Grupos consonânticos na escola: desenvolvimento fonológico e conhecimento
ortográfico
1 Introdução
Na sequência do desenvolvimento dos modelos fonológicos multilineares, tem sido
realizada, desde os anos 80, investigação sobre a aquisição de diferentes tipos
de grupos consonânticos em várias línguas do mundo, particularmente no contexto
da observação do modo como as crianças adquirem a estrutura silábica da(s) sua
(s) língua(s) materna(s) (entre outros Fikkert, 1994; Freitas, 1997, 2003;
Rose, 2000; Freitas & Rodrigues, 2003; Goad & Rose, 2004; Fikkert &
Freitas, 2004; Almeida, 2011). Análises propostas para os vários tipos de
sequências consonânticas presentes nas gramáticas-alvo foram testadas em dados
recolhidos em várias fases do desenvolvimento fonológico infantil, tanto em
crianças monolingues como bilingues. Diferentes ordens de aquisição e
diferentes estratégias de reconstrução têm permitido contribuir para a
identificação das naturezas distintas dos vários grupos consonânticos
estudados. Paralelamente, múltiplos estudos têm disponibilizado informação
sobre a aprendizagem da ortografia nos primeiros anos de escolaridade (para
dados relativos ao português, cf. Pinto, 1997; Alves Martins & Nisa, 1998;
Miranda, 2007; Veloso, 2010), sendo tradicionalmente mais trabalhada a dimensão
segmental do que a silábica. No entanto, não têm sido exploradas possíveis
correlações entre desenvolvimento fonológico e consolidação do conhecimento
ortográfico, dimensões do processamento linguístico ainda em desenvolvimento
nos primeiros anos do percurso académico infantil. Assim, para a realização do
estudo relatado no presente artigo, definimos os seguintes objetivos: (i)
identificar o grau de sucesso na produção de dois tipos de sequências
consonânticas em português europeu (doravante, PE), os Ataques ramificados
(prato; bloco; fruta; flor) e os grupos consonânticos designados na literatura
como problemáticos (pneu; afta; apto; amnistia; advérbio) por violarem
princípios de boa formação silábica (Barbosa, 1965, 1994; Câmara, 1970, 1971;
Mateus & d’Andrade, 2000); (ii) contribuir para a discussão sobre possíveis
correlações entre desenvolvimento fonológico e conhecimento ortográfico, no
percurso académico das crianças no 1º Ciclo do Ensino Básico.
Os Ataques ramificados em português são constituídos por sequências de uma
obstruinte em C1 (oclusiva ou fricativa) seguida de uma líquida em C2 (lateral
ou vibrante). Estas sequências consonânticas obedecem a princípios universais
de boa formação silábica (Princípio de Sonoridade; Condição de Dissemelhança;
cf. Selkirk, 1982/1984 e Blevins, 1995; para o português, veja-se Vigário &
Falé, 1994; Mateus & d’Andrade, 2000; Bisol, 2005; Veloso, 2006), sendo
consideradas tautossilábicas e, como tal, representadas no domínio do Ataque de
um mesmo nó silábico ([[C1C2]ataque[V]núcleo]sílaba). Nos grupos consonânticos
problemáticos (pneu), as duas consoantes são consideradas heterossilábicas por
exibirem epêntese vocálica obrigatória no português do Brasil (doravante, PB) e
opcional no PE (pneu [pinéw] no PB e [p?néw] no PE) e por violarem princípios
de boa formação silábica: em todos os casos, não existe preservação da
diferença mínima de grau de sonoridade entre os dois membros de cada grupo, o
que implica a violação da Condição de Dissemelhança; em alguns casos
(fricativa+oclusiva; oclusiva+oclusiva; nasal+nasal), não se regista subida no
grau de sonoridade das consoantes adjacentes, o que viola o Princípio de
Sonoridade. Assim, neste último caso, Mateus e d’Andrade (2000) propõem que as
duas consoantes sejam representadas no domínio de Ataques não ramificados de
sílabas adjacentes: a primeira consoante é Ataque de uma sílaba com Núcleo
vazio, hospedando este a vogal epentética; a segunda consoante é Ataque de uma
outra sílaba, adjacente à direita ([[C]ataque[∅]núcleo]sílaba + [[C]ataque
[V]núcleo]sílaba). Esta representação contrasta com a assumida para as
sequências de obstruinte+líquida, que, por não violarem princípios de boa
formação silábica, são analisadas como tautossilábicas, representadas no
domínio do nó Ataque ([C1C2]ataque[V]núcleo]sílaba). Em termos de frequência,
vários autores portugueses e brasileiros têm referido, desde os anos 60, a
frequência mais elevada de Ataques ramificados no português relativamente à dos
grupos consonânticos problemáticos. Veja-se a síntese formulada em Veloso
(2003), que visa uma caraterização de ambas as sequências consonânticas:
(1) Síntese das caraterísticas diferenciadoras dos Ataques ramificados e de
grupos consonânticos problemáticos (Veloso, 2003)
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
|_____________________________________________________________________________|________________________Sequências_consonânticas_de_TIPO_I_______________________|_______________Sequências_consonânticas_de_TIPO_II______________|
|Combinações_segmentais_típicas____________________________________________|Obstruinte+Líquida________________________________________________________________|Obstruinte+Obstruinte_Obstruinte+Nasal____________________________|
|Estatuto silábico de acordo com as descrições fonológicas (Câmara, 1970,|Tautossilábicas |Heterossilábicas |
|1971, 1977; Mateus | | |
|& d’Andrade,_1998,_2000)_______________________________________________|___________________________________________________________________________________|__________________________________________________________________|
|Frequência |Frequentes |Raras |
| |(Barbosa, 1965, 1994; Câ- |(Barbosa, 1965, 1994; Câ- |
| |mara, 1970, 1971; Vigário |mara, 1970, 1971; Vigário |
|_____________________________________________________________________________|& _Falé,_1994;_Freitas,_1997)__________________________________________________|& _Falé,_1994;_Freitas,_1997)_________________________________|
|Princípio da Sonoridade |Respeitado |Violado |
|_____________________________________________________________________________|(Vigário & Falé,_1994;_Mateus & d’Andrade,_1998,_2000)_________________|(Vigário & Falé,_1994;_Mateus & d’Andrade,_1998,_2000)|
|Condição de Dissemelhança |Respeitada |Violada |
|_____________________________________________________________________________|(Vigário & Falé,_1994;_Mateus & d’Andrade,_1998,_2000)_________________|(Vigário & Falé,_1994;_Mateus & d’Andrade,_1998,_2000)|
|Aquisição fonológica |Presentes em produções infantis. Adquiridas depois da aquisição dos Ataques nã|Praticamente ausentes nas produções infantis (Freitas, 1997) |
| |ramificados. Antes da aquisição segundo a fonologia adulta: “estratégias de | |
| |reconstrução” (nomeadamente: apagamento parcial e epêntese) (Freitas, 1997, | |
|_____________________________________________________________________________|2002)______________________________________________________________________________|__________________________________________________________________|
|Epêntese | |Frequente e atestada (Barbosa, 1965; Câmara, |
| | |1970, 1971, 1977; Vigário |
| | |& Falé, 1994; Mateus & d’Andrade, 1998, 2000; |
|_____________________________________________________________________________|___________________________________________________________________________________|Freitas,_2002)____________________________________________________|
À imagem do que tem sido observado para outras línguas do mundo (entre outros,
Fikkert, 1994; Lleó & Prinz, 1996; Barlow, 1997, 2007; Bernhardt &
Stemberger, 1998; Lamprecht et al., 2004; Ribas, 2004; Demuth & McCullough,
2009), os Ataques ramificados em PE são adquiridos depois dos Ataques não
ramificados, sendo frequentemente referido que, em algumas crianças, a sua
produção poderá não estar estabilizada à entrada na escola (Sim-Sim, 1997,
1998; Freitas, 1997, 2003; Gonçalves et al., 2011; Mendes et al., 2009/2013).
