Perceções da revolução dos cravos na imprensa alemã: os exemplos de die zeit
(rfa) e neues deutschland (rda) do 25 de abril de 1974 até à demissão de
Spínola
Introdução
Os meios de comunicação apresentam-nos diferentes leituras dum acontecimento, o
que demostra haver sempre diversos pontos de vista que variam, entre outras
predisposições, conforme a posição política do observador. A Revolução dos
Cravos não foi exceção e mereceu a atenção dos meios de comunicação
internacionais[1] que, nas suas narrativas dos factos, refletiam as forças
políticas mais influentes e as posições geopolíticas dos diferentes países.
Assim, este artigo aspira a identificar interesses políticos das "duas
Alemanhas", isto é da República Federal da Alemanha (RFA) e da República
Democrática Alemã (RDA), através da análise das reportagens publicadas na
imprensa escrita de maior impacto em ambos os lados, nomeadamente em Die Zeit
na RFA e em Neues Deutschland na RDA.
O semanário Die Zeit foi escolhido devido ao facto de este jornal se situar no
centro-esquerda do espetro político alemão.[2] Por consequência, o Die Zeit
reflete subliminarmente as posições políticas do governo alemão da RFA de então
que, na altura, era constituído por uma coligação entre o Partido Social-
democrata Alemão (SPD) e o Partido Democrático Liberal da Alemanha (FDP).[3] No
caso da RDA, as ligações entre os artigos no jornal escolhido Neues Deutschland
[4] e as posições políticas do partido que governava a RDA, o Partido
Socialista Unificado da Alemanha (SED), são manifestamente mais fortes e, por
isso, mais evidentes, já que o Neues Deutschland era o jornal oficial do
partido que controlava os média com os instrumentos de um centralismo dito
democrático.[5]
Os artigos aqui em análise debruçam-se fundamentalmente sobre dois assuntos.
Primeiro, a cobertura mediática do golpe militar e da questão colonial e, em
segundo lugar, o tratamento dado à política interior portuguesa e ao Movimento
das Forças Armadas (MFA) nos referidos jornais. Tentaremos destacar posições
políticas das "duas Alemanhas" através das imagens selecionadas, da linguagem e
das referências intertextuais nos dois jornais escolhidos. Para uma análise
profunda da cobertura mediática, não pode ser negligenciado o contexto
específico[6] dos anos setenta, ou seja, o âmbito da Guerra Fria e a política
de "Détente", que influenciava a política das "duas Alemanhas" na altura. As
imagens veiculadas nos referidos jornais visam clarificar como estes dois
países se posicionavam politicamente face à Revolução dos Cravos, posições
essas que também podem ser consideradas como um teste para a política de
"Détente" na Europa. Além disso, adotar-se-á uma perspetiva que leva igualmente
em consideração a relação triangular RFA – Portugal – RDA, porque a RFA e a RDA
também observaram mutuamente as ações políticas e económicas dos estados do
outro lado da Cortina de Ferro. Assim, proceder-se-á primeiro a uma breve
apresentação das linhas principais da política externa dos dois Estados alemães
nos anos 70, com destaque para as respetivas relações com Portugal.
1. Portugal nas relações externas das duas Alemanhas
Em dezembro de 1972, a RFA e a RDA assinavam um tratado fundamental
("Grundlagenvertrag") que pode ser considerado a cimeira da nova "Ostpolitik"
do governo de Willy Brandt.[7] Seguindo o princípio da "Mudança através da
aproximação" proclamado pelo governo de maioria social-democrata, a RFA
reconheceu a existência da RDA, abandonou as ideias da Doutrina de Hallstein e
acabou assim oficialmente com a guerra diplomática entre os dois Estados
alemães.[8] Como consequência, a RDA estabeleceu, entre 1972 e 1975, relações
diplomáticas com quase todos os estados no mundo que anteriormente respeitavam
a Doutrina Hallstein como principal linha de orientação da política externa da
RFA e recusavam o reconhecimento diplomático da RDA.
