Portuguese Film, 1930-1960: The Staging of the New State Regime
VIEIRA, Patrícia, Portuguese Film, 1930-1960: The Staging of the New State
Regime, New York / London: Bloomsbury, 2013, 262 pp.
Sérgio Guimarães de Sousa*
*Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga,
Portugal.
spgsousa@ilch.uminho.pt
Sempre que está em pauta investigar a cosmovisão sociopolítica do Estado Novo,
as fontes de análise privilegiadas provêm em geral, como seria de resto
expectável, de material escrito (discursos, legislação, entrevistas, ensaios,
livros, etc.). Há, porém, quem, não descartando, como é evidente, a relevância
dessas fontes, seja capaz, como é o caso muito notório deste estudo, de
abordar, com rigor e pertinência, os diversos polos que perfazem a
mundividência estadonovista a partir de uma outra perspetiva não menos
reveladora da sociedade de então: a multifacetada perspetiva do cinema. E não
por acaso, as análises baseadas na filmografia tendem de há uns anos a esta
parte a adquirirem uma centralidade em qualquer reflexão em torno da Ditadura.
Porque, como sabemos, esta não descurou o poder representacional das inovações
formais proporcionadas pelo discurso audiovisual. Por outras palavras, o
cinema, nas suas diversas modalidades (cinema de propaganda, filmes históricos
ou sobre o império colonial, etc.), irrompe enquanto filiação do regime. E o
que o estudo de Patrícia Vieira[1] se propõe fazer consiste precisamente em
analisar os mecanismos de afiliação do cinema dessa época, condição para
compreender as bases pelas quais se estrutura a lógica do regime no campo
cinematográfico. E a partir daí entender os efeitos ideológicos que o cinema
estadonovista, concebido como um hino identitário, foi capaz de induzir no
público: In this study we looked at the cinematic reproduction of Salazarist
ideology and at the portrayal of New State mythology and value in film. One of
the tasks facing Portuguese society today is to undertake a thorough
examination of the ideals of the regime. This book aims to contribute to the
ongoing process of de-idealizing the emblematic heroes of Salazarism by
analyzing their depiction in film (p. 236).
Sendo o cinema o discurso no interior do qual os valores sociais politicamente
preconizados se podem afirmar com mais ênfase, caberia, por assim dizer,
messianicamente à cinematografia lusa, elevada ao estatuto de indústria,
concentrar-se naquilo que (supostamente) definiria a realidade portuguesa,
enfatizando os ideologemas dessa realidade unívoca (sonegando, claro, a faceta
sinistra do regime); e, em consequência, repudiar sem concessões como espúrio
(digamos) tudo o que lhe fosse estranho, por forma a evitar contaminações
indesejáveis (estranheza ramificada em aspectos como a modernidade simbolizada
pela cidade, a emancipação feminina, o pensamento crítico, e por aí fora,
aspectos sintomaticamente reduzidos de modo a deles não restar senão uma ideia
nefasta em nome de um cinema que perfilha uma visão crítica do mundo moderno).
Se em Portugal (sejamos justos) a intervenção do Estado não foi em boa verdade
tão drástica como na Alemanha nazi, na Itália fascista ou mesmo na Espanha
franquista, não menos certo é o facto de o regime ter atuado sem complexos nem
restrições. O discurso cinematográfico, com efeito, padeceu de apertada
censura, afora a constrição não pouco despicienda de somente as obras
consentâneas com o ideário estadonovista merecerem subvenção estatal (cf. p. 8
e ss.). Só assim, aliás, se percebe que as comédias, onde sobressaía um país
pobre, porém alegre e, mais, alegremente regido por um estrutura social ante-
moderna, não só não refletissem a situação nacional como igualmente rasurassem,
como se ser português fosse pertencer a outro planeta, a internacional (o
apogeu das comédias, onde não se fala de convulsões bélicas, coincidiu com a II
Grande Guerra, recorde-se), distorcendo a representação da realidade (cf. p.
13).
