Igualdade sem responsabilidade? Comentário a justiça social e igualdade de
oportunidades (capítulo III)
Igualdade sem responsabilidade? Comentário a justiça social e igualdade de
oportunidades (capítulo III)
Roberto Merrill*
*Investigador do Grupo de Teoria Política do Centro de Estudos Humanísticos da
Universidade do Minho e investigador associado ao CEVIPOF-Sciences Po Paris.
nrbmerrill@gmail.com
Introdução
No terceiro capítulo do seu livro Futuro indefinido: Ensaios de Filosofia
Política, (Braga, 2012), intitulado Justiça social e igualdade de
oportunidades, o Professor João Cardoso Rosas começa por distinguir entre a
justiça social e outros conceitos de justiça (rectificativa, retributiva e
distributiva). De seguida, concentra a sua atenção num dos princípios da
justiça social, o princípio de igualdade de oportunidades, que constitui o tema
central do seu capítulo. Como recorda Cardoso Rosas, a ideia de igualdade de
oportunidades é das mais citadas no discurso público, e certamente que hoje em
dia ninguém nega a sua relevância. No entanto, apesar deste consenso sobre a
sua importância, é fulcral notar que o conceito de igualdade de oportunidades
(IO) pode ser dividido em pelo menos quatro concepções diferentes: (1) IO
formal; (2) IO equitativa; (3) Real IO; (4) IO perfeita.
O autor define cada uma destas concepções, expondo também as principais
objecções a cada uma, e desenvolve os seus próprios argumentos para justificar
a preferência por uma delas, a saber: a igualdade de oportunidades real. Neste
artigo vou, numa primeira parte, seguir a ordem de exposição do Professor
Cardoso Rosas, marcando alguns pontos de desacordo com o autor. Numa segunda
parte, formulo quatro objecções. Antes de começar, gostaria no entanto de
recordar a distinção entre a igualdade de oportunidades e a igualdade estrita,
para colocar em contexto o sentido da igualdade de oportunidades. A igualdade
de oportunidades distingue-se da igualdade estrita, ou igualdade de resultados,
essencialmente pela razão seguinte: segundo a igualdade de oportunidades, e
contrariamente à igualdade estrita, certas desigualdades podem ser consideradas
justas, quando a responsabilidade dessas desigualdades pode ser atribuída aos
indivíduos. Inversamente, as desigualdades injustas são aquelas cuja
responsabilidade não pode ser atribuída aos indivíduos. O autor, no seu
capítulo, não desenvolve explicitamente o tema da responsabilidade, mas julgo
que é interessante ter em conta que cada uma destas concepções da igualdade de
oportunidades dá um peso diferente à responsabilidade individual. Com efeito, o
que está em jogo nestas definições da igualdade de oportunidades é a questão
dos limites a colocar à rectificação das desigualdades, em nome de conceitos
como responsabilidade, liberdade ou eficiência.
1. Quatro concepções da igualdade de oportunidades
1.1. Igualdade de oportunidades em sentido formal
Como escreve João Cardoso Rosas, a concepção de igualdade de oportunidades em
sentido formal corresponde à ideia de carreiras abertas às competências e
consiste num princípio de não discriminação que interdita o estabelecimento de
barreiras legais ao acesso às diferentes funções e posições por parte da
generalidade dos cidadãos. Esta concepção formal visa apenas eliminar barreiras
de ordem legal, sendo assim incompatível com a discriminação legal de alguns
tipos de cidadãos (mulheres, minorias étnicas, homossexuais, etc.). No entanto,
esta concepção formal é compatível com a existência de grandes assimetrias
sociais dependentes das circunstâncias sociais e naturais das pessoas. Como
nota o autor, a objecção mais forte a esta concepção da igualdade de
oportunidades no sentido formal é a seguinte: não permite justificar a
rectificação das desigualdades que resultam das contingências sociais e
naturais. Ora as desvantagens sociais e naturais são moralmente arbitrárias.
Isto significa que os indivíduos não podem ser moralmente responsabilizados
pelas desvantagens sociais e naturais existentes à partida. Assim, embora um
regime que respeita a igualdade de oportunidades formal seja mais justo do que
um regime legal discriminatório, esta concepção formal não permite justificar a
criação de mecanismos de correcção das lotarias social e natural e é por esta
razão que a devemos rejeitar, ou procurar superar.