Quanto aos grupos consonânticos problemáticos, estes raramente surgem no léxico
infantil antes dos 4 anos: em Freitas (1997), num total de cerca de 18 500
produções espontâneas, apenas foram registados os alvos lexicais helicóptero (9
produções), gnu (1 produção), subtil (2 produções), pneu (1 produção), Batman
(21 produções), Simpson (2 produções), nem sempre produzidos em conformidade
com os alvos. Estes grupos consonânticos não são normalmente incluídos em
testes de avaliação do desenvolvimento fonológico infantil. A sua rara
atestação em contexto de produção espontânea até aos 4 anos permite-nos prever
o seu processamento complexo à entrada na escola e a possibilidade de virem a
ser identificados como marcadores clínicos, relevantes para a avaliação
fonológica em contextos de diagnóstico associado a perturbações do
desenvolvimento linguístico. Não existem, no entanto, estudos que investiguem a
ordem de aquisição relativa destes dois tipos de estruturas no português. O que
sabemos sobre os Ataques ramificados e sobre os grupos consonânticos
problemáticos no PE levam-nos, assim, a colocar a seguinte hipótese, a testar
no presente estudo (Hipótese 1): Os Ataques ramificados são adquiridos antes
dos grupos consonânticos problemáticos.
Do mesmo modo que as produções orais das crianças constituem evidência empírica
crucial para sabermos mais sobre o processamento fonológico, permitindo-nos
aceder à forma como as crianças adquirem gradualmente este tipo de conhecimento
gramatical (Fikkert 2007), também as produções escritas infantis nos podem
fornecer pistas sobre esse mesmo processamento. Como refere Treiman (1998:
291), “Children’s spellings also provide an excellent window into their
knowledge of phonology and orthography”. Pinto (1997: 10) refere a importância
dos erros ortográficos como material empírico de acesso ao modo como o
conhecimento ortográfico se vai consolidando, sendo aqueles claramente
formatados por critérios linguísticos, registando-se correlações entre
estruturas do oral e registos ortográficos infantis. Dado que o conhecimento
linguístico implícito, com impacto direto no formato dos enunciados orais
infantis, não se encontra terminado à entrada na escola, um dos fatores que
pode condicionar a forma das primeiras palavras escritas é o nível de
desenvolvimento fonológico em que a criança se encontra.
Contrariamente ao PB (entre outros, Miranda, 2007 e Miranda & Matzenauer,
2010), o PE não tem sido explorado em termos da relação entre desenvolvimento
fonológico e consolidação do conhecimento ortográfico. Como referimos acima, no
caso do PE, vários estudos têm sido desenvolvidos autonomamente na área do
desenvolvimento fonológico (entre outros, Freitas, 1997; Nogueira, 2007; Mendes
et al., 2009/2013) e na área da aquisição e aprendizagem da escrita (entre
outros, Pinto, 1997; Alves Martins& Nisa, 1998), não sendo o
desenvolvimento dos dois tipos de conhecimento estudado em paralelo, em
crianças testadas a partir de instrumentos que avaliem desenvolvimento
fonológico e conhecimento ortográfico. Ainda considerando os vários tipos de
conhecimento linguístico com que a criança tem de lidar à entrada na escola
conhecimento linguístico implícito, consciência linguística e conhecimento
ortográfico (Sim-Sim, Duarte & Ferraz, 1997; Pinto, 1997; Duarte, 2008) -,
alguns estudos portugueses têm cruzado dados relativos ao conhecimento
ortográfico e à consciência fonológica (Veloso, 2003, 2010; Alves, 2012),
embora não tenhamos notícia de investigação que avalie, para uma mesma amostra,
conhecimento fonológico e ortográfico. Embora outros fatores interfiram na
aprendizagem da escrita, neste artigo, centrar-nos-emos na exploração de
potenciais relações entre estes dois níveis de conhecimento, partindo dos
desempenhos orais e escritos dos dois tipos de estruturas acima descritas: os
Ataques ramificados e os grupos consonânticos problemáticos. Assumindo que o
processamento de uma estrutura fonológica tem impacto nos vários domínios que
recrutam o seu conhecimento, a segunda hipótese que colocamos neste estudo é a
seguinte (Hipótese 2): Existe um paralelismo entre desenvolvimento fonológico e
desenvolvimento ortográfico, sendo que estruturas problemáticas na oralidade
também o são na escrita.
2. Metodologia
No presente trabalho, são observadas produções orais e escritas de 56 crianças
portuguesas monolingues, com idades compreendidas entre os 6;7 e os 10;7, a
frequentar o final do 2º período letivo dos 1º e 4º anos do Ensino Básico em
dois estabelecimentos de ensino da rede pública, pertencentes ao Agrupamento de
Escolas de Benedita, no concelho de Alcobaça. A distribuição das crianças
observadas é a registada no Quadro_1:
Quadro 1.Distribuição da amostra.
