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EuPTHUHu0807-89672014000200005

EuPTHUHu0807-89672014000200005

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0807-8967
ano2014
Issue0002
Article number00005

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Torre Bela e a "utopia louca de uma vida melhor": dois estudos transculturais

Um dos aspetos mais interessantes, e talvez menos realçados, do 25 de Abril foi a sua capacidade de gerar encontros de pessoas das mais diversas classes sociais e nacionalidades. Foi um momento de libertação de energia cívica, de consciencialização política e de mobilização e, tambem, de diálogo transcultural. A ocupação da herdade da Torre Bela, propriedade dos duques de Lafões, constituiu um desses momentos; mas foi mais do que isso foi a utopia da construção de uma vida melhor. Daí o lugar quase icónico que ocupa no contexto da reforma agrária portuguesa.

A Torre Bela é uma propriedade localizada na freguesia de Manique do Intendente, no concelho de Azambuja, cuja dimensão 1.700 hectares é quase inédita no Ribatejo. As imagens iniciais do filme do realizador alemão Thomas Harlan, dedicado à Torre Bela, deixam adivinhar a imensidão da propriedade.

Embora a legalização tenha ocorrido apenas em 1976, a Torre Bela constituiu-se em cooperativa agrícola no dia 23 de Abril de 1975, dia da sua ocupação. O número inicial de cooperadores era de quarenta e cinco, residentes nas aldeias vizinhas de Maçussa e Manique do Intendente. De acordo com os estatutos, a sua denominação oficial era Cooperativa Agrícola Popular da Torre Bela.

Pode dizer-se que as condições específicas da ocupação da Torre Bela cedo a transformaram num case study. Voluntários de várias nacionalidades estiveram , e alguns deixaram o seu testemunho escrito ou filmado. Testemunhos que representam perceções diversas, como é o caso da escritora alemã Helga M. Novak (1935-2013) e do jornalista francês e professor universitário Francis Pisani (1942-).

Novak e Pisani viveram alguns meses na Torre Bela, em 1975. Helga Novak, pseudónimo de Maria Karlsdottir, publicou em 1976 a obra Die Landnahme von Torre Bela[A Ocupação da Torre Bela], um texto de 63 páginas. Francis Pisani publicou em 1977 um texto bastante mais extenso, com cerca de 330 páginas, intitulado Torre Bela. On a Tous le Droit d’Avoir une Vie[Torre Bela Todos Temos Direito a Ter uma Vida], editado em português em 1978. O título deste artigo "Torre Bela e a Utopia Louca de uma Vida Melhor" é devedor da obra de Pisani.

A narrativa de Novak apresenta um olhar feminino no meio de uma revolução essencialmente masculina, como realça Sofia Baptista (2008) no seu estudo sobre a obra de Novak dedicada à Torre Bela. Novak vem claramente à procura de uma experiência revolucionária, mas também de paz interior e, enquanto registo das suas experiências quotidianas, esta obra está formalmente próxima do diário como sub-género literário. Nesse sentido, além de narradora, Novak é protagonista.

A obra de Pisani, por seu lado, tem um cariz marcadamente jornalístico. No entanto, certos trechos revelam uma inesperada qualidade literária, do mesmo modo que diversas passagens da obra de Novak assumem claramente um teor documental. Embora apresentem olhares diferentes, une-os o sonho da construção da justiça social e da igualdade. No entanto, "o quinhão de esperança" ["der Klumpen Hoffnung"] a que Novak se refere num poema de 1966 intitulado "Bekenntnis" ["Confissão"] (Ulmer, 2014), e que a trouxe a Portugal em 1975, acabou por se desvanecer e se transformar numa visão mais desencatada da ocupação da Torre Bela do que a de Pisani.