Ainda que a guerra diplomática tivesse oficialmente terminado e não obstante a
adesão de ambos os estados à ONU em 1973, a guerra dos sistemas políticos
continuou e os dois estados alemães encontravam-se na linha principal de
combate. Essa luta teve uma expressão visível na política externa das duas
Alemanhas e também na cobertura mediática do conflito. Apesar da política de
"Detente" que dominou as ações políticas antes dos Acordos de Helsínquia em
1975, a Revolução dos Cravos em Portugal é uma das muitas provas de que, na
verdade, a luta continuou. Face ao isolamento diplomático da RDA antes do
tratado fundamental, é porém de destacar que a RDA intensificou já nos anos
sessenta o seu apoio aos movimentos de libertação no ultramar português.[9]
Por sua vez, a RFA foi aliado do Estado Novo no seio da NATO e tinha uma
relação forte com o império colonial português, vendeu armas e cooperou
economicamente com o regime na metrópole e no ultramar.[10] Após a tomada de
posse de Willy Brandt como chanceler federal, em 1969, a RFA ainda mantinha
laços fortes com o regime de Marcelo Caetano, apesar de ter a consciência de
que o regime colonial não tinha qualquer futuro e não obstante ter prestado
apoio à oposição, nomeadamente através do Instituto Alemão em Lisboa e ao grupo
de Mário Soares que fundou, em 1973, o Partido Socialista (PS) em Bad
Münstereifel, na RFA.[11] Perante esta ambiguidade, a posição da RFA não pode
ser determinada tão facilmente como a da RDA, que qualificou o regime português
como um sistema claramente fascista, alegadamente baseado no colonialismo e na
exploração dos trabalhadores. A RDA designou a ajuda da RFA a Portugal duma
política neocolonialista e imperialista. Por consequência, a RDA podia
apresentar-se no palco mundial como a "melhor Alemanha" que estava a apoiar os
povos oprimidos do mundo, em vez de criar novas estruturas do neocolonialismo,
tal como a RFA o estaria a fazer.
Mas mesmo que Portugal tivesse constado da agenda da política externa de ambos
os estados alemães, certo é que o golpe de estado de 25 de abril foi
manifestamente uma surpresa, quer para a RFA quer para a RDA[12] e teve lugar
numa altura em que ambas as Alemanhas estavam ocupadas com a resolução de
outros problemas. Enquanto a RFA se encontrava numa grave crise política
interna,[13] a RDA ainda estava plenamente concentrada na reorganização do seu
crescente aparelho diplomático, que desde 1972 sofrera uma certa
intensificação. Perante essa secundarização de Portugal nas suas políticas
externas, os dois estados alemães tiveram posteriormente problemas notórios no
que dizia respeito à avaliação das posições políticas do MFA e ao julgamento da
política interna portuguesa. Segundo o boletim político da Embaixada da RFA em
Portugal referente ao ano de 1974, não era possível constatar nem prever um
desenvolvimento politicamente estável, estar-se-ia a formar um agrupamento
político anticomunista e Portugal estaria à beira de um ano político de 1975
muito conturbado.[14] Neste documento oficial, não é clara a estratégia
política pretendida afirmando-se que "Portugal é para a RFA, para a NATO, para
a comunidade Europeia e para as nações aliadas na Europa ocidental um problema
difícil de perceber e tratar."[15]
Também na RDA, não houve uma estratégia claramente definida em relação a como
tratar do "problema português" e na historiografia existem poucas e divergentes
opiniões relativamente ao posicionamento da RDA face à Revolução dos Cravos.
