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EuPTHUHu0807-89672014000200015

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variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0807-8967
ano2014
Issue0002
Article number00015

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Gonçalo M. Tavares, Leitor de Michel Foucault: Loucura e Animalidade

Foi no confronto com o animal, aquele estranho estrangeiro tão distante e ao mesmo tempo tão próximo de nós, que o homem desde sempre fabricou a sua identidade. Durante séculos, a tradição ocidental, estabelecendo um corte radical entre o homem e o animal, ensinou-nos a lutar contra o animal que existe dentro de cada um de nós, reprimindo severamente a misteriosa e temível animalidade que nos habita. Foi, portanto, pela imposição de um violento adestramento a si própria que a espécie humana se emancipou da face obscura da sua natureza animal.

Esta questão da animalidade enquanto grau zero da natureza humana constitui um dos principais vetores problemáticos do pensamento de Michel Foucault relativamente à questão da loucura. Em Histoire de la folie à l’âge classique, o pensador francês apoia-se no conceito de animalidade para estabelecer uma arqueologia da loucura e das relações de poder em diferentes momentos da História da Humanidade. Ora, a atualidade das suas reflexões, bem como a sua visão moderna sobre a questão colocam-no no centro do debate contemporâneo sobre as relações entre o homem e o animal que tem polarizado, com força renovada, a literatura e a filosofia contemporâneas.

No âmbito da literatura portuguesa, o legado filosófico de Foucault relativamente ao binómio loucura/animalidade manifesta-se, de modo estimulante, numa das mais recentes obras do escritor Gonçalo M. Tavares, intitulada animalescos (2013a), onde o influxo da reflexão foucaldiana se cruza também com a escrita pictural de Francis Bacon, intermediada pelo olhar crítico de Gilles Deleuze.

1. Loucura e animalidade como grau zero da natureza humana La folie emprunte son visage au masque de la bête.

(Michel Foucault) O universo da loucura ocupa grande parte do território textual de Gonçalo M.

Tavares que, numa recente entrevista ao jornal brasileiro Pedaço de Vila, confessa que "a questão da loucura e da perda da razão é uma coisa central para [ele], e muitos dos [seus] livros estão centrados nessas questões" (Tavares, 2013b). Em animalescos, a temática da loucura, associada à animalidade enquanto limite da condição humana, impõe-se como isotopia transversal a toda a obra, colocada desde o início sob o signo de Francis Bacon e Gilles Deleuze.

Com efeito, o livro apresenta na capa uma ilustração ("Retrato de Henrietta Moraes", 1969) do pintor inglês Francis Bacon, conhecido pela sua obsessão pela representação do corpo e pelo traço macabro e pulsional com que (des)constrói as suas anatomias caóticas, através das quais procura questionar os limites do humano e revelar o espírito animal do homem. Bacon limpa, apaga, rasura e esbate a imagem, desconstruindo e desorganizando o rosto, até fazer surgir aquilo que Deleuze considera serem "les traits animaux de la tête" (Deleuze, 2002: 27), que não correspondem a formas animais concretas, mas antes a espíritos que assombram essas zonas de opacidade e conferem à cabeça a sua singular individualidade. Por outras palavras, os traços de animalidade descobertos não assinalam uma correspondência formal entre o animal e o humano, mas antes uma zona comum de indiscernibilidade entre o homem e o animal (idem, 28).

É precisamente nesta zona de vizinhança ou de indiscernibilidade entre o homem e o animal que se situa a quarta pessoa do singular, cuja voz se torna audível no livro de Gonçalo M. Tavares e que é, desde logo, anunciada em epígrafe pela enunciação interposta de Gilles Deleuze: "quarta pessoa do singular; é ela que se pode tentar fazer com que fale" (apud Tavares, 2013a). Numa entrevista em que discorre sobre a vocação da filosofia,[1] Deleuze explica que toda a pessoa que escreve faz com que outro fale, situando esse outro num fundo anónimo e indiferenciado que não se reduz a indivíduos ou a pessoas, mas a singularidades pré-individuais e impessoais (Deleuze, 2008: 185). Em animalescos, esta quarta pessoa é corporizada por seres desterritorializados que não são indivíduos, nem pessoas e tampouco animais, mas sim figuras animalescas, tão loucas e grotescas quanto as de Francis Bacon.

O escritor português parece ter recortado as suas figuras de um hospício cujos corredores o leitor vai percorrendo, a cada página, deparando-se com uma multidão de loucos sem cabeça (idem, 34), alienados a andar de canto em canto como animais acossados (idem, 48) ou fechados em compartimentos como animais doentes (idem, 62), homens que estudam para animais (idem, 18) ou malucos autodidatas que ficaram malucos sem a ajuda de ninguém (idem, 125).

São as vozes destes loucos que se vão fazendo ouvir ao longo dos 39 fragmentos que constituem o livro, através de um relato sinuoso e descontínuo, situado no plano do pulsional, constituído por uma torrente de palavras que simultaneamente se atropelam e se dispersam a um ritmo vertiginoso. São múltiplos os processos técnico-discursivos mobilizados pelo escritor para conferir ao texto a sua densidade caótica: ausência total de parágrafos, fragmentos que se iniciam com minúscula ou até com sinais de pontuação e que não se fecham grafi amente, sendo a pausa prosódica marcada geralmente com vírgula, repetições lexicais e estruturais, gestos e ações que se mesclam indefi amente, conexões e hiatos imprevisíveis, entre muitos outros recursos que, retomando uma expressão de Herberto Helder, transformam o texto num "instrumento para acordar as vísceras" (Helder, 2006: 118).