__________________________________________________________________________
|Estabelecimento de ensino| Escola |Centro Escolar | Total |
| | Primária de| da Benedita | |
| |___Turquel___|_______________|__________________|
|_________________________|__n__|___%___|__n__|____%____|____n____|___%____|
| Ano de | 1º ano de | 23 |41,07% | 4 | 7,14% | 27 | 48,2% |
|escolaridade|escolaridade|_____|_______|_____|_________|_________|________|
| | 4º ano de | 23 |41,07% | 6 | 10,71% | 29 | 51,8% |
|____________|escolaridade|_____|_______|_____|_________|_________|________|
|___Total____|____________|_46__|_82,1%_|_10__|__17,9%__|___56____|__100%__|
Os dados foram recolhidos em sessões individuais com durações entre os 10 e os
20 minutos, tendo-se usado, para o efeito, um instrumento de recolha de dados
desenhado especificamente para o estudo. As tarefas aplicadas ao 1º ano do
Ensino Básico tinham na base imagens que funcionavam como estímulos para a
produção de 20 itens lexicais; por sua vez, as aplicadas ao 4º ano incluíam 26
imagens. Todas as imagens foram apresentadas no ecrã de um computador, que se
encontrava em frente à criança e à investigadora, através do programa
PowerPointTM do Windows 2007®. Em ambas as tarefas (de produção oral e de
produção escrita), as imagens relativas aos itens comuns aos dois anos de
escolaridade foram as mesmas. Para as provas aplicadas aos sujeitos do 1º ano
do Ensino Básico, utilizaram-se palavras dissilábicas com Ataques ramificados
(prato) e grupos problemáticos constituídos por oclusiva+consoante nasal
(submarino) e fricativa+oclusiva (afta). Para as provas aplicadas aos sujeitos
do 4º ano do Ensino Básico, foram também utilizadas palavras polissilábicas com
Ataques ramificados (aflente) e grupos problemáticos formados por
oclusiva+oclusiva (neptuno), oclusiva+consoante nasal (enigma),
oclusiva+fricativa (tsunami) e fricativa+oclusiva (oft ogista). A distribuição
dos vários tipos de estruturas testadas no instrumento construído para a
recolha de dados é apresentada no Quadro_2 (dada a natureza do léxico infantil,
não foi possível incluir estímulos com grupos consonânticos dos tipos consoante
nasal+consoante nasal):
Quadro 2.Estrutura do instrumento de recolha.
_____________________________________________________________________________
|____________________|__________________|1º_ano_(n)_______|4º_ano_(n)_______|
|Ataques ramificados |oclusiva+vibrante_|________2_________|________2_________|
| |oclusiva+lateral__|________2_________|________2_________|
| |fricativa+vibrante|________2_________|________2_________|
|____________________|fricativa+lateral_|________2_________|________2_________|
|Grupos consonântico|oclusiva+oclusiva_|________0_________|________2_________|
| problemáticos |oclusiva+nasal____|________4_________|________2_________|
| |oclusiva+fricativa|________0_________|________2_________|
| |fricativa+oclusiva|________1_________|________1_________|
|____________________|nasal+nasal_______|________0_________|________0_________|
A tarefa de produção oral (tarefa de nomeação feita a partir das imagens) foi
seguida da tarefa de escrita (tarefa de produção escrita). Na instrução dada
para a realização da tarefa de nomeação, pedia-se à criança para visualizar a
imagem e para, seguidamente, a nomear. Era referido que se pretendia que a
criança usasse somente uma palavra para designar o que visualizava. Em algumas
situações, recorreu-se ao uso da definição do item (pista semântica), presente
no protocolo de aplicação da prova, de forma a incentivar a resposta por parte
da criança (cf. Santos, 2013, Apêndice 3). Como último recurso, sempre que a
criança não nomeasse determinado item, utilizava-se a imitação – a
investigadora produzia o estímulo oralmente para que a criança o repetisse –,
sendo a produção codificada como tal, para efeito de análise dos dados. Por sua
vez, a tarefa de produção escrita foi registada pela própria criança, numa
folha de papel de formato A4 e de cor branca, com todas as imagens a cores
dispostas pela ordem em que foram apresentadas no ecrã do computador durante a
tarefa de nomeação. Note-se que existiu uma fase de treino para garantir que
ambas as tarefas eram compreendidas. Procedeu-se ao registo áudio de todo o
processo de aplicação das tarefas por meio de um gravador digital Philips
LFH0635/0, que se encontrava junto do computador, de forma a não interferir com
a aplicação da tarefa. Os dados foram, de seguida, transferidos para um
computador portátil HP Pavilion dv6500 Notebook PC, para serem posteriormente
ouvidos, transcritos e analisados. Na investigação que aqui se apresenta, foram
consideradas como produções corretas todas as produções cuja estrutura-alvo
(Ataque ramificado ou grupo consonântico problemático) foi produzida de acordo
com o formato adulto, ainda que outras estruturas da palavra não respeitassem o
formato-alvo.
3. Análise dos dados
3.1. Taxas de sucesso
Começamos esta secção com uma descrição dos resultados relativos às produções
orais das crianças observadas. O Gráfico_1 regista as taxas de sucesso para
ambos os anos de escolaridade face às duas estruturas em foco neste trabalho
(Ataques ramificados (AR) e grupos consonânticos problemáticos (GCP)).
Os resultados registados no gráfico acima mostram que os valores de sucesso das
formas orais conformes aos alvos, no 1º ano de escolaridade, estão acima dos
79% para ambas as sequências consonânticas estudadas. As produções relativas a
Ataques ramificados (92,1%) apresentam valores superiores aos das produções de
grupos consonânticos problemáticos (79,3%). Para a identificação do estádio de
aquisição das estruturas em foco utilizou-se a escala usada em Hernandorena
(1990), uma vez que esta permite uma clara identificação dos diferentes
momentos de desenvolvimento infantil, sendo aplicada em diferentes trabalhos
sobre a aquisição da fonologia do Português Europeu (Costa, 2003; Correia,
2004; Almeida, 2006). Essa escala postula as seguintes etapas de
desenvolvimento em função das taxas de sucesso associadas a cada etapa: (i)
menos de 50% de correspondência produção/alvo: estrutura não adquirida; (ii) de
51% a 75% de correspondência produção/alvo: estrutura em aquisição; (iii) De
76% a 85% de correspondência produção/alvo: estrutura adquirida mas não
completamente estabilizada; (iv) de 86% a 100% de correspondência produção/
alvo: estrutura adquirida e estabilizada. Assim, se usarmos a escala proposta
pela autora, podemos considerar que os Ataques ramificados se encontram já
estabilizados no sistema fonológico das crianças do 1º ano observadas; quanto
aos grupos consonânticos problemáticos (79,3%), e com base na mesma escala,
estes são considerados já adquiridos mas ainda não totalmente estabilizados.
Estes resultados permitem-nos predizer a ordem de aquisição Ataques
ramificados>>grupos consonânticos problemáticos, a testar em estudos
longitudinais experimentais, mediante amostras mais alargadas.
Para o 4º ano de escolaridade, regista-se um efeito de teto na produção dos
ataques ramificados. No caso dos grupos consonânticos problemáticos, há a
registar apenas a ocorrência de 3 erros associados exclusivamente à produção do
item lexical pictograma, que apresenta o grupo consonântico [kt]. A assimetria
entre as duas estruturas revelada no 1º ano (os Ataques ramificados com taxa de
sucesso mais elevada do que os grupos consonânticos problemáticos) é anulada no
4º ano de escolaridade, ano no qual ambas as sequências consonânticas estão
consolidadas do ponto de vista da sua produção. Os resultados preliminares
obtidos neste estudo parecem apontar, assim, para a confirmação da Hipótese 1
colocada neste trabalho (Os Ataques ramificados são adquiridos antes dos grupos
consonânticos problemáticos), a ser testada futuramente junto de amostras mais
alargadas.