Por exemplo, o politólogo Gerhard Wettig, um observador especializado da
política soviética, defendia que a União Soviética não queria arriscar "uma
segunda crise de Cuba em Portugal" que podia perturbar o desejado processo da
"Détente" na Europa.[16] Assim, os soviéticos teriam travado algumas ambições
da RDA que alegadamente visavam provocar uma certa agitação em Portugal. Por
sua vez, o jornalista Tilo Wagner destacou, num artigo publicado em 2006, que a
RDA teria ultrapassado as posições acauteladas da União Soviética ao apoiar o
Partido Comunista Português (PCP).[17] É certo que, sem o pleno conhecimento
das pastas dos arquivos soviéticos, é difícil avaliar qual dessas duas posições
se aproximará mais da verdade histórica, mas é acertado reconhecer que a
política da União Soviética foi, sem duvida, determinante para a política
externa da RDA. Nas referidas pastas do Bundesarchiv encontram-se assinalados
os objetivos da RDA em Portugal depois de 25 de Abril de 1974, designadamente:
intensificar os contactos oficiais e os contactos com as organizações
democráticas, desenvolver o comércio, agitação político-propagandística e,
finalmente, apresentar a RDA como referência cultural e desportiva.[18]
Apesar das relações Portugal – RDA relativas ao período aqui em análise
extravasarem o objeto do presente artigo, constituindo pois um campo de
investigação que carece ainda de estudos mais aprofundados, no que diz respeito
a uma (re)avaliação da primeira fase da Revolução dos Cravos, constata-se que
nos artigos do Neues Deutschland podem ser identificados vestígios e pistas
interessantes, entre outros, para uma melhor compreensão da política do PCP
durante o processo revolucionário. Relativamente a este assunto, podemos
recorrer aqui a um artigo de Jörg Seidel sobre a cobertura da Revolução dos
Cravos no jornal Neues Deutschland. Nesse breve ensaio destaca-se a importância
da ideologia que, como é evidente, teria transparecido de forma manifesta nas
reportagens.[19] Perante a necessidade de se ultrapassar este tipo de abordagem
demasiadamente redutor, de seguida, concentremo-nos, portanto, numa crítica
comparativa das imagens veiculadas nos dois jornais Neues Deutschland e Die
Zeit que representam duas ideologias distintas.
2. O golpe militar, a questão colonial e o General Spínola.
Por coincidência e, como é óbvio, ainda sem nenhuma ideia do que, precisamente
nesse mesmo dia de 25 de abril de 1974, estava a acontecer em Lisboa, o
semanário Die Zeit publicou um artigo sobre a resistência crescente da igreja
católica portuguesa contra a política colonial do regime. O autor do artigo
qualifica Marcelo Caetano como um ditador com um poder cada vez mais
enfraquecido, enquanto a influência da igreja pareceria intensificar-se.[20] O
primeiro artigo sobre os acontecimentos revolucionários em Lisboa apareceu na
semana seguinte e trata do assunto das colónias dando destaque ao impacto do
livro Portugal e o futuro da autoria do General António de Spínola. Este
primeiro artigo já reflete portanto uma posição política da RFA, que será
preponderante no primeiro ano pós-revolucionário, designadamente a sua
concordância com a exigência de eleições livres para uma assembleia
constituinte, que deveriam ter lugar no prazo máximo dum ano, tal como foi
prometido por Spínola, pela JSN e garantido pelo Programa do MFA.[21]
Por sua vez, a primeira referência no jornal diário Neues Deutschland aparece
logo no dia 26 de abril. Nesse artigo fala-se do golpe militar e do facto de os
oficiais rebeldes terem entregado o poder a uma Junta de Salvação Nacional
(JSN). Contrariamente ao primeiro artigo no jornal Die Zeit, que igualou a JSN
e Spínola como os principais organizadores do golpe, Neues Deutschland
apresenta uma posição algo divergente mencionando também que Mário Soares teria
igualmente concordado com os objetivos da JSN que incluíam eleições livres.[22]
Um dia mais tarde, Neues Deutschland dedicou-se sobretudo ao tema da desastrosa
guerra colonial que teria arruinado o país mais pobre da Europa e sido a causa
primordial do golpe militar. Neste artigo, há a destacar dois aspetos
interessantes relativos à avaliação por parte dos media.[23] Primeiro foi
citado o escritor Urbano Tavares Rodrigues, que consideraria Spínola como uma
alternativa dentro do próprio regime agora caído. As ideias de Spínola de um
"Commonwealth Português" contrariavam assim o interesse da RDA numa
descolonização total. Já nos primeiros artigos em Neues Deutschland pode ser
constado um certo desconforto relativamente a Spínola, o que também explica a
referência, no primeiro artigo, a Mário Soares, que é apresentado como aliado
futuro de Spínola. A visita de Agostinho Neto a Berlim Leste, no dia 8 de maio
de 1974, é um reflexo claro da posição da RDA relativamente à questão colonial.
