Gonçalo M. Tavares, Leitor de Michel Foucault: Loucura e Animalidade
Foi no confronto com o animal, aquele estranho estrangeiro tão distante e ao
mesmo tempo tão próximo de nós, que o homem desde sempre fabricou a sua
identidade. Durante séculos, a tradição ocidental, estabelecendo um corte
radical entre o homem e o animal, ensinou-nos a lutar contra o animal que
existe dentro de cada um de nós, reprimindo severamente a misteriosa e temível
animalidade que nos habita. Foi, portanto, pela imposição de um violento
adestramento a si própria que a espécie humana se emancipou da face obscura da
sua natureza animal.
Esta questão da animalidade enquanto grau zero da natureza humana constitui um
dos principais vetores problemáticos do pensamento de Michel Foucault
relativamente à questão da loucura. Em Histoire de la folie à l’âge classique,
o pensador francês apoia-se no conceito de animalidade para estabelecer uma
arqueologia da loucura e das relações de poder em diferentes momentos da
História da Humanidade. Ora, a atualidade das suas reflexões, bem como a sua
visão moderna sobre a questão colocam-no no centro do debate contemporâneo
sobre as relações entre o homem e o animal que tem polarizado, com força
renovada, a literatura e a filosofia contemporâneas.
No âmbito da literatura portuguesa, o legado filosófico de Foucault
relativamente ao binómio loucura/animalidade manifesta-se, de modo estimulante,
numa das mais recentes obras do escritor Gonçalo M. Tavares, intitulada
animalescos (2013a), onde o influxo da reflexão foucaldiana se cruza também com
a escrita pictural de Francis Bacon, intermediada pelo olhar crítico de Gilles
Deleuze.
1. Loucura e animalidade como grau zero da natureza humana
La folie emprunte son visage au masque de la bête.
(Michel Foucault)
O universo da loucura ocupa grande parte do território textual de Gonçalo M.
Tavares que, numa recente entrevista ao jornal brasileiro Pedaço de Vila,
confessa que "a questão da loucura e da perda da razão é uma coisa central para
[ele], e muitos dos [seus] livros estão centrados nessas questões" (Tavares,
2013b). Em animalescos, a temática da loucura, associada à animalidade enquanto
limite da condição humana, impõe-se como isotopia transversal a toda a obra,
colocada desde o início sob o signo de Francis Bacon e Gilles Deleuze.
Com efeito, o livro apresenta na capa uma ilustração ("Retrato de Henrietta
Moraes", 1969) do pintor inglês Francis Bacon, conhecido pela sua obsessão pela
representação do corpo e pelo traço macabro e pulsional com que (des)constrói
as suas anatomias caóticas, através das quais procura questionar os limites do
humano e revelar o espírito animal do homem. Bacon limpa, apaga, rasura e
esbate a imagem, desconstruindo e desorganizando o rosto, até fazer surgir
aquilo que Deleuze considera serem "les traits animaux de la tête" (Deleuze,
2002: 27), que não correspondem a formas animais concretas, mas antes a
espíritos que assombram essas zonas de opacidade e conferem à cabeça a sua
singular individualidade. Por outras palavras, os traços de animalidade
descobertos não assinalam uma correspondência formal entre o animal e o humano,
mas antes uma zona comum de indiscernibilidade entre o homem e o animal (idem,
28).
É precisamente nesta zona de vizinhança ou de indiscernibilidade entre o homem
e o animal que se situa a quarta pessoa do singular, cuja voz se torna audível
no livro de Gonçalo M. Tavares e que é, desde logo, anunciada em epígrafe pela
enunciação interposta de Gilles Deleuze: "quarta pessoa do singular; é ela que
se pode tentar fazer com que fale" (apud Tavares, 2013a). Numa entrevista em
que discorre sobre a vocação da filosofia,[1] Deleuze explica que toda a pessoa
que escreve faz com que outro fale, situando esse outro num fundo anónimo e
indiferenciado que não se reduz a indivíduos ou a pessoas, mas a singularidades
pré-individuais e impessoais (Deleuze, 2008: 185). Em animalescos, esta quarta
pessoa é corporizada por seres desterritorializados que não são indivíduos, nem
pessoas e tampouco animais, mas sim figuras animalescas, tão loucas e grotescas
quanto as de Francis Bacon.
