Palimpsestos e travessias
AMARAL, Ana Luísa, Próspero Morreu. Poema em acto, Lisboa: caminho, 2011.
Palimpsestos e travessias
Ana Gabriela Macedo*
*Dir. CEHUM, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho,
Braga, Portugal.
gabrielam@ilch.uminho.pt
Falar da poesia de Ana Luísa Amaral e mais ainda deste seu Poema em Acto,
intitulado Próspero Morreu, é para mim um gosto muito particular, mas significa
também a evocação pungente de um amigo comum que a ele está indissoluvelmente
ligado, o Paulo Eduardo Carvalho. Urge recordá-lo aqui, porque a sua memória
atravessa este texto cuja leitura em cena, que partilhei, ele projectara[1].
Acto Único: Uma ilha. Na ilha uma fogueira. Ao lado da fogueira, três
mulheres: Bárbara (a escrava), Penélope e Ariadne. Ao fundo, em lado
esquerdo, Luiz. Mais atrás, escondido atrás de Luiz, Teseu. A um
canto superior, escondido atrás de todos, Caliban. Do lado direito, à
boca de cena, de máscara branca, Ariel. (Próspero Morreu, Acto Único,
p.11)
1º Andamento
Palimpsestos e Intertextualidade
Neste seu Poema em Acto surge---nos Ana Luísa Amaral dialogando consigo
própria, algo que faz com mestria ' o saber e a experiência poética adquiridos
ao longo de 14 livros de poesia publicados, 4 textos poéticos de literatura
infantil, 3 de adaptação dos clássicos para a infância, e quatro obras de
tradução poética. Um coro de vozes diferenciadas onde ecoa sempre mais forte
aquela que aprendemos a distinguir como a da poeta ' polifónica sempre,
desconcertante por vezes, e matizada com uma sábia dose de ironia e de
travessura, que raramente é nomeada na sua poesia pela crítica, embora seja, a
meu ver, uma das suas qualidades mais singulares. E indissociável da
intertextualidade, já se vê. Mas sobre isso, mais falaremos adiante.
Desde sempre, e digo-o orgulhosa porque acompanhei a génese da primeira obra,
Minha Senhora de Quê, a que se seguiu, Coisas de Partir, Epopeias, E Muitos os
Caminhos, Às Vezes o Paraíso, Imagens, Imagias, a Arte de ser Tigre, A Génese
do Amor, e muitos outros, até ao mais recente Vozes e ao poema dramático que
aqui analisaremos, uma densa teia' de vozes, a palavra nunca monológica, mas
antes sempre em diálogo consigo mesma, e com vozes outras da tradição poética,
conceptual e discursivamente, inter- e intra-textualmente, fazendo-se e
dizendo-se em espaços e tempos outros, tornados presente pelo gesto e pelo
ritual da enunciação, atravessandotempos e lugares ora sagrados, ora profanos,
ora míticos, e travessamentebrincando, num piscar de olho à tradição, através
do gesto confesso da apropriação especular, do gosto de dizer outramente a
palavra partilhada, (do avesso, como a autora gosta de dizer), o palimpsesto
consentido, as revisitações declaradas.
E veja-se assim três exemplos distintos: de Vozes, Palimpsesto (p. 45), de
Epopeias Quase de Tecelagem (p.33) e de Minha Senhora de Quê,
Intertextualidades (p.14).
2º Andamento
Travessias
Na poética de Ana Luísa Amaral a palavra é sempre encenada, e sempre o foi,
desde o primeiríssimo Minha Senhora de Quê que ostenta na capa uma iluminura
representando três mulheres, a partir de um códice medieval germânico, o Codice
de Manesse, reunindo cantigas de amor (o Minnesang), deixando assim implícito o
diálogo entretecido entre a voz da autora e as vozes ou melhor talvez,
ossilêncios dessas senhoras, construindo assim, sílaba a sílaba, verso a verso,
um universo polifónico e desvendando a linha genealógica da palavra no
feminino. E há claramente neste livro o eco de uma outra voz convocada /
homenageada, a de Maria Teresa Horta em Minha Senhora de Mim(1967) e, de certo
modo, a autoria colectiva das Novas Cartas Portuguesas também aqui se
pressente.
A palavra poética de Ana Luísa Amaral ocupa espaço cénico, tem densidade
dramática, produz ecos e reverberações, tem uma fisicalidade corpórea, uma
sensorialidade que a torna quase palpável. Haveria umas centenas de poemas a
coadjuvar esta minha afirmação, mas veja-se a título de exemplo, do livro
Epopeias, Leite-Creme (p.46).