Neto foi acolhido como um chefe de Estado pelo então presidente da RDA, Willi
Stoph,[24] que garantiu a solidariedade e firmeza da RDA na luta contra o
colonialismo e o neocolonialismo. No seu discurso oficial, Stoph afirmou que os
acontecimentos em Portugal foram uma declaração de bancarrota do imperialismo.
[25]
O segundo aspeto a realçar no artigo de 27 de abril de 1974 em Neues
Deutschland é a desqualificação da política da RFA com recurso a uma citação de
um artigo do jornal da Alemanha ocidental "Die Welt" de 22 de março do mesmo
ano. A RFA é aí apresentada como amiga da ultradireita do antigo regime que
preferia um Portugal pobre e oprimido mas em posse de Angola e Moçambique, um
país colonialista que seria da maior importância para a NATO em termos
geostratégicos.[26]
Num artigo a propósito das negociações em Londres com o PAIGC sobre a
independência da Guiné-Bissau, que incluíam, segundo o PAIGC, o território do
Cabo Verde, o Jornal Die Zeit referenciou igualmente os interesses da NATO nas
colónias portuguesas em África.[27] Também nas reportagens sobre a constituição
do primeiro governo provisório, Die Zeit considera a resolução do problema da
descolonização como o dever principal de Spínola: Como encontrar um compromisso
entre os colonos portugueses e os interesses económicos, por um lado, e, por
outro, os interesses dos movimentos de libertação que exigiam uma
descolonização total?[28] Dois meses mais tarde, em agosto de 1974, Die Zeit
avalia a ideia de Spínola de um "Commonwealth português" como ação falhada.[29]
Enquanto Spínola tinha sido apresentado anteriormente como fator de
estabilização no processo revolucionário, a partir do verão desse ano, a imagem
projetada do General Spínola denota uma notória perda de credibilidade. No
artigo "Sombras sobre o futuro de Spínola", a crise política que provocou a
demissão do primeiro governo provisório é apresentada como uma derrota de
Spínola que teria cometido outros erros na fase inicial do segundo governo
provisório.[30] Depois da demissão de Spínola, Die Zeit caracterizou-o como um
aristocrata teatral e despótico, incapaz de abandonar as suas ligações ao
regime derrotado.[31] Sob esta perspetiva, pode-se considerar que este
semanário da RFA analisou a situação política considerando que Portugal tinha
arriscado com Spínola um regresso a um sistema fascista. Relativamente a
Spínola, é ainda importante mencionar outra divergência de opinião nos média
alemães. Esta figura assume um papel muito importante nas reportagens de Die
Zeit, enquanto o Neues Deutschland se dedica mais a outros aspetos da situação
portuguesa até à queda de Spínola em setembro de 1974, que foi apresentada como
derrota do fascismo e que mostraria que a luta entre Democracia e Ditadura
ainda não estaria decidida.[32]
Antes de analisarmos de que forma a política interior portuguesa foi
mediatizada pelos dois jornais e quais terão sido os objetivos políticos que o
motivaram, falta ainda apresentar um aspeto relativamente à cobertura feita
diretamente a seguir ao dia 25 de Abril. Quer o Neues Deutschland, quer o Die
Zeit informaram os leitores sobre as características do antigo regime. A par
com a questão colonial, são focadas sobretudo as práticas da DGS/PIDE.[33]
Sobre esse assunto, Neues Deutschland publicou dois artigos, respetivamente nos
dias 23 de maio[34] e 1 de junho de 1974.[35] O primeiro artigo refere o
trabalho de uma nova comissão que estaria a investigar os crimes da PIDE e, no
segundo, o correspondente de Neues Deutschland, Klaus Steiniger, apresenta as
suas impressões de uma visita à fortaleza de Caxias.[36] É inquestionável que o
Neues Deutschland e os lideres da RDA tinham um interesse evidente em mostrar a
brutalidade de um sistema fascista cujos alvos tinham sido sobretudo
comunistas. Face a esta descrição das práticas violentas da PIDE, seria de
ponderar a questão, a que aqui obviamente não se poderá responder, se estes
artigos não terão feito pensar os leitores que também na RDA existia um
Ministério de Segurança do Estado (MFS/Stasi), um instrumento estatal que usava
métodos de opressão e silenciamento semelhantes.