O escritor português parece ter recortado as suas figuras de um hospício cujos
corredores o leitor vai percorrendo, a cada página, deparando-se com uma
multidão de loucos sem cabeça (idem, 34), alienados a andar de canto em canto
como animais acossados (idem, 48) ou fechados em compartimentos como animais
doentes (idem, 62), homens que estudam para animais (idem, 18) ou malucos
autodidatas que ficaram malucos sem a ajuda de ninguém (idem, 125).
São as vozes destes loucos que se vão fazendo ouvir ao longo dos 39 fragmentos
que constituem o livro, através de um relato sinuoso e descontínuo, situado no
plano do pulsional, constituído por uma torrente de palavras que
simultaneamente se atropelam e se dispersam a um ritmo vertiginoso. São
múltiplos os processos técnico-discursivos mobilizados pelo escritor para
conferir ao texto a sua densidade caótica: ausência total de parágrafos,
fragmentos que se iniciam com minúscula ou até com sinais de pontuação e que
não se fecham grafi amente, sendo a pausa prosódica marcada geralmente com
vírgula, repetições lexicais e estruturais, gestos e ações que se mesclam
indefi amente, conexões e hiatos imprevisíveis, entre muitos outros recursos
que, retomando uma expressão de Herberto Helder, transformam o texto num
"instrumento para acordar as vísceras" (Helder, 2006: 118).
O leitor rapidamente se perde numa espiral de loucura e delírio, ao som de
orquestras compostas "unicamente por atrasados mentais, por malucos,
esquizofrénicos, maníacos, psicopatas medicados ao ponto de a sua violência
acabar por sair por um som fino do violino" (Tavares, 2013a: 63).
Despojados da alma racional e intelectual que os distinguia dos animais, todos
estes seres animalescos se aproximam do grau zero da natureza humana, temática
amplamente desenvolvida por Michel Foucault na sua monumental Histoire de la
folie à l’âge classique, onde constrói uma arqueologia da loucura ao longo dos
séculos (Renascimento, Idade Clássica e Época Moderna), tentando sempre defini-
la em relação ao conceito de animalidade entendido como "cette partie de
l’homme à laquelle il refuse de donner sens, autrement que péjorativement"
(Chebili, 1999: 36).
Segundo Foucault, na Idade Clássica (séc. XVII e XVIII), a loucura delineia-se
como uma forma empírica de desrazão (déraison) ou perda da razão que, associada
à animalidade, é pressentida como negatividade e ameaça à ordem natural do
universo: "le fou, parcourant jusqu’à la fureur de l’animalité la courbe de la
déchéance humaine, dévoile ce fond de déraison qui menace l’homme et enveloppe
de très loin toutes les formes de son existence naturelle" (Foucault, 1972:
175).
O filósofo francês distingue duas formas de experiência da loucura que nesse
período se justapõem: a do insano, internado por desvio e subversão das regras
morais e éticas da época, e a do louco que, possuído pelo espírito animal,
sofre uma perda total da sua racionalidade humana. Assim, para o racionalismo
clássico, impregnado do espírito da filosofia cartesiana, a loucura afigura-se
como manifestação do não-ser (o eu que não pensa, não existe) e resulta da
relação imediata do homem com a sua animalidade, assumindo traços de uma
violência contranatura. O animal interioriza-se no louco e passa a constituir a
sua própria essência – "sa folie à l’état de nature" (idem, 166) –, deslocando-
o para os confins do humano: "L’animalité qui fait rage dans la folie dépossède
l’homme de ce qu’il peut y avoir d’humain en lui ; mais non pour se livrer à
d’autres puissances, pour l’établir seulement au degré zéro de sa propre
nature" (ibidem).