Na análise dos resultados referentes às produções escritas das crianças
observadas no presente estudo, no 1º ano de escolaridade registaram-se 146
erros em produções com Ataque ramificado (67,6%) e 113 em produções com grupos
consonânticos problemáticos (83,7%). Por sua vez, no 4º ano de escolaridade,
registaram-se 25 erros em produções com um Ataque ramificado (10,8%) e 58 erros
em produções que integram um grupo consonântico problemático (28,6%). O Gráfico
2 apresenta as taxas de sucesso relativas às produções escritas das estruturas
em foco (AR e GCP), em ambos os anos de escolaridade.
A observação do Gráfico_2 permite-nos verificar que, em termos do desempenho
ortográfico, as percentagens de sucesso das crianças do 1º ano face às
estruturas sob avaliação são substancialmente mais baixas do que as das suas
produções orais (cf. Gráficos 1 e 2). Embora ambas as estruturas se revelem
muito problemáticas no 1º ano, os valores de sucesso no registo de formas
gráficas conformes ao alvo são superiores para os Ataques ramificados (32,4%),
quando confrontadas com as dos grupos consonânticos problemáticos (16,3%).
Existe uma acentuada assimetria entre os resultados obtidos para os 1º e 4º
anos: contrariamente ao 1º ano, o 4º ano apresenta um valor elevado de sucesso
no registo escrito de Ataques ramificados (89,2%); no caso dos grupos
consonânticos problemáticos, a taxa de sucesso média (70,9%) é inferior. Se
aplicarmos a escala de Hernandorena (1990) aos dados da ortografia aqui
descritos, apuramos que a primeira estrutura se encontra aprendida e
estabilizada no 4º ano, estando a segunda ainda em processo de aprendizagem.[1]
Embora a Hipótese 1 por nós formulada seja relativa exclusivamente ao domínio
da oralidade, assumida como janela de acesso ao conhecimento fonológico das
crianças (Fikkert, 2007), a mesma ordem de domínio das duas estruturas em foco
no contexto do conhecimento ortográfico das crianças testadas é a identificada
na avaliação do seu desempenho fonológico: Ataques ramificados>>grupos
consonânticos problemáticos. Neste sentido, poderemos considerar como
parcialmente confirmada a Hipótese 2 (Existe um paralelismo entre
desenvolvimento fonológico e desenvolvimento ortográfico, sendo que estruturas
problemáticas na oralidade o são também na escrita), uma vez que o grau
relativo de dificuldade no processamento das duas estruturas observado na
oralidade se reflete nos dados do desempenho ortográfico.
O Gráfico_3 permite a comparação dos dados apresentados nos Gráficos 1 e 2.
Nele se registam as taxas de sucesso para os Ataques ramificados (AR) e para os
grupos consonânticos problemáticos (GCP) em ambos os anos letivos, tanto em
contexto de produção oral como de produção escrita.
Apresentando sempre valores de sucesso superiores aos dos grupos consonânticos
problemáticos, os Ataques ramificados surgem como estruturas menos complexas do
que os grupos consonânticos problemáticos em ambos os anos letivos, tanto no
contexto de produção oral como no de produção escrita. No total da amostra, os
Ataques ramificados apresentam um valor médio global de sucesso de 78% e os
grupos consonânticos problemáticos uma média de sucesso de 66%.
Os valores sumariados no Gráfico_3 mostram que os níveis de sucesso para ambas
as estruturas consonânticas no 1º ano são altos na oralidade (acima de 79%) e
muito baixos na escrita (abaixo de 32%); em ambos os casos, o sucesso na
oralidade não é acompanhado por sucesso na escrita. No 4º ano, a diferença
entre as taxas de sucesso na oralidade e na escrita é menor para os Ataques
ramificados e maior para os grupos consonânticos problemáticos, registando-se,
assim, um comportamento assimétrico entre as duas sequências consonânticas.
Colocámos, na secção 1, a hipótese da presença de paralelismo entre oralidade e
escrita, formulada na Hipótese 2 (Existe um paralelismo entre desenvolvimento
fonológico e desenvolvimento ortográfico, sendo que estruturas problemáticas na
oralidade o são também na escrita). De acordo com esta hipótese, esperaríamos
que erros de escrita decorressem de problemas de desenvolvimento fonológico,
pelo que uma estrutura não dominada na oralidade seria também problemática na
escrita. Nesta perspetiva, os resultados registados no Gráfico_3 infirmam a
Hipótese 2, identificando-se assimetrias entre os resultados obtidos para a
oralidade e os registados na escrita. Uma vez mais, estes resultados
preliminares terão de ser testados em amostras mais alargadas, que permitam
continuar a testar potenciais (as)simetrias entre desenvolvimento fonológico e
aprendizagem da ortografia.
3.2. Estratégias de reconstrução
O Gráfico_4 apresenta valores percentuais relativos aos erros identificados nas
produções orais e escritas produzidas pelas crianças dos 1º e 4º anos de
escolaridade observadas no presente estudo, quer face a Ataques ramificados (n
de alvos 1º ano de escolaridade = 216; n de alvos 4º ano de escolaridade =
232), quer face a grupos consonânticos problemáticos (n de alvos 1º ano de
escolaridade = 135; n de alvos 4º ano de escolaridade = 203).
Na globalidade, como se pode observar no Gráfico_4, registam-se mais erros no
1º ano do que no 4º ano, o que confirma a expetativa inicial de que o grupo de
crianças mais velhas apresentaria um conhecimento fonológico e ortográfico mais
consolidado do que o grupo das crianças mais novas. A superioridade do
desempenho do 4º ano relativamente ao 1º ano era esperada: (i) já não se
esperam problemas de desenvolvimento fonológico nas crianças deste nível etário
(9/10 anos); (ii) é inerente ao percurso escolar mais longo daquele grupo um
conhecimento mais consolidado das regras ortográficas e um património lexical
mais alargado, que legitimam comportamentos ortográficos mais estáveis.
Com base nos dados globais do Gráfico_4, podemos afirmar que as crianças do 1º
ano, apesar de ainda exibirem alguns comportamentos não conformes ao alvo nos
seus desempenhos orais, apresentam um comportamento verbal que corresponde ao
domínio dos Ataques ramificados, com apenas 8% de desvios. Os grupos
consonânticos problemáticos, porém, não se encontram ainda integralmente
estabilizados (21% de desvios). Estes resultados para os grupos consonânticos
problemáticos no 1º ano podem decorrer de problemas no desenvolvimento
fonológico destas estruturas, uma vez que se trata de sequências consideradas
marcadas no PE, por violarem princípios universais de boa formação silábica
(Princípio de Sonoridade; Condição de Dissemelhança; cf. Mateus &
d’Andrade, 2000), logo, de aquisição presumivelmente tardia. Sabemos que estes
grupos consonânticos problemáticos ocorrem normalmente em itens lexicais não
disponíveis no léxico infantil nos primeiros anos de vida (Freitas, 1997), o
que comprometerá a sua aquisição. Do ponto de vista estritamente linguístico, a
aquisição tardia destas estruturas poderá, assim, decorrer de um efeito
fonológico e/ ou de um efeito lexical. Dados adicionais terão de ser compilados
em investigação futura, com vista à identificação do peso relativos aos fatores
que poderão condicionar este comportamento verbal nas crianças portuguesas. Nas
crianças do 4º ano, não há desvios a registar para a produção oral dos Ataques
ramificados; os grupos consonânticos problemáticos apresentam apenas 1% de
desvios, todos associados ao item lexical pictograma, como referido
anteriormente.