E também o Die Zeit abordou esta temática publicando um artigo do escritor José
Cardoso Pires que visitou, juntamente com o então diretor do Instituo Alemão em
Lisboa, Curt Meyer-Clason, a sede principal da PIDE em Lisboa no dia 27 de
abril de 1974.[37] Enquanto o Neues Deutschland se debruça principalmente sobre
práticas de violência concreta da PIDE e o sofrimento dos presos políticos, o
artigo de José Cardoso Pires dedica-se ao impacto mais genérico da PIDE na
sociedade portuguesa que teria sido mantida em silêncio durante 48 anos. Ao
contrário dos artigos e dos livros de Klaus Steiniger, que visam uma condenação
geral de todos os instrumentos repressivos do antigo regime, Pires apresenta no
seu artigo também uma ideia da justiça democrática que teria que incluir o
perdão, para não se agir ao mesmo nível da PIDE e dos seus métodos punitivos.
[38]
3. O que acontece em Portugal? O posicionamento dos média alemães
O golpe de Estado do 25 de Abril foi inquestionavelmente uma surpresa para os
observadores políticos internacionais, sobretudo porque o regime de Marcelo
Caetano passava para o interior e exterior uma imagem de estabilidade, apesar
das suas fraquezas reais. Assim, é evidente, como afirmou Klaus Steiniger no
seu artigo de 27 de abril de 1974, que quase nenhum destes observadores foi
capaz de interpretar imediatamente os acontecimentos em Portugal.[39] Como aqui
já pudemos constatar, as primeiras reportagens esforçaram-se por fornecer aos
leitores da RFA e da RDA um retrato do regime deposto, o Estado Novo, que
incluía o problema da guerra colonial e da PIDE. Nas reportagens de Die Zeit, o
papel do General Spínola adquiriu uma fulcral importância, fazendo dele o
principal protagonista dos acontecimentos, enquanto o Neues Deutschland se
focou imediatamente no papel do proletariado na vitória sobre o fascismo. No
dia 4 de maio de 1974, o Neues Deutschland publicou dois telegramas de Erich
Honecker a Álvaro Cunhal e a Mário Soares, nos quais enviava saudações
fraternas e desejava ao povo português as maiores felicidades na continuação da
luta contra o fascismo.[40] No mesmo dia, Klaus Steiniger comentou a situação
atual em Portugal acentuando a importância da formação imediata de um governo
provisório que incluísse obrigatoriamente todas as forças antifascistas, como o
PCP, o PS e o Movimento Democrático Eleitoral (MDE).[41] Neste caso, o Neues
Deutschland reflete exatamente a posição política do Comité Central do SED que
desejava uma participação do PCP no governo sabendo que isso evitaria um
regresso reacionário ao fascismo no meio político e garantiria igualmente uma
aceleração do visado processo de descolonização.