Foucault identifica como figuras da loucura – porventura as mais consistentes e
temíveis – a histeria (convulsões) e a hipocondria (alucinações),
progressivamente assimiladas como duas expressões de uma única e mesma doença
"fondée sur un mouvement des esprits animaux" (idem, 306). Com efeito,
manifestando-se como um transtorno dinâmico do corpo, a histeria e a
hipocondria resultam da ascensão e do movimento desordenado de espíritos
animais, durante muito tempo reprimidos pelo sujeito, no espaço corporal, que
deixa de constituir um conjunto sólido e contínuo de órgãos para se converter
numa extensão incoerente e desorganizada de massas disformes e contrárias a
toda a lei orgânica:
Les esprits animaux ‘à cause de leur ténuité ignée peuvent pénétrer
même les corps les plus denses, et les plus compacts,… et à cause de
leur activité, ils peuvent pénétrer tout le microcosme en un seul
instant’. […] L’hystérie, (…) c’est la maladie d’un corps devenu
indifféremment pénétrable à tous les efforts des esprits, de telle
sorte qu’à l’ordre interne des organes, se substitue l’espace
incohérent des masses soumises passivement au mouvement désordonné
des esprits. […] Le corps hystérique est ainsi offert à cette
spirituum ataxia qui, en dehors de toute loi organique et de toute
nécessité fonctionnelle, peut s’emparer successivement de tous les
espaces disponibles du corps. (Idem, 305-306)
Ora, o que não falta em animalescos são mentes histéricas conduzidas ao mundo
cruel da loucura e da desumanização pela libertação desvairada do seu espírito
animal, ou seja, corpos em movimento, cujos órgãos se dissolvem em massas
informes que tornam indiscernível a fronteira que separa o humano do animal. O
leitor é, assim, atropelado por homens que "avançam em grupo como se fossem uma
manada, envolvidos na sua animalidade até ao focinho" (Tavares, 2013a: 37).
Ainda segundo Foucault, tanto os loucos-animais como os insanos eram condenados
ao internamento, embora aos primeiros estivesse reservado um tratamento
especial. Com efeito, se os insanos eram ocultados do resto da sociedade, como
forma de evitar o escândalo e a propagação da imoralidade, os loucos eram
expostos ao público como aberrações insólitas, durante espetáculos organizados:
"L’internement cache la déraison, et trahit la honte qu’elle suscite, mais il
désigne explicitement la folie; il la montre du doigt" (Foucault, 1972: 162-
163).
A loucura surgia assim teatralizada de forma grotesca e apresentada como
"animal aux mécanismes étranges, bestialité où l’homme, depuis longtemps, est
aboli" (idem, 163). No fundo, o que se pretendia era confrontar os homens com
os abismos da degradação a que a rendição à animalidade os poderia conduzir,
numa tentativa de exaltação da moral e da razão: "on la [folie] montre, mais de
l’autre côté des grilles ; si elle se manifeste, c’est à distance, sous le
regard d’une raison qui n’a plus de parenté avec elle, et ne doit plus se
sentir compromise par trop de ressemblance" (ibidem).
Neste contexto, o mundo do internamento assumia a forma de um bestiário humano,
onde os loucos-animais eram tratados como bestas enfurecidas e submetidos a
práticas inumanas de domesticação e controlo que atingiam o paroxismo da
violência:
Ceux qu’on enchaîne aux murs des cellules, ce ne sont pas tellement
des hommes à la raison égarée, mais des bêtes en proie à une rage
naturelle : comme si, à sa pointe extrême, la folie, libérée de cette
déraison morale où ses formes les plus atténuées sont encloses,
venait à rejoindre, par un coup de force, la violence immédiate de
l’animalité. (Idem, 165)
No entanto, os métodos mobilizados para controlar a animalidade desenfreada dos
loucos não pretendiam "élever le bestial vers l’humain, mais restituer l’homme
à ce qu’il peut avoir de purement animal" (idem, 167-168). É na redução do
homem à animalidade que a loucura encontra a sua verdade e a sua cura, pois,
transformando-se em animal, a bestialidade humana, que constituía o escândalo
da loucura, desaparece, não porque o animal se tenha calado, mas porque o homem
se aboliu. Ora, quanto mais animal for o homem, mais próximo se encontra da
natureza e, por conseguinte, da redenção divina.
Com efeito, segundo Foucault, se o Cristianismo clássico repudiava os insanos
pelos seus pecados imorais, concedia ao louco o perdão, reconhecendo na loucura
"la coupable innocence de l’animal en l’homme" (idem, 173), ou seja, os confins
inferiores da humanidade em que o homem é ainda solidário com a natureza.