Pode mesmo dizer-se que a experiência portuguesa de Novak representou a sua despedida da crença na possibilidade da construção de um sistema sócio-político justo. Inicialmente fascinada pela possibilidade da construção do socialismo na jovem República Democrática Alemã (RDA), cedo assumiu uma atitude crítica face ao regime comunista. A sua expulsão do país em 1966 leva-a a iniciar uma vida errante por vários países da Europa à procura do socialismo perdido, chegando a Portugal em 1975. Na coletânea de contos, Palisaden, publicada em 1980, e que em grande parte reflete a sua experiência pessoal entre os anos de 1967 e 1975, se encontram sinais do desencanto futuro. A título de exemplo, considere-se o seu micro conto "Arbeitnehmer Arbeitgeber" ["Empregado Patrão"], em que propõe uma inversão original do significado deste binómio, mas ao mesmo tempo pressente-se uma atitude pessimista: "Aquele a quem pertence a fábrica de congelados, recebe o meu trabalho (...). Eu, que nada tenho, dou-lhe o meu trabalho. Ele é quem recebe tabalho. Quem trabalho, sou eu." ["Dem das Gefrierhaus gehört, der nimmt meine Arbeit. (...) Ich, da mir nichts gehört, gebe ihm meine Arbeit. Er ist der Arbeitnehmer. Der Arbeitgeber bin ich."] (Novak, 1980: 7) Por outras palavras: quem trabalho é o trabalhador, não o patrão. Sinal praticamente inequívoco do progressivo desencanto político de Novak é o facto de, a partir dos anos 80, se refugiar quase por completo na relação com a natureza.

A obra de Novak sobre a ocupação da Torre Bela é composta por 54 pequenos capítulos de diferentes tipologias textuais, que vão desde notícias de jornais, entrevistas, cartas, contos, até uma receita de bacalhau. No seu conjunto, compõem cenas, instantâneos da experiência portuguesa da autora em geral, dado que alguns textos se referem a acontecimentos políticos não diretamente ligados à cooperativa. A estrutura narrativa, fragmentada e não linear, realça a forte subjetividade que marca toda a obra. No entanto, o caráter impressionista e fragmentário da narração não afeta a coesão geral do texto, apelando antes à capacidade de montagem do próprio leitor, como observa Sofia Baptista (2008: 99). O apelo à participação ativa do leitor, não na interpretação, mas também na construção do próprio texto, constitui uma das originalidades desta obra.

Na primeira parte, são descritos os espaços e as etapas da ocupação. Logo no início, Novak faz uma breve descrição da propriedade e do edifício principal, com mais de vinte quartos, sem esquecer a referência ao muro de cerca de 20 km de extensão que circunda a propriedade. Nos comportamentos tímidos e deferentes dos cooperadores no seu contacto com os espaços do palácio, anteriormente pertencente aos duques "para quem cuidam as mulheres desta sala [a antiga sala do duque], como se não fosse delas?" ["Für wen pfl gen die Frauen dieses Zimmer, als wåre es nicht ihr eigenes?"] (Novak, 1976: 8) , Novak o refl o do antigo domínio feudal, da opressão antiga, mas também a difi uldade de as mentalidades assumirem a mudança, porque "as leis não escritas fi am gravadas mais fundo" ["ungeschriebene Gesetze prågen sich tiefer ein"] (idem: 13).

Reconhece, no entanto, que, aos poucos, as mentalidades estão a mudar: "E lentamente se quebra a tábua que lhes tapa os olhos e onde estão as leis que não são escritas." ["Und langsam zersplittert das Brett vom Kopf, auf dem die ungeshriebenen Gesetze stehen."] (Idem: 13) Com estes comentários, a autora leva o leitor a refl ir sobre a possibilidade da coexistência, quase paradoxal, mas real, entre atitudes de grande ousadia (ato de ocupação) e de hesitação em assumir, no período subsequente, a alteração das relações sociais e políticas.

O corte com o passado é dificultado pelo modo como foram produzidas, e reproduzidas, as estratégias de dominação ao longo do tempo. Um dos exemplos dessas estratégias de exploração e, principalmente, de submissão dos trabalhadores, levadas a cabo pelo antigo patrão, é dado na referência à forma de pagamento pelo trabalho, a qual incluía a distribuição ao dia de cinco litros de vinho por cada trabalhador: "Todos os dias cinco litros de vinho, e quem quisesse podia receber mais." ["Jeden Tag fünf Liter Wein, wer mehr haben wollte, konnte es kriegen."] (Idem: 12) Para Novak, tratava-se de ação deliberada: "Era planeado. Uma pessoa perturbada não se revolta, nem ergue barricadas." ["Es war geplant. Ein zerstörter Mensch rebelliert nicht und klettert auf keine Barrikade mehr."] (Idem: 12) A distibuição de vinho é, pois, vista como um exemplo de dominação ideológica.