Não nos tomará assim de surpresa esta sua obra dramática, Próspero Morreu, se
atentarmos, desde logo, nas suas adaptações dos clássicos para a infância e
demais literatura infantil com que nos surpreende (entre as quais ressalto a
História da Aranha Leopoldina e Gaspar o Dedo Diferente). Creio porém que é no
livro A Génese do Amor (2005), onde a poeta se propõe reaprender o mundo / em
prisma novo, assim nos diz, e que se entretece de diálogos múltiplos em que o
amor é simultaneamente sujeito e objecto ' que mais directamente achamos a
génese deste seu Próspero, como um longo poema sobre o amor, ou, se quisermos,
uma inversa' Tempestade. Assim dito pela voz de Penélope:
Deste amor que aqui vejo,
A quem pude dizer:
não é poema de amor
O que te deixo,
Nem, apesar do resto,
Pequena antevisão de despedida,
Ou terror simples
De não saber nada?'
A quem, com quem posso falar?
Se eu própria me perdi
Em esperas e tão largos bastidores
E nem a mim me concedi lugar
(p.34)
3º Andamento
Do amor e do seu inverso
Reitero assim que a poética de Ana Luísa Amaral é uma poética do amor e de uma
tradição recuperada do avesso, dita no feminino, transgressivamente assumida
na sua voz onde se escutam, consentidas, vozes outras: de Sophia, de Dickinson,
de Rich, assim como as vozes de Shakespeare, de Byron ou a de Camões. Do amor e
do seu avesso nos falam em Próspero,as vozes, os ecos e as sombras.Como a de
Luiz (Vaz de Camões) dirigindo-se à escrava Bárbara:
Quero esquecer a voz
Que de dentro teima em voltar,
Essa de quem amei e já esquecera
Deixa-me que segure a sombra do teu rosto,
Nela me afunde, inteiro.
Que eu me possa insistir do teu olhar,
Porque metade de mim não foi já teu,
Porque metade de mim já não é teu '
(p.37)
Ou, como diz Ariadne, a do Fio, desafiadora de labirintos e minotauros: Que
mais fazer / se as palavras queimam / e tanta coisa arde em tanta coisa /
sarças ardentes do avesso / o fogo em labaredas que mais / fazer? (p.37).
E assim de ecos, sombras, vozes, texturas, teias, travessias e reflexos
múltiplos se constrói este Próspero Morreu onde Shakespeare é reinventado,
tornado presente e quiçá feminino, pela voz de Miranda, que é também a de
Penélope, a que tece infatigavelmente, alheia a desenganos e assombrações,
ciente apenas da sua verdade. Penélope, Ariadne, Cassandra (ausente na voz mas
presente no texto), três portentosas figurações do feminino que imperam nesta
desmitologização mítica que Ana Luísa Amaral sabiamente constrói. A ousadia de
enfrentar o poder, a perseverança na luta, a fé na palavra e na sua capacidade
de dar a ver ou ainda subverter o mundo, a com/paixão, são partilhadas por
todas elas e sempre presentes numa poética a um tempo visceralmente romântica
(num sentido byroniano) e marcadamente clássica, que não canónica.
A tudo isto acresce, o riso paródico, a ironia fina, desconstrutora de mundos
feitos e perfeitos. A sombra de Caliban perpassando no texto. Pois, como diz a
poeta:
Não foi a aura da sua magia
Aquela que fez outro Caliban.
Foi a magia do amor, a sua arte,
Que o transformou em ser de ouro [e paixão,
O fez falar palavras proibidas.
E a violência que o conheceu [informe,
feio, escuro,
Ele a trocou pela bênção do amor.
E a troca foi fatal.
(p.50)
Importa assim desfrutar deste Próspero Morreu Poema em Acto, e reconhecer-lhe
as múltiplas vozes, ecos e tessituras.
Notas
[1]Esta recensão provém do texto de apresentação do livro de Ana Luísa Amaral
na Livraria 100ª Página, Braga, em Dezembro de 2012. A leitura encenada da obra
referida teve lugar na Biblioteca Almeida Garrett, em Junho de 2010, e foi
encenada por Nuno Carinhas. O Paulo Eduardo Carvalho falecera em Maio do mesmo
ano.
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