Assim, para os Padres da Igreja, a loucura representa "l’incarnation de l’homme
dans la bête, qui est, en tant que point dernier de la chute, le signe le plus
manifeste de sa culpabilité ; et, en tant qu’objet ultime de la complaisance
divine, le symbole de l’universel pardon et de l’innocence retrouvée" (idem,
173).
Esta condescendência divina encontra-se parodicamente representada nos
fragmentos de animalescos que constantemente ecoam as profecias apocalípticas
de um tirânico Cristo dos animais. Pressagiando a desumanização do homem,
procura restituir-lhe a sua essência primitiva, ou seja, a sua animalidade
perdida, ensinando-o a viver novamente de acordo com a sua natureza animal:
é isto que o Cristo dos animais quer, humanos de quatro patas que
estejam contentes, uma tribo de cem mil homens a quatro patas que se
fascinem com os ponteiros dos relógios tal como os seus ancestrais se
fascinavam com totens ou com a trovoada (Tavares, 2013a: 66).
Na verdade, tal como os terapeutas da Idade Clássica, também Gonçalo M. Tavares
exibe a loucura como espetáculo da degradação humana e retrocesso apocalíptico
da humanidade, expondo ao homem saudável a imagem inquietante e avassaladora da
sua possível queda na loucura e animalidade, de modo a fazê-lo tomar
consciência da fragilidade da sua condição humana.
2. Loucura, animalidade e biopoder
A lógica da máquina é mais violenta que a lógica dos animais.
(Gonçalo M. Tavares)
Segundo Foucault, se, na Idade Clássica, a animalidade constituía o não-ser do
homem e sinalizava os limites da sua natureza humana, na Época Moderna (séc.
XIX e XX) é o afastamento da sua existência natural e a perda de contacto com a
vida imediata do animal que abre o indivíduo aos perigos da loucura, vista
então como "la nature perdue, le sensible dérouté, l’égarement du désir, le
temps dépossédé de ses mesures; c’est l’immédiateté perdue dans l’infini des
médiations" (Foucault, 1972: 393).
O animal perde, assim, o seu valor de negatividade e passa a ser associado à
felicidade bucólica do mundo natural, do qual o homem cada vez mais se aliena,
construindo para si um meio, entendido aqui como metáfora da civilização,
adverso aos movimentos da natureza: "Le milieu commence là où la nature
commence à mourrir en l’homme" (idem, 392). Por outras palavras, "la folie a
été rendue possible par tout ce que le milieu a pu réprimer chez l’homme
d’existence animale" (idem, 394).
A loucura moderna assume, assim, os contornos de uma relação opositiva entre
natura e cultura, sendo o segundo destes termos negativamente polarizado:
Le milieu ce n’est pas la positivité de la nature telle qu’elle est
offerte au vivant; c’est cette négativité au contraire par laquelle
la nature dans sa plénitude est retirée au vivant ; et dans cette
retraite, dans cette non-nature, quelque chose se substitue à la
nature, qui est plénitude d’artifice, monde illusoire où s’annonce
l’antiphysis. (Idem, 392)
É, pois, escapando à sua animalidade intrínseca, pelo refúgio na civilização e
na cultura, que o homem se expõe à loucura, participando de uma máquina social
que o vai corrompendo até à desumanização. Com efeito, a crença do homem
moderno na técnica e no progresso, aliada a um irrefreável movimento de
intelectualização da sociedade, instituiu o mito da razão como ideal técnico de
explicação do cosmos pelo domínio absoluto da natureza, radicalmente disponível
para a exploração humana. Assim, instrumentalizada pelo homem, a razão
transforma-se num instrumento despótico de poder sobre a vida, designado por
Michel Foucault de biopoder.