No caso dos desempenhos ortográficos produzidos pelas crianças observadas neste
estudo, verificamos que os resultados do 1º ano revelam uma não aprendizagem do
registo ortográfico das sequências consonânticas em foco (68% e 84% de desvios
para os Ataques ramificados e para os grupos consonânticos problemáticos,
respetivamente). Apesar de ser evidente a superioridade de desempenho por parte
das crianças do 4º ano, já não seria de esperar que se verificassem, nesta
altura do seu percurso escolar, erros nas produções testadas no presente
trabalho; todavia, encontramos ainda taxas de insucesso nas produções escritas
quer de Ataques ramificados (11%), quer de grupos consonânticos problemáticos
(29%), informações estas relevantes para efeitos de intervenção em contexto
escolar por parte dos profissionais envolvidos no processo educativo
(predominantemente professores mas também terapeutas da fala e psicólogos).
As taxas de insucesso registadas no Gráfico_4 demonstram que o domínio das
estruturas em foco não é ainda total por parte das crianças observadas,
recorrendo estas à ativação de estratégias de reconstrução de forma a
produzirem as formas orais e escritas solicitadas nas tarefas propostas no
desenho experimental (tarefa de nomeação; tarefa de produção escrita). Os
Quadros 3 e 4, que se expõem de seguida, apresentam a quantificação das
estratégias de produção utilizadas, tanto na oralidade como na escrita, pelas
crianças do 1º e do 4º anos de escolaridade, respetivamente.
Quadro 3.Estratégias de reconstrução (1º ano de escolaridade).
_____________________________________________________________________________
|Tipo de produç? Estratégias utilizadas |Frequência_por_tipo_de_estrutura|
| | |Ataque ramificado| Grupo |
| | | | consonântico |
|________________|__________________________|_________________|_problemático_|
| Produção oral|Epêntese_de_vogal________|_______29%_______|______46%______|
| |Redução do encontro | 59% | 43% |
| |consonântico_____________|_________________|_______________|
| |Metátese_________________|_______12%_______|______--_______|
| |Substituição de segmento| -- | 11% |
|________________|(s)_______________________|_________________|_______________|
|Produção escri|Epêntese_de_vogal________|_______62%_______|______76%______|
| |Redução do encontro |2% | 18% |
| |consonântico_____________|_________________|_______________|
| |Metátese_________________|_______4%________|______--_______|
| |Substituição de segmento| -- | 3% |
| |(s)_______________________|_________________|_______________|
|________________|Outras_produções________|_______2%________|______3%_______|
Quadro 4.Estratégias de reconstrução (4º ano de escolaridade).
_____________________________________________________________________________
|Tipo de produç? Estratégias utilizadas |Frequência_por_tipo_de_estrutura|
| | |Ataque ramificado| Grupo |
| | | | consonântico |
|________________|__________________________|_________________|_problemático_|
| Produção oral|Redução do encontro | -- | 100% |
|________________|consonântico_____________|_________________|_______________|
|Produção escri|Epêntese_de_vogal________|_______60%_______|______48%______|
| |Redução do encontro | 12% | 19% |
| |consonântico_____________|_________________|_______________|
| |Metátese_________________|_______20%_______|______5%_______|
| |Substituição de segmento| 8% | 12% |
| |(s)_______________________|_________________|_______________|
|________________|Grafias_homófonas________|_______--________|______16%______|
Pela observação do Quadro_3, apura-se que, antes de conseguirem produzir os
alvos corretamente, as crianças do 1º ano de escolaridade recorrem à ativação
das mesmas estratégias de reconstrução tanto na oralidade como na escrita.
Preferencialmente, as crianças recrutam a estratégia de epêntese (CCV o CVCV) e
a de redução do encontro consonântico (CCV o CV), frequentemente referidas na
literatura sobre aquisição fonológica (Fikkert, 1994; Freitas, 1997, 2003;
Bernhardt & Stemberger, 1998; Ribas, 2004; Nogueira, 2007), embora o uso de
metátese também já tenha sido relatado (Sim-Sim, 1998; Baptista, em prep.).
Note-se que estas são as estratégias usadas pelas crianças portuguesas mais
novas, quando observadas do ponto de vista do seu desenvolvimento fonológico
(Freitas, 1997, 2003). Na aquisição das várias línguas do mundo observadas até
ao momento, a estratégia preferencial para lidar com Ataques ramificados é a
redução do encontro consonântico, sendo preferencial a preservação de C1 (a
obstruinte) e o apagamento de C2 (a líquida). A epêntese de vogal foi
pontualmente atestada na aquisição de algumas línguas (Bernhardt &
Stemberger, 1998), sendo o seu uso substancialmente produtivo (cerca de 32%) em
fases mais avançadas da aquisição dos Ataques ramificados em PE (Freitas, 1997,
2003). Os dados de oralidade observados neste estudo são, assim, consistentes
com o descrito para a aquisição dos Ataques ramificados em PE. Veja-se a
ativação de ambas as estratégias por crianças portuguesas em fase pré-escolar e
em processo de aquisição destas estruturas:
(2) Estratégias de reconstrução na aquisição de Ataques ramificados
em PE
a. Redução do encontro consonântico (Freitas, 2003)
creme /‘k??m?/ ? [‘k?] Inês(1;5.11)
grande /‘g???d?/ ? [‘g??:d?] Marta(1;11.10)
prédio /‘p??dju/ ? [‘p?du] Raquel (2;10.8)
b. Epêntese de vogal (Freitas, 2003)
fralda /‘f?a?d?/ ? [f?‘?awd?] Luís(2;6.26)
bicicletas /bisi‘kl?t??/ ? [bisik?‘l?t??] Laura(2;11.4)
cobra /‘k?b??/ ? [k?b???] Pedro(3;5.18)
c. Metátese (Baptista, em prep)
prato /‘p?atu/ ? [‘pa?tu] GJ(4;9)
tigre /‘tig??/ ? [‘t?ig?] CL(4;9)
bruxa /‘b?u??/ ? [bu???] CL(5;1)
As estratégias de reconstrução usadas para os Ataques ramificados na oralidade
(preferencialmente, epêntese e redução do encontro consonântico) são também
recrutadas aquando da produção dos grupos consonânticos problemáticos. O uso
das mesmas estratégias de reconstrução na oralidade e na escrita parece
apontar, assim, para um paralelismo entre desenvolvimento fonológico e
desenvolvimento ortográfico, o que confirmaria a nossa Hipótese 2. No entanto,
a frequência de ocorrência de ambas as estratégias é inversamente proporcional:
as crianças do 1º ano preferem claramente a redução do encontro consonântico na
oralidade e a epêntese na escrita. Verifica-se, assim, para o 1º ano, uma
assimetria entre os dados da oralidade, que decorrem de um sistema já