Desde o início, o empenhamento político de Novak é, pois, notório ela é inequivocamente a favor da ocupação das terras porque, como afi ma, "por um lado, na Torre Bela as terras estavam ao abandono, por outro, nas aldeias à volta, a percentagem de trabalhadores desempregados subia para cerca de sessenta por cento." ["Einerseits lagen in Torrebela (sic) die Låndereien brach und verwilderten, anderseits stieg in den umliegenden Dörfern der Anteil der arbeitslosen Landbevölkerung auf ungefåhr sechzig Prozent." (Idem: 9) O quase abandono da produção agrícola por parte dos antigos proprietários é referido como um fator a favor da ocupação. Exemplifi ando, Novak compara a produção de azeite em 1954 (trinta e três mil litros) com a do ano de 1973 (1.500 litros) para concluir que as terras estavam a produzir muito abaixo das suas possibilidades, o que seria um argumento a favor da sua ocupação.

Novak descreve o trabalho árduo no campo, no qual se envolve, e que lhe suscita a seguinte dúvida, aliás partilhada por Pisani, sobre o futuro do projeto: "Quem os colherá [os frutos]? Os antigos proprietários, ou os novos?" ["Wer bringt sie ein? Die vormaligen Herren oder die neuen?"] (Idem: 11) A figura da pergunta retórica é recorrente nesta obra e está muitas vezes relacionada com as incertezas, não em relação ao futuro do projeto particular da Torre Bela, mas também em relação a todo o processo revolucionário em curso no país.

A dúvida, mesmo pessimismo, quanto ao futuro da Torre Bela exprime-se sobretudo através de uma atitude crítica em relação à realidade concreta da vida na cooperativa. Essa visão mais cética pode ter raízes culturais. As críticas à falta de método e de organização do trabalho, ao alcoolismo, conservadorismo, mesmo machismo, dos homens, mas também ao conformismo das mulheres (idem: 46, 60), traduzem a diferença cultural, intelectual e mental entre o mundo (germânico) da autora e o mundo rural português. Esse abismo cultural desempenhou um papel importante e foi agravado pela barreira linguística. Novak tem consciência do choque cultural no seu todo. Referindo-se aos cooperadores, diz: "Eles não nos conhecem. Nós não compreendemos a língua deles." ["Sie kennen uns nicht. Wir verstehen ihre Sprache nicht."] (Idem: 28) De facto, Novak raras vezes se refere aos cooperadores pelos seus nomes; quase sempre é usada a terceira pessoa do plural "eles" ["sie"]. Por vezes, também recorre a pronomes indefi como "um" ["einer"], ou locuções pronominais indefi as, como "um outro", "um terceiro" ["ein anderer", "ein Dritter"] (idem: 20). No entanto, quando se refere ao trabalho realizado em conjunto, Novak usa a primeira pessoa do plural "nós" ["wir"] (idem: 20). Vontade de pertença, apesar de tudo? Este distanciamento e incompreensão, de índole linguística e cultural, parecem ter afetado a sua avaliação política. Novak pressentia que o "quinhão de esperança" que esperava encontrar em Portugal se estava a esfumar. Observa-se uma discrepância entre as suas expectativas em relação à revolução portuguesa (e aos revolucionários) e a realidade que descreve. Wilson Faustino, por exemplo, lider da ocupação e personagem polémica, mas popular, no texto de Pisani, é aqui descrito negativamente; é o "camarada W.", muito criticado pelas atitudes "burguesas" como, por exemplo, fumar um charuto após o jantar num restaurante de Lisboa:

A seguir o camarada W. assobia ao empregado de mesa para lhe trazer uma caixa de charutos. Pega neste e naquele e apalpa-os até que, piscando o olho, leva um à boca. Os camponeses olham admirados e tossicam em sinal de aprovação. [Anschließend pfeift der Genosse W.

dem Kellner und låßt sich ein Kåstchen Zigarren bringen. Er nimmt diese und jene und tastet sie ab, bis er sich zwinkernd eine in den Mund steckt. Die Bauern machen Stielaugen und hüsteln anerkennend.] (Idem: 44)