No primeiro volume da sua Histoire de la sexualité, intitulado Volonté de
savoir, Foucault define dois polos essenciais de desenvolvimento deste biopoder
na sociedade moderna. O primeiro constitui uma espécie de anatomia política do
corpo humano que, considerado como uma máquina, é manipulado por práticas
repressivas de disciplina e adestramento que concorrem para "la majoration de
ses aptitudes, l’extorsion de ses forces, la croissance parallèle de son
utilité et da sa docilité, son intégration à des systèmes de contrôle efficaces
et économiques" (Foucault, 1976: 183). A segunda forma de poder, designada de
biopolítica da população, centra-se no corpo-espécie, ou seja, "le corps
traversé par la mécanique du vivant et servant de support aux processus
biologiques" (ibidem). Em síntese, explica Foucault que
Les disciplines du corps et les régulations de la population
constituent les deux pôles autour desquels s’est déployée
l’organisation du pouvoir sur la vie. La mise en place au cours de
l’âge classique de cette grande technologie à double face –
anatomique et biologique, individualisante et spécifiante, tournée
vers les performances du corps et regardant vers les processus de la
vie – caractérise un pouvoir dont la plus haute fonction désormais
n’est peut-être plus de tuer mais d’investir la vie de part en part.
(Ibidem)
Foucault denuncia, assim, este biopoder que condiciona severamente a vida,
exercendo um domínio absoluto sobre as relações dos homens entre si e com as
outras espécies, mobilizando para uns e outros as mesmas técnicas de
adestramento e controlo que, no fundo, culminam numa animalização ou
bestialização do homem, consoante a sua posição na hierarquia do poder.
Ora, na História da loucura, o filósofo apoiara-se já no binómio loucura/
animalidade para justificar estas relações de poder[2] que controlam o homem da
mesma forma que este domina o animal. Assim, estabelecendo uma ligação entre
política e animalidade e explorando a polissemia da palavra besta, Foucault
define o universo da loucura como cenário privilegiado de atuação desse poder
subjugante, exercido pela potência racional daqueles que internam sobre os
loucos internados e que se traduz no triunfo da bestialidade tirânica dos
primeiros sobre a animalidade dominada dos segundos:
Le fou n’est pas la première et la plus innocente victime de
l’internement, mais le plus obscur et le plus visible, le plus
insistant des symboles de la puissance qui interne. La sourde
obstination des pouvoirs, elle est là au milieu des internés dans
cette criarde présence de la déraison. La lutte contre les forces
établies, contre la famille, contre l’Église reprend au cœur même de
l’internement, dans les saturnales de la raison. Et la folie
représente si bien ces pouvoirs qui punissent qu’elle joue
effectivement le rôle de la punition supplémentaire, cette addition
de supplice qui maintient l’ordre dans le châtiment uniforme des
maisons de force. (Idem, 419)
Na verdade, o homem torna-se vítima do próprio progresso e racionalidade,
entrando num processo regressivo e autodestrutivo de dominação e desumanização,
que se traduz na subordinação do homem pelo homem que utiliza o seu poder
supremo para oprimir os mais fracos, sejam eles humanos ou animais. Por outras
palavras, o inimigo do homem deixou de ser a terrível animalidade que, desde
sempre, o tem assombrado e passou a ser ele próprio e a sua ação devastadora
sobre a natureza e o meio que o rodeia:
Ce n’était plus la bête qui était dangereuse, c’était le progrès soi-
même! […] Après beaucoup d’efforts et beaucoup de recherches, nous
étions parvenus enfi à identifi l’ennemi : c’était nous-mêmes! La
bête innocentée méritait nos pardons. Il fallait en urgence ouvrir
les cages, fermer les abattoirs, marronner les animaux domestiques et
révéler leur âme. Le grand culpabilisateur venait encore de frapper,
mais le combat changeait d’âme. Ce n’était plus la Nature qu’il
fallait museler, c’était la Culture d’où venait toute le Mal.