estabilizado ou em fase de estabilização, e os da escrita, que revelam ainda
uma forte imaturidade associada ao conhecimento ortográfico. Assim, parece ser
infirmada a Hipótese 2 (Existe um paralelismo entre desenvolvimento fonológico
e desenvolvimento ortográfico), uma vez que os comportamentos ortográficos não
parecem decorrer, neste caso, de um estádio de aquisição da estrutura silábica,
com repercussões diretas nos registos escritos, sendo os desempenhos orais
sempre superiores aos ortográficos. Vejam-se, abaixo, alguns exemplos de
registos ortográficos de crianças do 1º ano de escolaridade que ativam as duas
estratégias de reconstrução mais representadas no corpus, a saber, epêntese e
redução do encontro consonântico:
(3) Produções escritas (1º ano de escolaridade)
Epêntese de vogal – Ataque ramificado
globo ? <gulobu> AJD
bruxa ? <berucha> MHC
Epêntese de vogal – Grupo consonântico problemático
pneu ? <paneo> PSC
pigmeu ? <pigume> VFT
Redução do encontro consonântico – Ataque ramificado
globo ? <lou> LNL
prato ? <pato> DVC
Redução do encontro consonântico – Grupo consonântico problemático
pigmeu ? <piga> PSC
afta ? <ata> DVC
Os dados relativos às produções orais do 4º ano registados no Quadro_4 sugerem
que a aquisição de ambas as sequências consonânticas no sistema fonológico está
terminada, não havendo estratégias de reconstrução a registar. Porém, no caso
dos registos escritos, observa-se o recrutamento das estratégias de
reconstrução já identificadas, no 1º ano, na produção de registos ortográficos
desviantes (epêntese; metátese; redução do encontro consonântico), o que denota
ainda imaturidade no conhecimento ortográfico das crianças do 4º ano. As
estratégias usadas no processo de aquisição, na oralidade, parecem, assim,
ficar disponíveis cognitivamente para serem reativadas, agora em contexto de
produção de formatos ortográficos, em faixas etárias tardias, nas quais o
desenvolvimento fonológico está já terminado. Vejam-se, abaixo, alguns exemplos
de registos ortográficos de crianças do 4º ano de escolaridade que ilustram as
três estratégias de reconstrução mais representadas no corpus:
(4) Produções escritas (4º ano de escolaridade)
Epêntese de vogal – Ataque ramificado
astrónomo ? <asterónomo> LFL
confronto ? <conforonte> RDM
Epêntese de vogal– Grupo consonântico problemático
neptuno ? <nepetuno> BED
algoritmo ? <algoritamo> LDM
Redução do encontro consonântico – Ataque ramificado
afluente ? <afuente> SFR
biblioteca ? <bibioteca> BEC
Redução do encontro consonântico – Grupo consonântico problemático
fricção ? <frição> BEG
tsunami ? <tonami> WHO
Metátese – Ataque ramificado
biblioteca ? <bilbioteca> LDM
atlântico ? <ataltico> LFL
Metátese – Grupo consonântico problemático
tsunami ? <stunami> NCJ
pictograma ? <pitcograma> HMB
Iniciada posteriormente à aquisição da maior parte das estruturas fonológicas,
a aprendizagem da ortografia constitui um processo complexo, que exige da
criança um nível mais elevado de desenvolvimento cognitivo (Vygotsky, 2007).
Quando deparadas com a necessidade ou a intenção de transformar as palavras
orais em registos ortográficos, as crianças, em fases iniciais do processo de
aprendizagem do sistema ortográfico, tendem a recorrer à oralidade (entre
muitos outros, Pinto, 1997; Miranda, 2007; Guimarães, 2005; Barbeiro, 2007;
Chacon, 2008), o que resulta, consequentemente, em formas gráficas em larga
medida comparáveis a um certo tipo de transcrição fonética. Os registos
escritos desta investigação que violam os formatos canónicos são, em vários
casos, o produto de transferência de propriedades da oralidade para a escrita,
como o ilustram os exemplos em (5):
(5) Exemplos de desvios ortográficos que transcrevem propriedades do
oral
flores ? <flors> RRL, 1º ano de escolaridade
enigma ? <inigma> SGA, 4º ano de escolaridade
O uso de epêntese poderá, no caso dos grupos consonânticos problemáticos, ser
justificado pela transferência de propriedades do oral para a escrita: sabemos
que a produção de um [?] epentético, que preenche um Núcleo vazio na
representação fonológica dos grupos consonânticos problemáticos (Mateus &
d’Andrade, 2000), poderá estar na base destes comportamentos ortográficos (pneu
[p?néw]). No entanto, o uso das estratégias de redução do encontro
consonântico, de metátese e de epêntese nos Ataques ramificados não poderá
decorrer de transferência de propriedades do oral para os registos
ortográficos. As formas desviantes que decorrem do uso destas estratégias
parecem recrutar mecanismos de reconstrução do input que estiveram ativos
durante a aquisição e que são, assim, naturais no contexto do processamento
fonológico. Neste sentido, e numa perspetiva cronológica, inerente à observação
do desenvolvimento cognitivo infantil, poderíamos identificar, neste caso, um
paralelismo entre desenvolvimento fonológico e desenvolvimento ortográfico,
consubstanciado na ativação assíncrona de estratégias de reconstrução típicas
do desenvolvimento fonológico na produção de formas ortográficas. Tal
permitiria uma confirmação parcial da nossa Hipótese 2, sobre um eventual
paralelismo entre desenvolvimento fonológico e desenvolvimento ortográfico.
Como referimos anteriormente, as estratégias usadas no processo de aquisição
poderão já estar desativadas na oralidade à entrada na escola, ficando, porém,
disponíveis cognitivamente para serem reativadas, mais tarde, em contexto de
produção de formatos ortográficos, em faixas etárias nas quais o
desenvolvimento fonológico está já terminado.
3.3. Natureza fonológica das sequências consonânticas e seu impacto nos
desempenhos infantis
Se tivermos em consideração a estrutura interna dos Ataques ramificados, nas
produções orais do 1º ano de escolaridade e nos casos em que a C2 é uma
consoante vibrante, registou-se uma elevada produção de erros, como seria de
esperar face ao que conhecemos da literatura: no conjunto das consoantes
soantes, as vibrantes são tendencialmente as que mais tardiamente aparecem
produzidas conforme o sistema-alvo (Freitas, 1997; Costa, 2010). De acordo com
o TFF-ALPE (Mendes et al., 2009/2013), os grupos consonânticos com vibrante são
os últimos a estabilizar, na faixa etária dos 5;0-5;6. No entanto, nas
produções escritas das crianças do mesmo ano, a consoante lateral na posição de
C2 foi a que espoletou um maior número de incorreções. O Quadro que se segue
sintetiza os resultados para /l/ e /?/como C2 dos Ataques ramificados, na
escrita e na oralidade do 1º ano de escolaridade.