Nos meses que se seguiram, Steiniger atribui nas suas reportagens sobre a
política interna em Portugal um papel fundamental ao PCP. Steiniger cita Álvaro
Cunhal, que exige a constituição de um governo composto por todas as forças
democráticas,[42] e refere-se também à ideia do PCP de construir uma frente
democrática para impossibilitar um regresso dos fascistas.[43] A formação do
segundo governo provisório é apresentada como uma vitória do povo porque o PCP
teria conseguido alcançar mais influência.[44] O Neues Deutschland usou
igualmente documentos oficiais do PCP, como foi o caso no dia 1 de junho de
1974, quando publicou um artigo do jornal Avante. Este artigo referia os
perigos das greves injustificadas como elementos que favoreciam ações extremas
à direita e à esquerda. Sob esta perspetiva, as reportagens do Neues
Deutschland também podem servir como referência no que diz respeito à avaliação
do papel do PCP durante a primeira fase do processo revolucionário, situação
que Raquel Varela (2011: 23) classificou como "uma política de contenção das
reivindicações dos trabalhadores."
Num artigo em Die Zeit, na sua edição do dia 20 de junho de 1974, as greves e
as exigências de subida dos salários são apresentadas aos leitores da Alemanha
ocidental como cravos com espinhos, nomeadamente para empresas alemãs em
Portugal como Bayer, Hoechst, Siemens e Schering.[45] Assim, a cobertura
mediática por parte da Alemanha ocidental reflete o medo de que os interesses
económicos da RFA em Portugal pudessem então ser ameaçadas pelo processo
revolucionário em Portugal. Em consequência, a queda do primeiro governo
provisório aparece como uma crescente influência do MFA, cujos membros foram
descritos, num artigo em Die Zeit, como aliados do PCP e contaminados pelas
ideias alegadamente confusas do socialismo. No mesmo artigo, o autor mostra-se
cético relativamente ao futuro de Portugal considerando que tudo seria
possível, desde uma ditadura de direita ou esquerda a uma democracia pluralista
que os desconhecidos e jovens oficiais do MFA teriam prometido.[46]
Mas nas reportagens em Die Zeit pode ser igualmente identificado um tom mais
compreensivo face aos problemas dos governos provisórios. Depois de 48 anos de
ditadura, seria perfeitamente normal que a população não tivesse a devida
experiência do funcionamento de uma democracia e que, por conseguinte, a
almejada democratização devesse ser encarada com um processo gradual. Por isso,
seria compreensível que as greves e as reivindicações salariais não exprimissem
nada mais do que um desejo legítimo e justificado dum futuro melhor.[47] A
cobertura mediática em Die Zeit oscila assim entre o medo e a esperança face
aos acontecimentos em Portugal, o que reflete as ambiguidades no posicionamento
político da RFA.
Da mesma maneira, o Neues Deutschland teve inicialmente problemas na avaliação
da política interna portuguesa, nomeadamente em relação aos objetivos do MFA.
Enquanto na RFA crescia o ceticismo relativamente aos desenvolvimentos em
Portugal, na RDA parece que ia aumentando a confiança. Os artigos publicados
depois da queda do primeiro governo provisório demonstram-no de forma bastante
clara. No dia 11 de julho de 1974, o Neues Deutschland tomou uma posição
inquestionavelmente favorável ao programa do MFA, concordou com a entrada dos
oficiais no segundo governo provisório e exigiu que a via democrática iniciada
no 25 de Abril fosse cumprida.[48] No dia 8 de agosto de 1974, o Neues
Deutschland apoiou o lema duma unidade "Povo-Forças Armadas"[49] e concordou
com a declaração do novo Primeiro Ministro Vasco Gonçalves sobre os problemas
económicos que impediriam novas subidas dos salários.[50] Seguindo os
princípios do Marxismo-Leninismo, o Neues Deutschland responsabilizou os
monopólios internacionais pela crise económica que teria sido provocada com o
intuito de travar as ambições das forças democráticas em Portugal.[51]
Finalmente, o Neues Deutschland considerou a demissão de Spínola uma vitória
consagrada da unidade antifascista na luta ainda não decidida entre democracia
e reação.[52]
Conclusões
Com a queda de Spínola acabou uma primeira etapa no processo revolucionário em
Portugal. A substituição de Spínola por Costa Gomes, que foi considerado, em
Die Zeit, como garante estabilizador, causou nas reportagens desse semanário da
RFA uma mistura de opiniões. Por um lado, as reportagens não só mostram uma
certa inquietação perante a possibilidade de Portugal estar no caminho para um
sistema incompatível com os valores do resto da Europa ocidental. Por outro, é
visível uma certa compreensão em relação ao desejo dos portugueses de
alcançarem rapidamente um futuro melhor que também poderia ser realizado sem o
General Spínola.