(Cyrulnik, 1998: 31)
Podemos assim dizer que as refl ões de Foucault na História da loucura
constituem um prognóstico certeiro do devir das relações entre humanidade e
animalidade no contexto da hipermodernidade, no qual aquelas cada vez mais se
encontram reguladas pelo triângulo homem/animal/artefacto:
L’animalité ne renvoie ni à une essence de l’homme, ni à une essence
de l’animal, mais plutôt à la façon qu’ont l’homme et l’animal
d’habiter un même espace physique et géographique. La notion
d’animalité ne sert ni à penser l’animal ni les marges de l’humain,
mais à préciser les rapports de l’homme à l’animal et leur rapport à
la machine. (Lestel, 1996: 22)
Em animalescos, é precisamente em torno desta triangulação que se vai
delineando o rosto da loucura. Nas microficções de Gonçalo M. Tavares, ela
parece derivar da reação do homem moderno a uma espécie de desencantamento do
mundo, impulsionando a substituição da mitologia pela tecnologia e dos animais
reais pelas máquinas:
Novas mitologias, centauros substituídos por motores a funcionar sem
qualquer sentido como os animais que não percebemos como fazem filhos
(…) são as máquinas que dormem no celeiro, ocuparam o lugar do feno e
dos cavalos, e não podes fazer barulho para não assustar esses novos
monstros, vais dar de comer à máquina de manhã como antes davas aos
animais… (idem, 30)
Numa entrevista concedida à Euronews, admitindo que "há um animal em nós" e
questionado acerca da violência desse nosso animal interior, Gonçalo M. Tavares
explica que "a lógica da máquina é mais violenta que a lógica dos animais",
pois "o animal pode matar se tiver medo ou fome mas a máquina mata mesmo não
tendo fome nem ódio" (apud Gonçalves, 2011), concluindo que "a moralidade da
máquina está a alastrar pela sociedade" (ibidem).
É, segundo nos parece, esta moralidade que se encontra adjacente à loucura
tematizada na maioria dos episódios de animalescos, onde a máquina,
subentendida como metáfora da razão, "vai matando e ensinando à medida que
avança" (Tavares, 2013a: 48). Responsável por uma conceção utilitarista e
manipuladora da natureza e da condição existencial do homem, a máquina veio
intensificar essas relações de poder foucaldianas que conferem ao humano a
sensação de domínio sobre tudo e todos: a natureza, os animais e o próprio
homem.
Efetivamente, a loucura que se intui em muitas das figuras animalescas de
Tavares surge associada a um confronto radical entre o homem e a natureza,
sobre a qual ele exerce uma opressão destrutiva, apoiando-se na técnica e no
metal, termo frequentemente utilizado ao longo do texto como sinónimo de
artefacto. Este violento jogo de forças entre o humano e o mundo natural
encontra-se explicitamente evocado no fragmento intitulado "espingarda / bala /
o pai / plantas / animais / obrigar a natureza a acelerar", no qual um homem já
velho entra em duelo com as forças da natureza, disparando violentamente contra
o solo, convicto de que a velocidade furiosa a que essas "sementes metálicas"
penetram na terra irá acelerar a colheita:
é atirar o metal para dentro da terra, fazê-lo mais forte, mais duro,
mais apto a crescer e a resistir à natureza que não quer que essas
coisas cresçam; porque há duas naturezas, uma que diz: cresce, e
outra que diz: não cresças; os ventos fortes, a geada, e até os
pequenos terramotos causados por movimentos errados do pai, tudo isso
que a natureza pode fazer combate o crescimento que o homem quer e as
balas são outro material que só o homem tem; do céu não chove metal e
isso é uma vantagem do ser humano: fez algo que os deuses e muitos
milénios não conseguiram; (…) e se do céu não vem metal, da arma do
pai vem, (…) deus nos salve mas é assim que aprendemos a fazer
crescer os animais, as plantas, os cereais, aqui tenho uma arma para
obrigar a natureza a acelerar e utilizo esta ameaça e, se necessário,
até outras de que me lembrei agora (idem, 46)
Esta violência torna-se extensiva aos animais reais que, em animalescos,
aparecem sobretudo como vítimas da perversidade do humano racional que os
coisifica sem pudor, infligindo-lhes as mais cruéis atrocidades em nome da
ciência e do progresso. Torna-se, pois, inteligível, na ficção miniatural de
animalescos, uma crítica implícita ao desrespeito ontológico do animal e ao
sofrimento que lhe é imputado, nomeadamente através das experiências
científicas. É o caso do texto "o dono do cão / a electricidade / o 2º Cristo /
morrer de fome", onde se descrevem várias experiências macabras exercidas sobre
cães:
e claro que podemos fazer mais experiências com cães (…): por
exemplo, durante semanas a cada tentativa do cão para sair do
quadrado, uma enorme descarga […] E a memória guardou com tal força a
violência do choque que o cão não tem coragem para sair do quadrado.