1.2. Igualdade equitativa de oportunidades
Como escreve o autor, a concepção da igualdade equitativa de oportunidades
critica a insuficiência da ideia de carreiras abertas às competências porque
ela não garante as mesmas oportunidades para indivíduos com as mesmas
capacidades mas pertencendo a grupos sociais mais desfavorecidos e, nessa
medida, sem as condições materiais necessárias para o desenvolvimento das suas
capacidades. De acordo com a concepção equitativa, o aspecto meramente formal
da primeira concepção deve ser complementado pela garantia de certas condições
materiais para indivíduos desfavorecidos pela lotaria social, como por exemplo
a garantia dum sistema de saúde capaz de dispensar cuidados básicos a todos, ou
a garantia dum sistema educativo, que permitem mitigar a influência das
contingências sociais nas oportunidades de acesso às diferentes posições e
funções. A concepção equitativa, ao permitir, por exemplo, o acesso efectivo à
educação, torna possível que os menos desfavorecidos socialmente possam aceder
às funções e posições a que acedem com maior facilidade os mais favorecidos,
desde que igualmente dotados e motivados. No entanto, como salienta o Professor
Cardoso Rosas, a concepção equitativa fica a meio caminho de um argumento
moralmente consequente: se as contingências naturais ' a saúde física e
psíquica, a inteligência e a perseverança, a energia e a motivação, as
habilidades e os talentos naturais, etc. ' são tão moralmente arbitrárias como
as contingências sociais, por que não corrigir também as enormes disparidades
sociais que essas contingências naturais também geram? De facto, parece não ter
sentido corrigir as contingências sociais e não corrigir as contingências
naturais (ou vice-versa), ou seja não tem sentido tornar as pessoas
responsáveis pelas contingências naturais mas não torná-las responsáveis pelas
contingências sociais.
1.3. Real igualdade de oportunidades
Como escreve Cardoso Rosas, segundo a perspectiva da real igualdade de
oportunidades, as duas concepções anteriores são insuficientes e devem ser
complementadas por um esquema distributivo da riqueza e dos rendimentos,
inscrito na estrutura social (p. 47). Existe um conjunto de propostas recentes
que podem ser agrupadas na categoria de stakeholding, que permitem implementar
este esquema mais igualitário proposto pela real igualdade de oportunidades.
Segundo estas propostas, devemos colocar directamente nas mãos dos indivíduos
os recursos necessários à criação de mais oportunidades, de acordo com as
capacidades e motivações de cada um. Philippe Van Parijs (1995) propõe um
rendimento básico e incondicional para todos, auferido em prestações regulares
ao longo da vida. Por seu lado, Bruce Ackerman (2001) propõe uma herança social
de cidadania depositada pelo Estado no momento do nascimento e resgatável pelos
cidadãos aos 21 anos. A objecção exposta pelo Professor Cardoso Rosas a esta
concepção da igualdade de oportunidades é dupla. Por um lado, para um
individualista e amante do risco, uma sociedade estruturada pela igualdade real
pode parecer aborrecida, pois nesta sociedade haveria uma maior aversão ao
risco. Por outro lado, e mais fundamentalmente, esta concepção poderá ser
considerada por alguns moralmente incorrecta, pois contribuir com os seus
impostos para alterar a situação económica de outros implica uma intromissão
excessiva na liberdade individual.
Sobre a igualdade real, gostaria de esclarecer o ponto seguinte: o Professor
Cardoso Rosas afirma que Ralws seria a favor da igualdade real pois o princípio
de diferença faria o trabalho necessário para transformar a igualdade
equitativa em igualdade real (p.52). No entanto, julgo que John Rawls é
explicitamente contra medidas como aquelas propostas por Van Parijs e Bruce
Ackerman. Gostaria pois de perguntar ao autor de que maneira a igualdade real
pode ser defendida, dum ponto de vista rawlsiano, sem que isso implique a
defesa dum rendimento básico incondicional. É certo que o último Rawls defende
uma democracia de proprietários, mas tenho sérias dúvidas em relação à sua
aceitação dum rendimento básico incondicional.