Apesar da desilusão revolucionária, Novak Portugal como um lugar de liberdade, em oposição ao autoritarismo controlador da RDA: "Conheci muitas casas destas [ocupadas], mas em nenhuma me detive e encontrei a minha paz como nesta, mesmo que por pouco tempo." ["Ich habe viele solcher Håuser gekannt, doch in keinem habe ich wie hier, wenn auch kurzfristig, innegehalten und meinen Frieden gemacht."] (Idem: 34) A alusão nesta frase às suas viagens em busca de paz sugere que a experiência portuguesa de Novak pode ser vista como tendo sido indelevelmente influenciada pelo que Izabella Surynt, no seu estudo "Leben als Exil. Zum Schaffen von Helga M. Novak" ["A vida como exílio. A propósito da obra de Helga M. Novak"], chama "problemática da Heimat" [pátria] na obra de Novak. O exílio forçado ou auto- imposto da autora e a perda da nacionalidade alemã oriental estão presentes na sua obra na ideia da perda, negação da pátria, e a sua busca versus encontro.

Este sentimento de não pertença cria uma dinâmica de inquietação que é um ponto de partida para uma luta com o mundo e consigo própria. Essa experiência de exílio está patente na forma insubmissa e até angustiada como Novak faz a recomposição literária da sua experiência portuguesa.

Debrucemo-nos de seguida sobre o outro livro que relata igualmente, embora de modo bastante diferente, a experiência da ocupação da herdade de Torre Bela vivida in locopor um estrangeiro, designadamente o volume Torre Bela. Todos Temos Direito a Ter uma Vida(1977), da autoria do jornalista francês Francis Pisani.[1] Pouco tempo antes da sua chegada a Portugal em 1975, o autor tinha viajado pela América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Cuba, Venezuela), tendo sido correspondente do jornal Le Monde Diplomatique, entre outros. É, porventura, esse contacto prévio com gentes e culturas (com forte componente campesina) da América do Sul que lhe proporciona a disponibilidade intelectual para interpretar a experiência vivida na Torre Bela como algo de positivo, independentemente do desfecho final. O facto de falar português fluentemente (além de outras línguas) pode, também, ter facilitado a ligação afetiva ao projeto e às pessoas, o que não se observa em Novak.

Ao mesmo tempo, porém, perpassa a sua obra sobre a Torre Bela o interesse pela aplicação do critério jornalístico de pluralidade de pontos de vista. Essa preocupação é visível no estilo quase fílmico de alguns trechos mas também, por exemplo, na tentativa frustrada de ouvir os "senhores da Torre Bela": "Teria gostado de lhes dar a palavra neste livro. Paciência." (Pisani, 1977: 93) O subtítulo da obra Todos Temos Direito a Ter uma Vida traduz a interpretação do autor acerca do significado mais profundo da ocupação daquelas terras: a Torre Bela representa a busca de dignidade humana, a afirmação de como os mais pobres podem aspirar ao respeito e à dignidade. Logo no início da obra, Pisani descreve assim os cooperadores:

As caras estão inexpressivas, após uma noite de sono. Não barbeadas, marcadas pela miséria, estragadas pelo álcool, a sua beleza vem da energia que se nos seus traços como nos seus olhares. Sente-se uma tensão extrema nestes trabalhadores agrícolas: ontem era para se defenderem dos golpes do patrão; hoje para vencer e criar novas condições de vida. (Idem: 27)

O autor realça uma das opções do projeto: o facto de desde o início terem sido escolhidos para integrarem a nova cooperativa "os mais pobres de entre nós", como conta Wilson Faustino, "aqueles que eram apenas trabalhadores rurais, que não tinham tido nunca outro trabalho na vida. Aqueles que tinham mais dificuldade em arranjar trabalho, que não tinham emprego muito tempo." (Idem: 83) Outra opção, a opção pelo poder popular, significava que a produção e a repartição do produto deviam estar nas mãos dos trabalhadores, eles mesmos (idem: 130), conforme salienta o autor, e ela implicava a autonomia em relação a todas as forças políticas organizadas, incluindo os partidos políticos de esquerda. Para o autor, estas opções constituem a originalidade e a força do projeto da Torre Bela a oportunidade de verificar se era possível transformar a vida dos mais deserdados, dar-lhe um sentido de libertação que também, numa espécie de efeito sinédoque, abrangesse todos os que de algum modo vivessem o projeto.

