Orbae matres: A dor da mãe pela perda de um filho na literatura latina
Orbae matres. A dor da mãe pela perda de um filho na literatura latina Cristina
Santos Pinheiro, Lisboa, fundação Calouste Gulbenkian, fundação para a ciência
e a tecnologia, 2012. 530 pp. ISBN: 978-972-31-1436-2
Virgínia Soares Pereira*
*Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Departamento de
Estudos Portugueses e Lusófonos, 4710-057 Braga, Portugal.
virginia@ilch.uminho.pt
O volume em apreço, da autoria de uma docente da área de Estudos Clássicos da
Universidade da Madeira, Cristina Santos Pinheiro, é o resultado de uma longa
investigação que culminou (mas não terminou) na realização da dissertação de
doutoramento sob o mesmo título. Nas palavras da A., O projecto desta
dissertação nasceu na sequência da união das áreas de Psicologia e de Estudos
Clássicos numa estrutura nova e sem precedentes a que se deu o nome de
Departamento de Psicologia e Estudos Humanísticos. (p. 3). A inesperada
afinidade de interesses entre estas duas áreas e o próprio e acentuado
interesse de Cristina Santos Pinheiro pelo tema da condição feminina e das suas
vivências, da sua força e das suas fragilidades, obtiveram como resultado um
livro admirável e surpreendente, na sua dupla estruturação e na profunda
humanidade que o envolve, que dimana da A. e se comunica ao leitor.
Para tal não deixa de contribuir o horizonte temporal escolhido para palco e
cenário da investigação ' os finais da República e o Principado de Augusto ',
que é um tempo rico de contornos e matizes, de luzes e sombras, de tradições e
de inovações, marcadamente acentuadas no tempo de Augusto no que à reavaliação
moral da sociedade diz respeito, porquanto, como escreve Cristina Pinheiro,
Nesta restauração de costumes que Augusto pretendia, a existência feminina
recebeu atenção singular e as mulheres da casa imperial assumiram uma
importância determinante na criação da imagem pública dos imperadores que lhe
sucederam. (p. 5). Neste tempo, política, arte, religião, literatura e
legislação conjugam-se, diz a A., na definição de papéis sociais e do papel da
mulher, nomeadamente na questão do casamento, da maternidade e da morte.
É com este pano de fundo que o tema se desenvolve ao longo das suas 530
páginas, em duas partes distintas: A Parte I (cerca de duzentas páginas) é de
âmbito histórico e sociológico e ocupa-se da saúde da mulher no que se prende
com a maternidade (e o modo como é vista nas obras de medicina ginecológica), e
aborda ainda questões relativas ao enquadramento jurídico, social e moral da
maternidade, além de tratar de matérias como taxas de natalidade, doenças e
causas de morte entre adultos e crianças, e ainda cerimónias fúnebres. Para
este estudo são convocadas autoridades como o Corpus Hippocraticum,Plínio, o
Velho, Sorano de Éfeso, Celso, que documentam como é antigo o interesse dos
estudiosos pelos gynaikeia(estudos ginecológicos). Esta secção tem a ilustrá-la
um conjunto de 10 quadros que reúnem interessantes informações sobre o tipo e
local de sepultura de crianças e dados numéricos provenientes de escavações
arqueológicas, realizadas em várias zonas e relativas aos primeiros séculos
imperiais; acresce que todos estes dados são recolhidos em fontes perfeitamente
identificadas.
A Parte II é de feição eminentemente literária e começa por traçar um quadro
panorâmico sobre a teorização retórica do lamento nos autores clássicos, a que
se segue um olhar atento sobre a expressão da dor e do luto na literatura
latina, revisitados através do estudo de algumas obras de três vultos da maior
envergadura poética: Virgílio, Ovídio, Séneca.
É difícil escolher entre estas duas secções tão distintas, mas ambas tão ricas
de informação, de perspetivas, de sensibilidade poética, de humanidade. Entre
os realiae a sua representação literária, a dissertação traz ao nosso
conhecimento não só as mulheres que sofreram por serem mulheres, mães, e,
sobretudo, matres orbae, enquadradas numa sociedade que tendia a reconhecê-las
sobretudo como garante da tradição e perpetuação familiar, mas também a dor das
mulheres da tradição mítica que a literatura representou. Para esta segunda
parte, são carreados, num primeiro capítulo, estudos teóricos sobre o treno, o
lamento, a consolação (documentados em algumas obras de Cícero, Rhetorica ad
Herennium, Quintiliano, Séneca, Valério Máximo). Segue-se uma detida análise do
sofrimento representado nas principais figuras femininas da Eneida, que
refletem a mundividência do Mantuano e constituem como que o seu implicit
comment:a dor de Dido, amante abandonada que não teve filhos; os lamentos
desesperados da mãe do jovem Euríalo, caído em combate (a este lamento e às
suas fundas implicações no universo feminino e épico do poema, são consagradas
cerca de vinte páginas de minuciosa e sensível análise estilístico-literária);
Juturna e a dor perante a morte iminente do irmão Turno; Evandro e Mezêncio
chorando a morte dos filhos Palante e Lauso, respetivamente, caídos em combate;
outras tantas mortes que constituem presença inevitável num poema épico
caracterizado por uma forte componente guerreira. Note-se que a ocorrência, na
Eneida,de tantas mortes ante diemtem sido objeto de inúmeras e por vezes
contraditórias análises, perspetivas, conclusões, embora todas elas redutíveis,
em última análise, às duas visões dicotómicas que têm norteado os estudos do
eposvirgiliano, uma épica e optimista, outra pessimista e profundamente
trágica. Mas a A. traduziu muito bem esta dupla visão, só aparentemente
paradoxal. Como escreve, na p. 276, a concluir o capítulo consagrado à Eneida:
Para nós, que lemos a Eneidaneste início do século XXI, o luto e o sofrimento
carregam um peso negativo que recai sobre quem deles beneficia. Para Vergílio e
para os Romanos do seu tempo, são elementos intrínsecos da vitória e um preço a
pagar pelo triunfo, é certo, mas também pela conquista da paz. É a parta
uictoriis paxde que Augusto se vangloria nas Res Gestae(2.43-44).