Quadro 5.Desvios orais e escritos de C2 nos Ataques rami?cados, no 1º ano de
escolaridade.
__________________________________________________________________
|________________________|________COV_________|________C?V_________|
|_______Oralidade________|________41%_________|________59%_________|
|________Escrita_________|________58%_________|________42%_________|
Veloso (2003, 2006) refere diferenças entre a representação das
sequênciasformadaspor obstruinte+lateral eadasformadaspor obstruinte+vibrante
no conhecimento fonológico dos falantes do PE: de uma forma consistente, nas
fases iniciais da aprendizagem das normas ortográficas vigentes na língua
portuguesa, as crianças consideram as sequências obstruinte+lateral,
tradicionalmente tidas como tautossilábicas, como sequências heterossilábicas.
Tal heterossilabicidade das sequências obstruinte+lateral nos estádios iniciais
do conhecimento fonológico infantil não se verifica, no entanto, com as
sequências obstruinte+vibrante. Contudo, à medida que vão avançando na sua
aprendizagem da escrita, alcançando, por isso, um conhecimento mais estável das
convenções ortográficas, o conhecimento fonológico das crianças sofre
alterações e estas, de uma forma significativa, passam a considerar aquelas
sequências como tautossilábicas. Os argumentos listados por Veloso (2003, 2006)
para suportar a heterossilabicidade das sequências obstruinte+lateral são os
seguintes:
(i) Princípios silábicos, ou seja, a diferenciação dos dois tipos de
sequências consonânticas com base no respeito/violação do Princípio
de Sonoridade e da Condição de Dissemelhança.
(ii) Frequência na língua: Veloso (2003, 2006) recorre a estudos de
diversos autores que fazem a distinção entre grupos consonânticos
mais frequentes em português (obstruinte+líquida) e grupos mais
raros, resultantes das outras combinatórias possíveis.
(iii) Presença de uma vogal epentética entre consoantes: os grupos
consonânticos problemáticos são amiudadamente produzidos, a nível
fonético, com uma vogal entre as duas consoantes.
(iv) Origem histórica, a saber, as palavras com grupos consonânticos
problemáticos na sua formação correspondem a empréstimos tardios e
eruditos do latim clássico para preencher falhas lexicais do
Português em domínios específicos.
(v) Aquisição, nomeadamente, a quase inexistência de sequências
consonânticas compostas por grupos problemáticos, no estudo de
Freitas (1997), atribuída à pouca representatividade de tais
combinatórias consonânticas na língua, e a presença de sequências
compostas por obstruinte+líquida e progressiva capacidade das
crianças de as articular de acordo com a sua forma-alvo na fonologia
adulta.
(vi) Divisões silábicas espontâneas, quando confrontadas com a
necessidade de repartirem as duas consoantes dos grupos consonânticos
problemáticos em tarefas de divisão silábica explícita, contexto em
que reiteradamente as crianças demonstram hesitações e discordâncias.
(vii) Convenções ortográficas associadas, ou seja, através da fixação
das regras de translineação, a ortografia oficial da língua
estabelece uma distinção entre as sequências consonânticas formadas
por obstruinte+líquida e os grupos consonânticos problemáticos,
estabelecendo que as primeiras não sejam nunca divididas, na escrita,
por duas linhas diferentes e que as segundas o sejam
obrigatoriamente.
Esta análise de Veloso (2003, 2006) relativa à representação heterossilábica
das sequências obstruinte+lateral no Português, distinguindo-as, deste modo,
das sequências tautossilábicas de tipo obstruinte+vibrante, permite dar conta
da maior produção dos erros ortográficos encontrada, neste estudo, nos casos em
que a segunda consoante da sequência é uma lateral; todavia, esta abordagem não
dá conta dos dados da oralidade observados nesta investigação, pelo facto de as
produções orais das crianças conterem mais erros quando a segunda consoante é
uma vibrante (vd. Quadro 9, supra).
Afonso (2008), num estudo sobre consciência silábica em idade pré-escolar,
observou que as crianças conseguem segmentar mais facilmente estímulos com
Ataque ramificado formado por obstruinte+vibrante do que estímulos com Ataque
ramificado formado por obstruinte+lateral. Este comportamento espelharia um
efeito de frequência no PE (Vigário & Falé, 1994), uma vez que a primeira
estrutura é mais frequente do que a segunda, mas não um efeito do
desenvolvimento fonológico, uma vez que a estrutura obstruinte+vibrante
estabiliza mais tarde do que a estrutura obstruinte+lateral (Mendes et al.,
2009/2013). Todavia, quando analisou os tempos de reação, a autora verificou
que as crianças demoravam mais tempo a segmentar os estímulos com Ataque
ramificado formado por obstruinte+vibrante do que os formados por
obstruinte+lateral. Os resultados relativos aos tempos de reação estão, assim,
em conformidade com os dados encontrados neste estudo para a oralidade, uma vez
que as crianças demonstram processar de uma forma mais problemática as
combinatórias em que C2 é uma vibrante.
O quadro retirado de Veloso (2003, 2006) e apresentado em (1), na introdução
deste artigo, sintetiza as propriedades que distinguem os Ataques ramificados e
os grupos consonânticos problemáticos. De acordo com Mateus e d’Andrade (2000),
por serem as únicas sequências de consoantes em que são respeitados o Princípio
de Sonoridade e a Condição de Dissemelhança, as combinatórias de tipo
obstruinte+líquida são, no PE, as únicas sequências consonânticas que podem
verdadeiramente ser consideradas como realizações de um Ataque ramificado.
Todas as outras combinatórias consonânticas são, assim, excluídas da
possibilidade de fazerem parte das sequências admissíveis no domínio deste
constituinte silábico. Deste modo, não sendo aceites como Ataques ramificados,
essas mesmas sequências são entendidas, de acordo com a análise fonológica
proposta pelos autores, como sendo constituídas por consoantes
heterossilábicas, pertencendo os dois segmentos da sequência a dois Ataques não
ramificados distintos, no domínio de nós silábicos adjacentes: no caso dos
grupos consonânticos problemáticos, a primeira consoante é considerada como
Ataque não ramificado de uma sílaba com Núcleo vazio e a segunda como Ataque
não ramificado da sílaba adjacente à direita (Mateus & d’Andrade, 2000). Em
(6) e (7), são representadas as estruturas silábicas propostas para os Ataques
ramificados e para os grupos consonânticos problemáticos, respetivamente:
Os dados descritos neste artigo revelam comportamentos das crianças distintos
para os dois tipos de estruturas, tanto no domínio da oralidade como no da
ortografia. Os diferentes comportamentos face às duas estruturas sob avaliação,
representados nos gráficos 1 a 4, acima, fornecem argumentação empírica
adicional para as diferentes análises representadas em (6) e (7).