Mas estas escolhas são também fonte de incertezas e dificuldades. Talvez por isso, Pisani se refira à Torre Bela várias vezes como uma "experiência" (idem: 117). A opção pelos mais desfavorecidos juntamente com a sua miséria afetiva, fraqueza física, analfabetismo e alcoolismo implicou a consciência de que eram também os que tinham menos consciência política, capacidade técnica e de organização.

A opção pelo poder popular traduziu-se na falta de apoio político e num certo isolamento, que é simbolizado pelo muro que circunda a quinta e a que o autor dedica um capítulo inteiro: até à ocupação, o muro fazia perfeito sentido, dado que a Torre Bela era essencialmente uma reserva de caça. Após a ocupação, tornou-se o símbolo da separação entre os cooperantes e as populações vizinhas.

Era também uma metáfora da realidade inescapável, das dificuldades enfrentadas pelos cooperadores para vencerem as batalhas que tinham assumido.

Os vários problemas alcoolismo, desorganização, baixa capacidade técnica são descritos sem rodeios, mas a tónica é posta nas vitórias alcançadas. A forma como Pisani descreve a primeira reunião da comissão de trabalhadores a que assitiu (18 de Agosto) é ilustrativa da sua atitude positiva. Ao mesmo tempo que nota a falta de produtividade: "serão necessárias duas manhãs inteiras de reuniões desta comissão de trabalhadores para que a ideia de que é preciso e possível planifi ar os trabalhos agrícolas seja de facto aceite", realça as pequenas vitórias: apesar de lenta, a discussão progride e ela constitui a "prática quotidiana do poder popular." (Idem: 235) Conforme referido acima, um dos aspetos distintivos da ocupação da Torre Bela foi o interesse e a solidariedade que suscitou. Pisani refere o apelo ao trabalho voluntário dos operários de Lisboa, a ligação com as comissões de trabalhadores ou de bairro, com os regimentos revolucionários da capital [Polícia Militar], o recurso ao dinheiro vindo do estrangeiro [Alemanha, França e Itália], e a vinda em número importante de "turistas revolucionários." (Idem: 116; 218-23) De entre as pessoas vindas do exterior, Pisani destaca a figura de Camilo Mortágua. Ele é claramente um dos protagonistas desta narrativa, daí a recorrência de expressões como "Camilo diz", "Camilo fala frequentemente de ...", "Camilo reconhecia ...". Ex-dirigente da LUAR [Liga de União e Acção Revolucionária], Camilo foi, para Pisani, quem deu "coerência ao projeto". Ele é apresentado como alguém que defende convictamente a ideia de poder popular como cerne do projeto e que percebe que a organização do poder popular também passa pela criação de estruturas de vida comunitária. Daí, a batalha pelo refeitório que, simbolicamente, foi a forma encontrada para "recriar o espírito colectivo, dar nova alma ao nosso combate." (Idem: 125) Pisani entrevista-o longamente em Agosto de 1975 (idem: 123-32), entrevista que Novak também transcreve, embora de forma mais sintética (Novak, 1976: 14-8). Os problemas iniciais da Torre Bela são expostos de forma clara e incisiva:

Na noite da minha chegada (princípio de Julho), quase que me fui embora outra vez, encontrei uma situação ainda pior do que aquela que eu esperava. (...) A comissão de trabalhadores nunca se reunia, nenhuma regra de trabalho tinha sido fi a, (...) não havia limites para o vinho. A chave da adega estava ao alcance de toda a gente.

Cada um trazia a sua côdea e comia-a no seu canto. (...) No fim do dia estavam todos bêbados porque podiam beber à vontade. (Idem: 124)