E a perversão continua: há muitos dias que o cão não come e agora
põem o alimento e a água a uns centímetros no exterior do quadrado:
isso não se faz, claro, isso é maldade má, mas as experiências são
assim e assim se construiu o progresso, tira da ciência a
perversidade e a ciência volta às carroças guiadas por cavalo… (idem,
49-50)
A crueldade atinge, contudo, o seu expoente máximo na forma como alguns
humanos, servindo-se do progresso e da tecnologia, tratam os da sua própria
espécie, reduzindo-os a seres subalternos e sujeitando-os às mais bárbaras
sevícias. Esta subjugação do homem pelo homem encontra-se metonimicamente
figurada no submundo dos hospitais psiquiátricos, onde os médicos tiranizam os
seus doentes, reduzindo-os a animais amestrados com o recurso a medicamentos e
castigos corporais (idem, 61-64) ou os abandonam impiedosamente às portas da
morte para serem devorados por lobos e urubus (idem, 91-93). Na realidade,
neste microcosmos da loucura, torna-se reconhecível uma consubstanciação
alegórica das relações de poder que regulam a sociedade contemporânea,
tecnocrática, capitalista e industrializada, onde a exploração humana atinge
contornos de uma violência que se torna ainda mais flagrante pela resignação
com que é aceite.
Uma destas formas de exploração do humano é, para Gonçalo M. Tavares, a
produção em série e a manipulação das massas, que reduz o trabalhador a mero
automatismo ou a uma espécie de animal machine neocartesiano, escravo de uma
inteligência mecânica exclusivamente fundada na lógica do rendimento e da
eficácia:
e é isso: valorizar a indústria, a fabricação em série, e não se
trata de fazer fisionomias idênticas, aos milhares, não se trata de
medir com réguas as pernas e braços e fazer destes membros uma função
que se repete, trata-se, sim, de tentar fazer um ódio em série, uma
excitação sexual em série, uma forma de sentir medo que seja igual em
cem mil homens, essa a dificuldade da fábrica necessária, a fábrica
demente… (idem, 112)
Ora, pior do que a exploração do homem pelo homem, só mesmo o extermínio entre
humanos, exposto em animalescos pela alusão ao holocausto, o mais violento
atentado do homem contra o seu semelhante, mutilado, torturado e chacinado em
campos de concentração e cenários de guerra. Essa violência torna-se
redobradamente cruel quando exercida sobre crianças:
não percebem que os queremos matar e as crianças são tão parvas que
se aproximam quando as ameaçamos e pensam QUE NÃO SOMOS ESTRANGEIROS
E ABREM A PORTA, os dois meninos entram, levaNTAS A TAMPA DO
CALDEIRÃO MAS NÃO ESTÁS NUM LIVRO DE FADAS, ABRES O LIVRO QUE RELATA
AS ATROCIDADES EXACTAS E BEM PLANEADAS dos fornos de A-B (Auschwitz-
B 9), as duas primeiras letras do alfabeto, pões os dois meninos,
atiras os dois meninos para dentro dessas páginas, das páginas onde
estão as plantas dos fornos crematórios encomendados à distinta
empresa Topf, mas os meninos não são como insectos que possam morrer
numa armadilha entre duas páginas, um livro fechado com força não
fecha os dois meninos lá dentro nem os mata, não se trata de
incinerar os vivos do século XXI, não há livros assim tão poderosos…
(idem, 84-85)
Esta imagem do genocídio como manifestação da barbárie animalesca e bestial do
homem sobre o próprio homem não pode deixar de evocar Elizabeth Costello,
protagonista de A vida dos animais de J. M. Coetzee, que, no decurso de uma
conferência sobre o tema dos animais, não hesita em estabelecer uma analogia
entre o modo como os humanos se relacionam com os animais e o modo como o III
Reich tratou os judeus:
"Foram como ovelhas para o matadouro." "Morreram como animais."