No primeiro capítulo, Propaganda in the New State: The May Revolution(A
Revolução de Maio), a A. procura dilucidar as diferentes acepções existentes
em torno do conceito de propaganda, contrapondo a de Salazar (propaganda como
meio para divulgar a verdade) à do seu propagandista-mor, António Ferro (a
propaganda enquanto versão ideal da realidade). Mas este capítulo inicial
procura em especial analisar com atenção os expedientes empregues em prol da
persuasão ideológica no filme A Revolução de Maio. Como é o caso da
intercalação no seio da trama ficcional de imagens documentais, com uma
estratégia clara: Documentary footage forms a bridge between fact and fiction,
and in this process it undergoes a double inversion. The documentary scenes, a
version of real events, are first fictionalized through their inclusion in the
filmic narrative, and then reintroduced into the world by the power of art, in
order to be disseminated in society. The result of this mutation is a
transfiguration of reality itself, which should adapt to the model put forth by
the movie (p. 35). Neste sentido, afigura-se particularmente relevante o
recenseamento que P. Vieira faz das técnicas de encenação através das quais o
documentário enaltece a figura de Salazar de modo a instigar a identificação da
figura do líder com o povo. Leia-se: the dictator should feellike he is part
of the people, and more importantly, the people should feellike they are the
dictator, which will only happen if the dictactor becomesthe people and the
people becomes dictator, albeit only transiently (p. 38). Nada que o cinema
alemão de Leni Riefenstahl, em Der Sieg des Glaubense em Triumph des Willens,
não ensinasse já (cf. p. 40).
O segundo capítulo, Poets on the Screen: Bocage, Camões, and the Heroes of the
Regime, visa estudar dois filmes de Leitão de Barros ' Bocagee Camões' e neles
rastrear o modo como se operacionaliza a intenção de António Ferro de se servir
da literatura nacional, entendida como valor patrimonial a cultivar, sendo as
grandes figuras dessa literatura, declinadas em versão nacionalista e
patriótica, dignas da condição de heróis. Ou, como competentemente sustenta a
A., o que se fez foi realizar os filmes a partir de uma cadeia metonímica cujo
ponto culminante consistiu na representação dos autores e da sua vida. Obra e
biografia seriam desta forma coextensíveis; e isso de tal maneira que esta
faria as vezes daquela. Segundo esta perspetiva biografista, com a qual a obra
se lê pelo monóculo da vida, ilustradora do legado (pós)romântico no Estado
Novo, aquela reduz-se metonimicamente a pouco mais não ser do que uma súmula de
episódio conhecidos da biografia dos poetas (e não forçosamente fidedignos). De
outro modo: estes, no ecrã, adquirem a centralidade de heróis individuais (cf.
p. 62-63). E como seria de esperar, o Estado Novo cedeu bem depressa à tentação
de mitificar Camões (e não apenas) em função do seu ideário. Camões foi, com
recurso a alguma sofisticação estética, (re)visto, ou melhor, dado a (re)ver,
como herói da pátria, ratificando significados político-ideológicos. E o cume
do heroísmo estaria, evidentemente, reservado à figura de Salazar, o herói dos
heróis. Curiosamente, Camões e Bocage, como aponta com inteira justeza a A.,
não encaixam sem falha no perfil delineado pelo Estado Novo.
O problema está em que figuras como a destes poetas (exemplos suficientes do
artista marginal, quer dizer, avesso à ordem social e às constrições cívicas,
castradoras do seu irreprimível ímpeto sentimental) significam na verdade
também o que mais receia o regime: volubilidade amorosa, que é como quem diz, o
ascendente das emoções sobre a sábia razão. O que não é sem dificultar a
apropriação simbólica. Em conformidade com o salazarismo, como esclarece a dado
momento P. Vieira, The excessive sentimentality and lack of tenacity of the
Portuguese led to national decline, in the same way that Camões's and Bocage's
romantic fickleness caused them countless troubles, despite stimulating their
poetic creation (p. 69). A solução passou por o cinema aproveitar esse lado
menos razoável de Camões e Bocage para admoestar a presumível predisposição
leviana e inconstante do povo português. O intuito pedagógico-moralizador
adivinha-se sem dificuldade: reforçar a fidelidade aos credos cívicos e
ideológicos propalados pelo Estado (cf. p. 71). Credos superiormente
corporificados por Salazar, intérprete de verdades sobre as quais se erigiria a
nação portuguesa (cf. p. 83).
