadeiro interesse (logo censurável) desdobra-se do início ao
fim da canção até a retórica da paralipse se tornar evidente ou, no mínimo,
teoricamente suspeitável.
O incomunicável do inconsciente manifesta-se na parole pela transgressão do
ser, como fratura da obstrução indestrutível entre emissor e recetor, mas sem
nunca elevar as cisões comunicantes à ideia “feliz” de uma porosidade ou
transparência ilocutórias. Ricœur, num flirt ao legado de Leibniz, trata o
fenómeno comunicativo como a “incomunicabilidade das mónadas”, assente num
inegável paradoxo: “le paradoxe, c’est que la communication est une
transgression, au sens propre du franchissement d’une limite, ou mieux d’une
distance en un sens infranchissable” (Ricœur, 2005: 12). O plano eumórfico de
adulterar as eternas contingências, as presenças eternamente adiadas que o
desejo elege como objetos de investimento libidinal, acumula somente
impaciências que, como refere Alanis Morissette, geram bons pretextos para
fazer músicas e, numa fase ulterior, fruto de experiências ansiogéneas, para
extrapolar as vedações do texto, pisando o território desconhecido que escapa
às garras da escrita:
Is it beneficial to try to return, literally and physically, to the scene of a
crime? Do you really need a face-to-face confrontation in order to reach
closure? I've always been hopeless in confrontation, and I'm terrified of
arguments, but increasingly I feel I have to learn to do this. So far, I've
only managed to do it through my songs, but I now know that more healing can
happen in two seconds in the same room with that particular person than me
singing the song a thousand times across the planet.
No fundo, o perigo de extrapolar a dimensão “ficcional” ou “autotélica” das
canções põe em evidência o quid inefável que a obra de arte, da literatura à
pintura, não comporta, porque provém do lado inconsciente e profundo que
atravessa os materiais do produto (o texto e a música, neste caso), sem nunca
se realizar por completo. Por criar insatisfação, é que a cantora acredita que
o regresso à cena do crime poderá resolver o impasse lançado pelo produto (e
fadiga) do seu ofício. De certa forma, inverte-se o processo criativo
tradicional: é a obra (passiva) ou criação (e o eu nela imbuído) que dá origem
a um criador ou sujeito-agente. A obra ensaia a vida, minimizando-lhe os
riscos:
En général on réinvestit dans l’écriture autobiographique une compétence
acquise préalablement dans d’autres formes de création. […] L’innovation, elle,
est souvent une greffe. Dans son essai sur ‘Le roman comme recherche’, Michel
Butor présente le roman comme ‘le laboratoire du récit’. On expérimente in
vitro, avec plus de liberté et moins de risques, avant d’opérer in vivo
(Lejeune, 1988: 78).
Conclusão: oh yes! I’m the great pretender (The Platters)
Para concluir, atente-se no seguinte trecho de um dos metadiálogos de Bateson,
que parte da interrogação da filha sobre, primeiro, o que leva um francês a
mexer tanto o corpo enquanto fala (atitude que a menina inicialmente considera
excessivamente histriónica) e, segundo, sobre o efeito culpabilizante que nela
se repercutiria acaso o seu interlocutor, francês, cessasse abruptamente de
gesticular:
Filha: […] pai, tu disseste que todas as conversas são só para dizer às outras
pessoas que não se está zangado com elas.
Pai: Eu disse isso? Não, nem todas as conversas, nem tudo em cada conversa, mas
a maior parte. Às vezes, se as pessoas estiverem dispostas a ouvir com cuidado,
é possível fazer mais do que trocar cumprimentos e desejos de boa saúde. Mesmo
mais do que trocar informação. As duas pessoas podem mesmo descobrir qualquer
coisa que nenhuma delas sabia antes. […]
Filha: Pai, porque é que as pessoas não podem dizer só “Não estou zangado
contigo” e ficarem-se por aí?
Pai: Ah, agora estamos a chegar realmente ao problema. O ponto é que as
mensagens que trocamos por gestos não são de facto as mesmas que as traduções
desses gestos em palavras.
Filha: Não compreendo.
Pai: Quero dizer que nenhum esforço em dizer a alguém por “simples palavras”
que se está ou não se está zangado é tão bem sucedido como dizer-lhe por gestos
ou tom de voz.
Filha: Mas, pai, tu não podes usar palavras sem nenhum tom de voz, pois não?
Mesmo que alguém use um tom tão neutral quanto possível, as outras pessoas
saberão que está a evitar mostrar as suas emoções, e isso é uma espécie de tom,
não é?
Pai: Sim, suponho que é. É o que eu disse agora mesmo: que o francês pode dizer
qualquer coisa especial se parar os gestos que faz com os braços. (Bateson,
1989: 23-4)
O diálogo é, desde Platão, uma estratégia indireta usada pelo eu para se
desdobrar em múltiplas personae, esbatendo-se aquilo que denunciaria um certo
exacerbamento narcísico da sua parte. Mesmo as “simples palavras”
constituintes, ensina o pai à filha, são um refúgio topológico ironicamente a
céu aberto: o percurso que vai do eu que fala (ou canta) ao seu próprio
discurso está marcado por uma complexidade discursiva, dialógica e multi-
fratal, sob telhados de vidro, partilhada pelos dois. Nos trâmites da
autorrepresentação, o eu consciente de si é o eu consciente do outro, que
também existe e, só por isso, interfere no devir-eu/outro daquele, enquanto
fenómeno polirrítmico da formação da identidade subjetiva, que, segundo
Heraclito, põe todas as coisas “em fluxo”. É face a essa diferença inexaurível
que o sujeito ensaia a sua identidade, p(r)ensando as palavras – logos
articulável por algoritmos saussurianos – com camadas de mímica, modulações
tonais, tratos e traços que, neste estudo, as lyrics – e a vida – não
galvanizam, mesmo que a sua neutralidade possa parecer impositiva e desarmante
(o devir-eu devindo outros é uma banalidade inflacionada pelas experiências
diárias mais ínfimas e espontâneas, funcionando como o processo heteronímico de
Pessoa). Porquanto designativo de um alter-ego mítico, Ninguém continua a ser,
de Ulisses ao garrettiano Frei Luís de Sousa, uma resposta de proporções
homéricas na filogénese do eu. Neste sentido, Alanis Morissette assina por
baixo – não se sabe é de quem é a mão.