Depois da Eneida,a A. faz incidir a sua atenção em várias matres orbaee outras
figuras dolorosas do universo ovidiano das Metamorfosese dosFastos. Refiram-se:
a dor de Clímene e das Helíades perante a morte de Faetonte, o sofrimento de
Agave e a morte de Penteu, Ino e Atamante, Ceres e o doloroso sentimento de
perda pelo rapto de Prosérpina; a infinda dor de Níobe, que perdeu doze filhos,
seis filhas e seis filhos vigorosos (como lembrou Homero, no final da Ilíada)
e a sua transformação em pedra; a vingança de Procne e o assassínio dos filhos;
Alteia e as irmãs de Meleagro, Alcmena (mãe de Héracles), a nora Íole e o
relato doloroso da transformação da irmã, Dríope, em pedra; a suprema dor de
Hécuba, que viu morrer todos os seus filhos (cerca de vinte páginas dedicadas a
esta figura mítica que ilustra paradigmaticamente, mais do que qualquer outra,
a inconstância da fortuna); são ainda objeto de atenção duas outras figuras
míticas, Vénus e Aurora. Cristina Pinheiro, procurando delinear os contornos
dominantes em todas estas figuras, conclui que são convencionais os traços da
representação ovidiana do amor materno, que a dor infinda faz com que a mulher
se comporte como um animal ou fera, e que a mulher orbatanunca deixa de ser
sentida como um ser inútil à sociedade, pois a perda de um filho acaba por
afetar a já frágil dignitassocial da mulher.
O último grande capítulo da dissertação é dedicado a Séneca e às figuras
femininas da sua dramaturgia, nomeadamente Andrómaca, Hécuba e Medeia, símbolos
inquestionáveis da maternidade trágica. Uma análise profunda das Troades(As
Troianas) comenta a tragédia das duas primeiras mulheres, Andrómaca (mãe de
Astíanax) e Hécuba (mãe de Políxena). São mães inconsoláveis que perderam os
seus filhos, vítimas de vingança no contexto atroz da guerra. Por sua vez, a
tragédia Medeiarepresenta, como todos sabem, a mulher que se privou dos filhos,
por vingança, por amor.
Estes são os grandes capítulos que compõem o volume, que encerra com uma breve
conclusão, a que acrescem uma Bibliografia (pp. 487-508) e um Index Locorum
(pp. 509-530), que são de regra, sem dúvida, e da maior utilidade numa obra de
recorte académico.
A extensão do volume não nos permite apresentar dele uma visão mais
circunstanciada. Mas importa dar particular ênfase a alguns aspetos dignos de
nota: o interesse das referências médicas e jurídicas relativas ao tema em
estudo, a abundância de notas esclarecedoras e atinentes às fontes consultadas,
a elegância da escrita e a acribia das constantes análises estilístico-
literárias e dos comentários de inúmeros passos extraídos de Virgílio, Ovídio e
Séneca, que ilustram de forma magistral as múltiplas variáveis da condição
feminina: a fragilidade da mulher, a maternidade, a frustração, a dor, a
vingança, etc Nas palavras de Cristina Santos Pinheiro, que encerram este seu
estudo (p. 485): A mater orba é uma figura aterradora que representa aspetos
inquietantes da humanidade: o sofrimento, a frustração do futuro, a
imprevisibilidade da fortuna. Mas é precisamente devido a essa dimensão humana,
é porque qualquer indivíduo se vê representado na imagem da mãe que chora a
morte do filho, que ela constitui um dos motivos mais patéticos e apelativos da
arte e da literatura.
Assim termina este valioso e surpreendente estudo. Ele comprova, sem dúvida,
uma constante dos estudos que se acercam da matéria e dos tempos clássicos: a
sua perenidade, a sua vitalidade, a sua capacidade de continuar a interpelar-
nos. Olhar o mundo que nos rodeia sem conhecer os Clássicos é possível, segundo
alguns, mas a acuidade desse olhar tende forçosamente a perder-se.
Campus de Gualtar
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