Camilo é apresentado como um "quadro revolucionário" que tem consciência da sua posição privilegiada na cooperativa porque tem tempo para pensar e porque tem influência, talvez maior do que desejaria. Na entrevista reconhece: "Durante todo este período, pressionado pelas circunstâncias, eu usei a minha influência, mais do que aquilo que eu queria." (Idem: 125) É através do retrato feito por Camilo da "experiência" da Torre Bela que a ligação afetiva de Pisani ao projeto se torna mais evidente. A capacidade de dar um sentido ao projeto, de defi as suas linhas gerais, que marcam o papel de Camilo na Torre Bela cunham, também, a visão de Pisani. Para Camilo, a Torre Bela não é uma "ilha de socialismo", uma comunidade fechada sobre si mesma, como acontece em várias cooperativas espalhadas pela Europa. A Torre Bela é outra coisa. Daí, a importância da relação com o exterior para o sucesso do projeto. Ele afi ma mesmo que se eles não conseguirem "passar os muros que cercam a Torre Bela (...) esta experiência está condenada." (Idem: 131) No final da entrevista, as palavras de Camilo "eu acho que o coração deve empenhar-se para que as coisas tenham um sentido" (idem: 132) fazem lembrar a própria relação de Pisani com a Torre Bela. É essa relação que lhe permite, no final, fazer um balanço positivo. Para o jornalista estrangeiro, foi a capacidade de sonhar e de unir o sonho à realidade, que deu sentido e força àquela comunidade para lutar por uma vida melhor. Exemplifica: sem a ambição de construir a barragem para irrigar metade da cooperativa, sem a construção do refeitório, sem o desenvolvimento da criação de gado, sem esta utopia quotidiana, "sem a utopia louca de uma vida melhor" (idem: 343), como, onde e por quê haveriam os cooperadores de encontrar motivação para a luta? A revolução da Torre Bela foi, portanto, a luta pela criação de um espírito de comunidade; foi a criação de um personagem coletivo a cooperativa.

Sem ilusões acerca da capacidade do sistema capitalista de assimilar este tipo de experiências, é ainda Camilo quem diz as palavras decisivas: "A Torre Bela pode ser recuperável, mas o que conta é que os homens que participam nesta experiência não o sejam. Julgo que em grande parte conseguimos isso." (Idem: 344) Pisani concretiza: "Mesmo que a cooperativa desapareça, nunca mais aceitarão fazer o que um deles conta: curvar a espinha para que os filhos do duque subam para o cavalo servindo-se das costas como de um escadote!" (Idem: 344) Se para a comunidade local a experiência da Torre Bela significou a concretização de um passo importante rumo à emancipação política e social do indivíduo num país em vias de se democratizar, para os de fora, como a cidadã alemã Helga Novak e o cidadão francês Francis Pisani, a Torre Bela, para além de representar um fenómeno de índole essencialmente sociopolítica, confi ou-se também como uma espécie de libertação metafísica. Assim, não obstante comungar intensamente dos ideais subjacentes ao projeto coletivo, Pisani denota ter a clara consciência de ser um viajante, um forasteiro a quem é dada a possibilidade de viver por momentos uma harmonia catártica:

Na minha opinião, esta esperança [a "utopia louca de uma vida melhor"] encontrava-se concretizada na Torre Bela. Sempre que voltava, qualquer que fosse a hora do dia ou da noite, a passagem pela floresta, entre o primeiro portão que marcava a entrada nessas terras libertadas e o segundo que marcava a entrada na zona de habitação, produzia em mim uma espécie de filtragem. Durante cerca de quatro kilómetros (...), todo o peso, todas as precipitações da cidade caíam de um golpe. Como poderiam elas resistir à vista das corças e dos esquilos que quase sempre o viajante tem possibilidade de cruzar? À medida que entrava, começava a respirar. Torre Bela era a vida. (Idem: 214)

Conforme foi exposto atrás, também Helga Novak, ainda que num tom menos otimista do que o de Pisani, revela estar bem consciente da sua condição de viajante. Ao contrário do viandante francês, que experiencia nas florestas da herdade uma espécie de epifania libertadora, a narradora alemã mostra-se mais sóbria e cética. Ela autoconfigura-se, subliminarmente, como uma errante eterna em busca duma paz consigo e com o mundo que teve oportunidade de experienciar, mas apenas de modo efémero, nesta sua breve passagem por um país em vias de transição para a democracia, transição essa que se consubstanciaria de forma simbólica no projeto coletivo da Torre Bela.

A modo de epílogo, refira-se que a própria Cooperativa Agrícola Popular da Torre Bela teve, também ela, uma vida muito efémera, pois foi entregue aos duques de Lafões em 1982, no âmbito da chamada Lei Barreto.


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