1.4. Igualdade de oportunidades perfeita
A quarta e última concepção da igualdade de oportunidades é a perfeita, ou
seja, uma concepção segunda a qual todas as desigualdades são consideradas
injustas e por essa razão devem ser neutralizadas, e não apenas mitigadas. O
autor recorda que a razão pela qual a igualdade de oportunidades não é perfeita
é a existência da família, já que os dados sociológicos disponíveis demonstram
que o ambiente familiar é determinante no desenvolvimento de motivações e
talentos potenciais. Assim, só a abolição da família poderia fazer a diferença
entre a concepção real e a concepção perfeita. A objecção principal à igualdade
de oportunidades perfeita é que só seria viável mediante um regime ditatorial
que intentasse a supressão das escolhas individuais na formação e manutenção da
família. A concepção perfeita deve ser afastada, na medida em que colidiria com
as liberdades fundamentais dos indivíduos.
2. Concepção formal, equitativa, real, ou perfeita?
Na segunda parte do seu capítulo, João Cardoso Rosas expõe o seu próprio ponto
de vista sobre as quatro concepções em discussão. Tendo em conta os argumentos
do autor, vou nesta secção propor três objecções, a do moralmente arbitrário,
a do peso moral, e a da neutralização.
2.1. O moralmente arbitrário
Segundo João Cardoso Rosas, a igualdade de oportunidades equitativa é a menos
defensável de todas as concepções, pois é instável e incoerente (p. 52). A
ideia é a seguinte: sendo moralmente arbitrárias tanto a lotaria social como a
lotaria natural, tanto podemos mitigar as duas como não mitigar nenhuma. O que
é moralmente arbitrário pode ser corrigido, ou pode não o ser, precisamente
porque é moralmente arbitrário. Segundo o autor, em ambos os casos estamos a
tratar os indivíduos com igual consideração e respeito. Para a concepção
formal, o valor da igualdade assenta na não discriminação. Tratar todos e cada
um com igual consideração e respeito significa não discriminar ninguém no
acesso a carreiras e funções (o que corresponde à utopia libertária de Robert
Nozick). Para a concepção real, pelo contrário, o valor da igualdade assenta na
garantia estrutural do maior número possível de oportunidades para todos os
indivíduos. Tratar todos e cada um com igual consideração e respeito significa
compensar os que têm um ponto de partida mais desfavorecido desde que a
igualdade de oportunidades estruturalmente assegurada não ferisse o seu sentido
moral e contribuísse para o respeito próprio de todos e de cada um numa relação
de reciprocidade.
Tenho dificuldade em perceber esta equivalência entre a igualdade de
oportunidades formal e a real, pela razão seguinte: se segundo a igualdade
formal o que é arbitrário nunca é corrigido então os indivíduos que têm má
sorte bruta (brute bad luck), em comparação com os que têm boa sorte, são
discriminados de maneira injusta. Ou seja, se as pessoas com má sorte bruta
(por exemplo as pessoas que ficam na pobreza devido a um terramoto que destrui
os seus bens) são penalizadas por razões pelas quais não são responsáveis,
então estamos a discriminar estas pessoas, ou seja, não estamos a tratar com
igual respeito todas as pessoas. O que parece justo é manter a responsabilidade
individual: as desigualdades provocadas por escolhas responsáveis são justas.
Alguma má sorte devido a escolhas responsáveis pode não ser corrigida pois não
deve ser necessariamente considerada uma exigência da justiça, mas a má sorte
bruta deve ser corrigida. Logo, a igualdade de oportunidades formal, comparada
com a real, parece injusta já que discrimina as pessoas vítimas da má sorte
bruta, pois não as trata da mesma maneira em relação ao critério da sorte.
Neste ponto, e contrariamente ao afirmado pelo Professor Cardoso Rosas, a
igualdade de oportunidades real parece-me superior à formal pois, não
discriminando as pessoas com má sorte bruta, considera-as todas com igual
respeito.