Verificámos que os contrastes são ainda mais acentuados no caso dos desempenhos
ortográficos. De entre os aspetos que motivam a produção de formas ortográficas
desviantes, a complexidade silábica constitui um dos fatores com mais impacto
neste comportamento. Sousa (1999) e Miranda & Matzenauer (2010) demonstram
que as dificuldades na representação gráfica de certas estruturas silábicas
podem dever-se à complexidade fonológica das mesmas. Na notação de formatos
silábicos complexos, diferentes do formato simples das primeiras produções das
crianças na escrita e na oralidade, há uma maior hesitação na escolha gráfica a
adotar por parte da criança quando as estruturas são de grau de complexidade
silábica elevado.
Como referimos na introdução, vários estudos sobre a aquisição do constituinte
silábico Ataque têm relatado que, no PE, o Ataque ramificado, a par do que
acontece noutras línguas, é silabicamente mais complexo do que o não ramificado
e, como tal, é das últimas estruturas silábicas a estabilizar no sistema
fonológico da criança (entre outros, Fikkert, 1994; Freitas, 1997; Bernhardt
& Stemberger, 1998; Ribas, 2004). Os grupos consonânticos problemáticos,
por violarem princípios de boa formação silábica, são considerados marcados na
língua e espera-se que a sua aquisição seja ainda mais problemática e morosa do
que a registada para os Ataques ramificados (Hipótese 1 neste artigo): os dados
recolhidos, tanto os da oralidade como os da ortografia, mostraram existir uma
diferença em termos de grau de dificuldade de processamento das duas estruturas
(Ataques ramificados>>grupos consonânticos problemáticos). Esta ordem é
consistente com as análises propostas para o PE, que consideram como marcada a
estrutura silábica subjacente aos grupos consonânticos problemáticos, mais
complexa do que a assumida para os Ataques ramificados (Barbosa, 1965, 1994;
Câmara, 1970, 1971; Mateus & d’Andrade, 2000).
4. Notas finais
Neste artigo, descrevemos dados de produções orais e escritas de crianças
portuguesas monolingues a frequentar os 1º e 4º anos de escolaridade do Ensino
Básico em Portugal. Os resultados foram recolhidos na sequência da formulação
dos seguintes objetivos: (i) identificar o grau de sucesso na produção de dois
tipos de sequências consonânticas em PE, os Ataques ramificados (sequências de
obstruinte+líquida) e os grupos consonânticos problemáticos (sequências de
oclusiva+oclusiva, oclusiva+nasal, oclusiva+fricativa nasal+nasal,
fricativa+oclusiva); (ii) contribuir para a discussão sobre possíveis
correlações entre desenvolvimento fonológico e consolidação do conhecimento
ortográfico, nos primeiros anos escolares.
Os desempenhos orais e ortográficos das crianças observadas neste estudo
mostraram que os Ataques ramificados são menos complexos do que os grupos
consonânticos problemáticos em ambos os tipos de produção, embora a assimetria
entre as duas estruturas silábicas se tenha revelado mais acentuada nos
desempenhos ortográficos do que nos orais. Os resultados permitiram confirmar a
Hipótese 1, segundo a qual os Ataques ramificados estabilizariam antes dos
grupos consonânticos problemáticos no sistema fonológico infantil. Dado o
número de sujeitos avaliado (apenas 56), os resultados aqui obtidos carecem de
confirmação empírica, com base em amostras mais alargadas.
Embora a Hipótese 1 tenha sido colocada relativamente ao desenvolvimento
fonológico infantil, espelhado nas propriedades dos enunciados orais recolhidos
(Fikkert, 2007), a mesma ordem de domínio das duas estruturas em foco foi
identifi quer no contexto do desempenho ortográfi das crianças testadas, quer
no do seu desempenho fonológico: Ataques ramificados >>grupos consonânticos
problemáticos. Assim, considerámos parcialmente confirmada a Hipótese 2, que
prediz a existência de um paralelismo entre desenvolvimento fonológico e
desenvolvimento ortográfico foram problemáticas na escrita as estruturas que o
foram também na oralidade, uma vez que o grau relativo de dificuldade no
processamento das duas estruturas decorrente do conhecimento fonológico
infantil se refl u no seu conhecimento ortográfico. Porém, as taxas de sucesso
na oralidade são sistematicamente superiores às registadas na escrita, o que
infirma parcialmente a Hipótese 2.
No que diz respeito ao uso de estratégias de reconstrução das estruturas-alvo,
verificou-se que as estratégias preferencialmente usadas durante a aquisição e
nas produções orais registadas (epêntese e redução do encontro consonântico)
são também as mais frequentes na produção de registos ortográficos, mesmo
quando já não emergem nos enunciados orais, como acontece nos dados do 4º ano
de escolaridade. Nesta perspetiva, poderemos, uma vez mais, considerar
parcialmente confirmada a Hipótese 2, dado que as crianças observadas replicam,
na escrita, comportamentos registados na oralidade, durante o seu processo de
desenvolvimento fonológico.
Como foi referido na secção inicial deste artigo, considerámos dois dos vários
tipos de conhecimento linguístico recrutados em contexto educativo: o
conhecimento fonológico implícito e o conhecimento ortográfico.
Tradicionalmente, os docentes de 1º Ciclo do Ensino Básico centram-se no
trabalho sobre o conhecimento ortográfico e sobre o conhecimento explícito,
assumindo que o conhecimento implícito está estabilizado à entrada na escola
(para demonstração do inverso em outras dimensões gramaticais que não apenas a
fonológica, cf. Gonçalves et al., 2011). O estabelecimento de relações entre
oralidade e escrita é uma constante desde a entrada na escola, processo
relatado em vários estudos (entre outros, Pinto, 1997; Miranda, 2007;
Guimarães, 2005; Barbeiro, 2007; Chacon, 2008) e espoletado pela aprendizagem
da ortografia em estádios iniciais do percurso académico infantil. No entanto,
não tem sido feita, para o PE, uma reflexão sobre as correlações entre
desenvolvimento fonológico e consolidação do conhecimento ortográfico. Neste
sentido, observámos os desempenhos orais e escritos à entrada e à saída do 1º
Ciclo de Ensino Básico, usando os grupos consonânticos como estrutura-alvo por
se tratar de sequências complexas no PE, testando a relação entre
desenvolvimento fonológico e aprendizagem da ortografia. A ordem de aquisição
dos grupos consonânticos estudados foi a predita: Ataques ramificados>>grupos
consonânticos problemáticos. Quanto à relação entre os dois tipos de
conhecimento, alguns aspetos apontaram para a presença de paralelismo no
processamento fonológico das duas dimensões testadas, que pode não ser
síncrono, por recrutamento, na escrita, de comportamentos orais registados
previamente no processo de desenvolvimento fonológico. Os resultados devem ser
interpretados como fundamentação empírica das hipóteses formuladas, a serem
testadas com amostras mais alargadas. No caso específico da área de trabalho em
que nos integramos, as relações entre aquisição fonológica e aprendizagem da
ortografia, que passam pela observação das produções orais e escritas das
crianças em contexto escolar, permitirão, acreditamos, a promoção da eficácia
do desempenho docente no processo de ensino e aprendizagem da leitura e da
escrita.