"Foram mortos pelos carniceiros nazis." A denúncia dos campos ecoa
tão completamente a linguagem das cercas de gado e dos matadouros que
quase não me é necessário preparar o terreno para a comparação que
estou prestes a fazer. O crime do III Reich, diz a voz da acusação,
foi tratar as pessoas como animais. […] Ao tratarem os seus
congéneres humanos, seres criados à imagem de Deus, como animais,
tornaram-se, eles mesmo, animais. (Coetzee, 2000: 27)
Entende-se, finalmente, a ressonância simbólica do título animalescos que
prefigura, por um lado, a bestialidade tirânica daqueles que se servem do poder
para uma exploração opressiva do vivente em geral e, por outro, a trágica
sujeição dos indivíduos mais fracos, reduzidos a bestas de carga ou até a gado
de matadouro. Coexistindo com estes humanos animalescos degradados pela
civilização triunfante, encontramos também o animal real, que surge como
reminiscência nostálgica de uma natureza perdida, ou seja, como exemplo de
plenitude vital e de convivialidade harmoniosa dos seres com o mundo que
habitam.
Assim, ao ritmo do discurso alucinado e esquizofrénico de animalescos, vão
emergindo flashes de uma desconcertante lucidez, através dos quais Gonçalo M.
Tavares – muitas vezes pela voz interposta desse Cristo dos animais – se dirige
ao leitor em clave didática, advertindo-o para os perigos da sociedade moderna
que espoliou o homem da sua essência natural – "e eis uma lição de moral:
mantém-te sobre quatro patas, se és um animal não queiras ser humano" (Tavares,
2013a: 70), pois "a forma como este animal inteligente argumenta tudo, esqueceu
o combate direto; dispara sobre o outro, maltrata o outro como o outro o
maltratou" (idem, 113). O autor não hesita, deste modo, em alvejar à
prepotência etno e egocêntrica do homem racional e à sua pretensa superioridade
sobre tudo e todos, nomeadamente sobre os animais, colocando-se no topo da
hierarquia dos viventes:
e esta mania da grandeza que o homem tem faz com que ele exija ver
tudo o que os animais vêem e ainda mais alguma coisa porque ele é
homem e está, na sua taxinomia privada, bem colocado: entre o solo e
o céu, acima dos animais e mesmo mesmo abaixo dos deuses e dos
mistérios ou de uma parte qualquer que existe lá em cima e nos dá
ordens e por vezes faz cair chuva (idem, 74-75)
Na verdade, esta hybris é inteiramente injustificada, porquanto todos lutamos
pela sobrevivência, todos combatemos por uma "questão animalesca do território"
(idem, 41), todos vivemos em queda constante e "todos caem à mesma velocidade"
(idem, 11). Na sequência dessa queda, o homem afunda-se na loucura e adentra-se
no território da maldade, sempre mais rápida e devastadora do que a bondade:
A bondade desce do céu, como se entre o solo sujo e a limpeza das
alturas existissem umas belas escadas; enquanto a maldade cai do céu,
como a bomba e a pedra, e o diabo também em poucos segundos está cá
em baixo. E tal diferença de velocidade talvez explique algo: o mal
em queda chega num segundo, o bom deus desce como quem flutua, sem
pressas. Quando chega cá abaixo: o caos, a desordem e a violência
instalados. (Idem, 59)
É este retorno do homem a um estado primário, em nome da maldade e da insânia,
que Gonçalo M. Tavares reconstitui ao longo de animalescos, amparado pelo
pensamento filosófico de Michel Foucault, numa impiedosa investigação da
loucura como inescapável condição humana. Firmando um compromisso ético com o
mundo, o escritor assume a função de desencantar, servindo-se da ficção como
"uma espécie de agulha que incomoda constantemente, uma espécie de chamada de
atenção" (apud Cantinho, 2004) para a reificação do homem contemporâneo que se
descobre, entre ruínas desabitadas, no mundo desumanizado que ele próprio
criou.
Em animalescos, Gonçalo M. Tavares procura denunciar uma certa condição
desumana à qual se encontra subordinado o homem contemporâneo, manietado por
uma racionalidade instrumental e mecanicista que o despojou da sua humanidade,
transformando-o num ser social burocratizado. Os fragmentos constituem, pois,
retratos lúcidos e impiedosos da degradação a que pode chegar o humano quando
abdica dos seus instintos animais mais básicos, celebrando o seu destino
tragicamente solitário de ser civilizado.