Na minha opinião, a equivalência que o professor Cardoso Rosas atribui a estas
duas concepções da igualdade de oportunidades provém também da sua defesa do
pluralismo dos princípios de justiça. De facto, na página 55, o autor, contra
Rawls, estende a aplicação dos chamados fardos do juízo (burdens of
judgment) aos princípios de justiça. Ora, esta extensão do pluralismo fornece-
lhe um argumento teórico para justificar que tanto a igualdade formal como a
real têm peso moral. Mas não me parece que esse pluralismo que decorre da
aplicação dos fardos do juízo se justifique neste caso, e na verdade o autor
admite ter razões para considerar a igualdade real superior à formal.
2.2. O peso moral: algum peso, mas não igual
Acabamos de ver que, para o autor, as concepções formal e real da igualdade de
oportunidades, ambas coerentes mas claramente contrastantes, têm ambas algum
peso moral. No entanto, o facto de ambas as concepções terem peso moral não
implica que tenham igual peso moral (p. 56). De que maneira propõe o Professor
Cardoso Rosas avaliar se o peso moral de uma é maior do que o da outra? O autor
considera que a igualdade real é superior à formal pois os indivíduos não devem
ser penalizados por factores moralmente arbitrários (p. 56). Mas, apesar de
considerar a igualdade real superior, afirma que isso não pode ser estabelecido
objectivamente com toda a certeza.
Julgo que aqui o tema da responsabilidade individual é importante: as
desigualdades de riqueza entre indivíduos são justificadas quando resultantes
de escolhas pelas quais os indivíduos podem ser considerados responsáveis.
Inversamente, as desigualdades causadas apenas pelo acaso ou pela má sorte
bruta não são moralmente justificadas. Ora, a igualdade formal tem de admitir
que os indivíduos são responsáveis pelas desigualdades provocadas pela má sorte
bruta, mas isto é injusto. Este argumento parece decisivo contra a igualdade de
oportunidades formal. Neste sentido, tenho dificuldades em aceitar o
falibilismo assumido pelo autor (p. 56), pois não vejo de que maneira esta
objecção pode ser razoavelmente rejeitada pelos defensores da igualdade de
oportunidades formal.
Também me parece ideologicamente importante colocar o debate entre a igualdade
formal e a real no terreno da responsabilidade individual: não nos esqueçamos
que o pensamento de direita, naturalmente a favor da igualdade formal, acaba
sempre por fazer apelo a ideias de responsabilidade individual para justificar
as desigualdades. Ora, fazer apelo à responsabilidade para rejeitar a
discriminação aparente da igualdade formal (que discrimina as pessoas vítimas
da má sorte bruta) coloca os defensores da igualdade formal numa posição
delicada.
No entanto, este argumento da responsabilidade individual pode também ser
formulado contra a igualdade real, já que as medidas como as propostas por
Philippe Van Parijs ou Bruce Ackerman não têm em conta a responsabilidade
individual na distribuição das oportunidades: dar a todos um rendimento
universal sem distinguir as vítimas da má sorte bruta das vítimas da má sorte
opcional (bad option luck) que decorre de escolhas responsáveis também parece
ser discriminatório em relação as vítimas da má sorte bruta. Assim, talvez
fosse mais justo distribuir um rendimento mais elevado às vítimas da má sorte
bruta.
No entanto, até que ponto devemos dar importância à responsabilidade
individual? Embora para um igualitarista seja uma intuição comum considerar que
um indivíduo deve suportar os custos das suas escolhas quando feitas em
circunstâncias de igualdade de oportunidades, sejam elas formais, equitativas,
reais, ou perfeitas, no entanto a verdade é que nem sempre, ou talvez mesmo
nunca, se justifica exigir que os indivíduos suportem os custos das suas
escolhas quando estas os colocam em situações de sofrimento extremo (mesmo
quando são inteiramente responsáveis por elas). Julgo ser importante distinguir
a ausência de oportunidade da oportunidade que não se sabe aproveitar. Neste
sentido, devemos evitar concentrar-nos nas teorias subjectivas ou objectivas da
escolha e perguntar: que ónus é razoável exigir aos indivíduos desfavorecidos
vítimas de más escolhas? Se as consequências da escolha podem ter demasiado
impacto no bem-estar dos indivíduos, podemos dizer que a escolha que leva a uma
situação desesperante não permite uma oportunidade genuína mas formal. Neste
sentido, a igualdade de oportunidades, associada à responsabilidade, deixaria
de ser relevante. O importante é que certas escolhas, quando implicam ónus com
demasiado impacto no bem-estar dos indivíduos, devem ser compensadas pelo
Estado.