Quanto ao terceiro capítulo, Rural Life in Cinema: In Defense of a Natural
Society, concentra o essencial da sua atenção nos chamados filmes regionais
ou folclóricos', o mesmo é dizer, aqueles filmes, hoje perfeitamente
historicizáveis como etnográficos, não obstante tratarem-se de versões
edulcoradas da vida campestre, contextualizados no universo rural tão caro a
Salazar. De que modo se relacionam tais filmes com o salazarismo? Traduzem, à
custa de uma idealizada imagem do campo como locus amoenus, a apologia de uma
salutar sociedade natural. No mundo rural persistiria, pois, um edificante
espírito comunitário em flagrante contraste com esse lugar de perdição, porque
associado às paixões funestas e aos desvarios, que dá pelo nome de cidade. O
campo, numa palavra, seria o espaço por excelência, a bem do
reaportuguesamentode Portugal, onde se tornaria possível, e sobretudo
desejável, repudiar com ênfase as vicissitudes da urbe e decalcar a vida da
nação da (imutável) natureza. Veja-se: it was appropriate for New State films
dealing with the rural world to highlight its advantages over urban culture, to
reproduce natural rhythms, and to avoid artificiality. This movie's educational
and propagandistic value is derived precisely from their faithful
representation of rural life, a social model for all Portuguese people (p.
82).
O quarto capítulo, The Miracle of Salazarism: Fátima, Land of Faith(Fátima,
Terra de Fé), incide sobre a dicotomia fé / razão, presente no debate
referente ao fenómeno das aparições fatimitas e que se arrastava desde a
Primeira República. Com o filme Fátima, Terra de Fé, o regime propôs-se como
que encerrar a discussão, propondo uma hábil conjugação das duas posturas,
evitando antagonismos drásticos. Convirá neste ponto ter em mente o seguinte:
The New State, which is presented as an alternative to Republicanism, is
suited to the national situation, since it is the political expression of the
harmony of reason and faith (p. 134). O que estava em jogo, como muito bem
salienta ainda P. Vieira, consistia no receio do niilismo, visto por Salazar
como a antecâmara do comunismo (cf. 137-143).
O quinto capítulo, Gender Stereotypes in New State Cinema, aborda a questão
da imagem da mulher na filmografia estadonovista. O cinema tratou, claro está,
de exaltar o lugar, bem subalterno, a que o regime (patriarcal na essência)
restringia a condição feminina. Mulher louvável seria a esposa exemplar e, por
extensão, a mãe de família impecável. Resultou daqui a desvalorização, senão
mesmo a extrema marginalização, das mulheres emancipadas. O que se constata no
destino pernicioso (ostracismo, exílio) ou até trágico (a morte) reservado nos
filmes às mulheres insubmissas ao modelo de dominação masculina. Como foi
seguramente o caso das fadistas (dir-se-iam o reverso obsceno da virtuosa
camponesa). Tanto mais que em não poucos fados sobressai a expressão do
sofrimento enquanto prazer masoquista, sendo esse gozo dificilmente articulável
com crenças e expectativas ancoradas nas ideias de trabalho, moderação e
perseverança, como se percebe sem custo (cf. p. 166).
O sexto capítulo, The Empire as Fetisch: Spell of the Empire(Feitiço do
império), aquele que me parece ser o capítulo culminante do livro, com base na
leitura que faz de Feitiço do Império(António Lopes Ribeiro), oferece-nos a
visão ultramarina do regime. Uma visão em que as ordens teórica e cultural se
acham imbuídas de ideologia imperial. Ou seja, Portugal como, digamos,
substância nacional coextensível às colónias (e supostamente a bem da paz
perpétua e do progresso irrestrito dessas colónias); e, assim sendo, a
perspetivação da nação como realidade robusta com legitimidade para reivindicar
um lugar no mundo. E esse lugar destacável no mundo (e, em rigor, do mundo)
seria amplamente justificado por essa monumental territorialidade de referência
com o nome de colónias, o que não estaria ao alcance de nenhuma outra nação.
Colónias essas alvo, por isso, de uma compreensível visão fetichizada, conforme
sustenta com perspicácia a A., socorrendo-se, e bem, de Freud. Quer dizer, as
colónias, com os seus territórios até certo ponto (o do olhar luso, em
particular aquele acostumado a tudo contemplar a partir da remota aldeia)
incomensuráveis, cada qual com as suas etnicidades, funcionariam na proporção
de uma compensação, tal como acontece na lógica do fetiche. Significou isto, em
termos práticos, que as decisões adoptadas relativamente às colónias were
based upon a virtual empire, an illusory object conceived as a caricature of
reality. In other words, what was at stake was not something concrete and
palpable, but rather a fetish created by the fetishist's fantasy as a
replacement for the lost object (p. 186).