Os artigos e as reportagens aqui analisados refletem as posições políticas das
duas Alemanhas relativamente à política colonial, às dificuldades na análise do
golpe de estado e ao julgamento das posições políticas do MFA. No entanto, esta
primeira fase é notoriamente marcada pelos problemas de avaliação da situação
em Portugal. Nos primeiros artigos publicados de ambos os lados da Cortina de
Ferro imediatamente depois do golpe, são de realçar algumas semelhanças que, à
primeira vista, não deixam de surpreender. Ambos os jornais dedicam-se modo
geral à herança do Estado Novo, concentrando-se sobretudo nas temáticas da
guerra colonial e das práticas repressivas da PIDE. Uma diferença existe no
facto de na cobertura mediática de Neues Deutschland o processo de
descolonização ser apresentado como única opção, ao passo que a representação
dessa problemática em Die Zeit reflete preocupações políticas de uma
descolonização incontrolada.
A comparação das reportagens em Die Zeit e Neues Deutschland revela que,
enquanto no semanário ocidental o ceticismo face à situação em Portugal foi
crescendo, no diário da Alemanha de Leste foi aumentando a esperança.
Numa perspetiva triangular RDA-Portugal-RFA, é necessário a sublinhar que Die
Zeit não faz qualquer referência à RDA, a passo que o Neues Deutschland
desqualificou a política da RFA de acordo com a ideologia do Marxismo-
Leninismo, como neocolonialista, imperialista e perpetuadora das forças
reacionárias em Portugal. Portanto, o caso da cobertura mediática dos
acontecimentos do "abril português" mostra mais uma vez que a RDA seguia de
perto as ações da RFA, mas que a RFA, por sua vez, ignorava a RDA – ou fazia de
conta que a ignorava – sempre que era possível.
Em suma, pode-se considerar que, em relação ao período aqui analisado da
Revolução dos Cravos, se denota a falta de uma política claramente delineada
por parte das duas Alemanhas, o que é mais notório no caso da RFA. Mas os média
consubstanciavam então uma ajuda para avaliar o caso difícil de Portugal e já
refletiam, em certa medida, posições políticas que pouco depois viriam a ser
importantes, por exemplo aquelas adotadas durante "o verão quente" de 1975,
sobretudo respeitantes ao campo da economia, às eleições para a assembleia
constituinte no dia 25 de abril de 1975 ou, no caso de Neues Deutschland, à
necessidade de uma aliança "PovoMFA".
Ainda que uma análise da mediatização do "verão quente" e as ligações à
política externa das duas Alemanhas pudesse certamente levar a revelações
interessantes sobre o PREC, até porque nesta altura as posições políticas dos
dois estados alemães parecem mais determinadas e ainda mais divergentes do que
no período aqui focado, um trabalho desse género extravasaria o âmbito deste
breve estudo. Mesmo assim, é possível concluir que nesta fase inicial da
revolução a cobertura nos dois jornais apresentados é na maioria dos casos
marcada, apesar das diferenças ideológicas, por um motivo comum: uma certa
simpatia para com um povo que, durante quase meio século, fora oprimido, tanto
na "Metrópole" como no "Ultramar".