Porque os fundamentos da responsabilidade são frágeis e porque o igualitarismo
da responsabilidade pode ser demasiado duro ou demasiado flexível, uma outra
maneira de rejeitar o conceito da responsabilidade como uma justificação moral
das desigualdades é considerar a liberdade como uma justificação alternativa da
responsabilidade. Em vez de perguntar se um indivíduo é responsável pela sua
posição desfavorecida na sociedade, podemos perguntar se a sua situação
desfavorecida na sociedade corresponde à sua escolha livre quanto à orientação
da sua vida. Do ponto de vista da liberdade, de que serve oferecer a
possibilidade de morrer de fome sem poder fazer nada? Em detrimento da teoria
da justiça distributiva fundamentada no conceito de responsabilidade, a teoria
da igualdade proposta por Marc Fleurbaey (2008) faz do princípio de igualdade
de liberdade o seu núcleo ' este princípio funciona como um constrangimento que
tem por finalidade assegurar um nível mínimo de autonomia a todos os
indivíduos, independentemente da responsabilidade que possam ter pelas escolhas
que os colocam em situações desesperantes. Além deste nível mínimo de
autonomia, o aceso a um nível mais elevado de autonomia constitui uma questão
de preferência individual. Esta alternativa está no entanto sujeita à seguinte
objecção: seria uma teoria explicitamente perfeccionista, já que todos os
indivíduos devem atingir um nível mínimo de autonomia graças às políticas
sociais do Estado. Por outras palavras, os indivíduos nunca seriam considerados
responsáveis das consequências das suas escolhas quando estas os colocam em
situação de pobreza extrema, pois nesta situação não podem ser considerados
indivíduos autónomos. Gostaria pois de saber se a igualdade de oportunidades
real, tal como a concebe o Professor Cardoso Rosas, o levaria a abandonar a
noção de responsabilidade individual.
3. Mitigar ou neutralizar as desigualdades?
Gostaria de formular uma última objecção ao autor, em relação à distinção entre
mitigar ou neutralizar as desigualdades. Para o autor, o objectivo da igualdade
de oportunidades é o de mitigar os efeitos provocados pelas desigualdades (p.
53). Um argumento para defender a mitigação e não a neutralização das
desigualdades é precisamente o dos riscos autoritários da neutralização, riscos
que são reais na igualdade de oportunidades perfeita. Mas se somos
igualitários, por que razão apenas mitigar as desigualdades? Por que não tentar
neutralizá-las? Sabemos que os indivíduos não são responsáveis por
desigualdades provocadas pela má sorte bruta. Logo, estas desvantagens são
injustas e por isso devem ser neutralizadas e não apenas mitigadas graças a
impostos. Certamente que o proponente da neutralização não pode insistir em
neutralizar as vantagens pela via institucional, pois isso apenas um regime
autoritário pode fazê-lo. No entanto, nada impede os igualitaristas da sorte de
exigirem que os princípios de justiça também devam informar a conduta pessoal
dos indivíduos, assim como o ethosda sociedade. Esta exigência torna os
neutralizadores moralmente mais coerentes, pois os mitigadores têm de admitir
que não há nada de moralmente incorrecto no facto de contribuírem para aumentar
as desigualdades injustas se depois pagarem impostos para mitigar as
desigualdades injustas provocadas pelos seus comportamentos. Ora isto é
moralmente e psicologicamente incoerente. Dou um exemplo: se eu colocar os meus
filhos em escolas privadas para aumentar as suas oportunidades em terem uma
vida com sucesso, estou a aumentar de facto as desigualdades injustas. Mas
pagar impostos (que contribuam para o financiamento de escolas públicas) para
mitigar as desigualdades provocadas pela minha motivação em favorecer os meus
filhos parece-me uma atitude mais dificilmente compatível com as minhas
convicções igualitárias.
Gostaria pois de perguntar ao professor Cardoso Rosas se não deveríamos, por
exigência de coerência moral, pelo menos em certas situações tentar
individualmente atingir a igualdade de oportunidades perfeita graças às
escolhas que fazemos na nossa conduta pessoal, neutralizando as desigualdades
injustas, em vez de apenas mitigá-las.