E compreende-se sem dificuldade a razão de semelhante atitude: What is at
stake here is Portugal itself, whose aspiration of becoming a powerful nation
in economic and political terms depended, [...], on the colonies. Losing the
overseas empire would mean losing the country itself, i.e., renouncing the
conception of the nation that the New State disseminated. The overseas
territories supplemented the mainland and sustained an image of a country that
did not really exist. Using freudian terminology, the colonial empire
functioned as a fetish. The colonies simultaneously hid and revealed the
regime's inability to produce a nation that corresponded to the magnificent
idea of Portugal created in its leader's speeches. The angst associated with
the loss of the overseas possessions can therefore be explained by a fetishist
fear of ruining this vision of the country and, consequently, the national
project outlined by the New State (p. 183). Portanto, através das colónias
Portugal compensaria (ilusoriamente) a sua insignificância geopolítica no
concerto das nações desenvolvidas, daí o receio imenso de carecer delas.
Without the empire-fetish, the New State ' como escreve P. Vieira ' would be
forced to acknowledge the reverse side of its nationalism and face a suddenly
emasculed Portugal, which would not have a penis, the attribute of other bigger
and stronger countries. Salazarism's phallogocentric discourse, inherited from
centuries of imperialism, could not survive this reduction of Portugal to its
true dimensions (p. 184). E o cinema, instrumento de propaganda privilegiado,
conforme assinala a A. em Feitiço do Império, refletiu exemplarmente a
fetichização do império (seja-me concedido, já agora, um parêntesis para notar,
dada a pertinência hermenêutica revelada por P. Vieira no uso do registo
psicanalítico, que talvez não tivesse sido irrelevante operar
psicanaliticamente a uma escala menos reduzida. Isto é, talvez se revelasse
pertinente acrescentar, pelo menos,o contributo lacaniano. O que permitiria a
compaginação da figura de Salazar com a possibilidade operativa de um conceito
como o Nome-do-Pai, por exemplo).
O sétimo e último capítulo, The Spirit of the Empire in Chaimite, debruça-se
sobre a ênfase, como forma de consolidação política, concedida por Salazar à
noção de espírito. Quer dizer, à presunção de uma superioridade moral, a qual o
ditador pretendia exportar para África. Noutros termos, ao invés da ganância
materialista, o que se apregoava era a prevalência de uma realidade espiritual
sob a forma de superioridade moral através da qual os portugueses seriam
capazes de superarem os povos confinados ao condenável materialismo. Nesta
força espiritual residiria a possível aglutinação hegemónica dos diversos povos
do império sob uma mesma ' e intransigente ' orientação.
Concluindo, o estudo de P. Vieira, cuidadosamente conduzido do ponto de vista
metodológico, por partir da análise rigorosa do contexto e não se abster de
recorrer a documentação histórica, estudo assente numa progressão argumentativa
sólida e, logo, eficaz e, é preciso também realçar, baseado num corpus, ainda
que um tanto restrito, bem escolhido, constitui, a vários títulos, uma
investigação digna da maior relevância. Desde logo porque se boa parte do que
nele se lê seria presumível ' ninguém duvidará, creio eu, da vertente
ideológica do cinema sob a égide do Estado Novo ', a verdade é que se trata de
uma abordagem capaz de aprofundar, por vezes bem decisivamente, os meandros,
incluindo os menos explícitos, dessa ideologização da sétima arte. E ainda
porque se trata de um estudo que vem mostrar o que talvez não soubéssemos com
tanta clareza: que se no Estado Novo o cinema e a ideologia em vigor caminharam
sempre lado a lado, isso aconteceu mesmo (ou talvez sobretudo) quando o regime
caminhava já sob visíveis ruínas. E reconheça-se que P. Vieira não se limitou a
teorizar. Na especificidade da relação entre Ditadura e cinema, a A. soube com
inteligência cruzar saberes e propostas de leitura convincentemente
argumentadas a cada passo e não raro clarividentes. Ou seja, não há como não
ver em Portuguese Film, 1930-1960: The Staging of the New State Regime a
concretização assaz competente, porque informada e muito capaz do ponto de
vista exegético, de um trabalho de referência no domínio da História e no dos
estudos cinematográficos.
Notas
[1]Numa primeira edição, em português: Cinema no Estado Novo: A Encenação do
Regime, Lisboa: Colibri, 2011.
Campus de Gualtar
4710-057 Braga
Portugal
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