O leitor rapidamente se perde numa espiral de loucura e delírio, ao som de orquestras compostas "unicamente por atrasados mentais, por malucos, esquizofrénicos, maníacos, psicopatas medicados ao ponto de a sua violência acabar por sair por um som fino do violino" (Tavares, 2013a: 63).

Despojados da alma racional e intelectual que os distinguia dos animais, todos estes seres animalescos se aproximam do grau zero da natureza humana, temática amplamente desenvolvida por Michel Foucault na sua monumental Histoire de la folie à l’âge classique, onde constrói uma arqueologia da loucura ao longo dos séculos (Renascimento, Idade Clássica e Época Moderna), tentando sempre defini- la em relação ao conceito de animalidade entendido como "cette partie de l’homme à laquelle il refuse de donner sens, autrement que péjorativement" (Chebili, 1999: 36).

Segundo Foucault, na Idade Clássica (séc. XVII e XVIII), a loucura delineia-se como uma forma empírica de desrazão (déraison) ou perda da razão que, associada à animalidade, é pressentida como negatividade e ameaça à ordem natural do universo: "le fou, parcourant jusqu’à la fureur de l’animalité la courbe de la déchéance humaine, dévoile ce fond de déraison qui menace l’homme et enveloppe de très loin toutes les formes de son existence naturelle" (Foucault, 1972: 175).

O filósofo francês distingue duas formas de experiência da loucura que nesse período se justapõem: a do insano, internado por desvio e subversão das regras morais e éticas da época, e a do louco que, possuído pelo espírito animal, sofre uma perda total da sua racionalidade humana. Assim, para o racionalismo clássico, impregnado do espírito da filosofia cartesiana, a loucura afigura-se como manifestação do não-ser (o eu que não pensa, não existe) e resulta da relação imediata do homem com a sua animalidade, assumindo traços de uma violência contranatura. O animal interioriza-se no louco e passa a constituir a sua própria essência "sa folie à l’état de nature" (idem, 166) , deslocando- o para os confins do humano: "L’animalité qui fait rage dans la folie dépossède l’homme de ce qu’il peut y avoir d’humain en lui ; mais non pour se livrer à d’autres puissances, pour l’établir seulement au degré zéro de sa propre nature" (ibidem).

Foucault identifica como figuras da loucura porventura as mais consistentes e temíveis a histeria (convulsões) e a hipocondria (alucinações), progressivamente assimiladas como duas expressões de uma única e mesma doença "fondée sur un mouvement des esprits animaux" (idem, 306). Com efeito, manifestando-se como um transtorno dinâmico do corpo, a histeria e a hipocondria resultam da ascensão e do movimento desordenado de espíritos animais, durante muito tempo reprimidos pelo sujeito, no espaço corporal, que deixa de constituir um conjunto sólido e contínuo de órgãos para se converter numa extensão incoerente e desorganizada de massas disformes e contrárias a toda a lei orgânica:

Les esprits animaux à cause de leur ténuité ignée peuvent pénétrer même les corps les plus denses, et les plus compacts, et à cause de leur activité, ils peuvent pénétrer tout le microcosme en un seul instant. [] L’hystérie, () c’est la maladie d’un corps devenu indifféremment pénétrable à tous les efforts des esprits, de telle sorte qu’à l’ordre interne des organes, se substitue l’espace incohérent des masses soumises passivement au mouvement désordonné des esprits. [] Le corps hystérique est ainsi offert à cette spirituum ataxia qui, en dehors de toute loi organique et de toute nécessité fonctionnelle, peut s’emparer successivement de tous les espaces disponibles du corps. (Idem, 305-306)

Ora, o que não falta em animalescos são mentes histéricas conduzidas ao mundo cruel da loucura e da desumanização pela libertação desvairada do seu espírito animal, ou seja, corpos em movimento, cujos órgãos se dissolvem em massas informes que tornam indiscernível a fronteira que separa o humano do animal. O leitor é, assim, atropelado por homens que "avançam em grupo como se fossem uma manada, envolvidos na sua animalidade até ao focinho" (Tavares, 2013a: 37).

Ainda segundo Foucault, tanto os loucos-animais como os insanos eram condenados ao internamento, embora aos primeiros estivesse reservado um tratamento especial. Com efeito, se os insanos eram ocultados do resto da sociedade, como forma de evitar o escândalo e a propagação da imoralidade, os loucos eram expostos ao público como aberrações insólitas, durante espetáculos organizados: "L’internement cache la déraison, et trahit la honte qu’elle suscite, mais il désigne explicitement la folie; il la montre du doigt" (Foucault, 1972: 162- 163).

A loucura surgia assim teatralizada de forma grotesca e apresentada como "animal aux mécanismes étranges, bestialité l’homme, depuis longtemps, est aboli" (idem, 163). No fundo, o que se pretendia era confrontar os homens com os abismos da degradação a que a rendição à animalidade os poderia conduzir, numa tentativa de exaltação da moral e da razão: "on la [folie] montre, mais de l’autre côté des grilles ; si elle se manifeste, c’est à distance, sous le regard d’une raison qui n’a plus de parenté avec elle, et ne doit plus se sentir compromise par trop de ressemblance" (ibidem).

Neste contexto, o mundo do internamento assumia a forma de um bestiário humano, onde os loucos-animais eram tratados como bestas enfurecidas e submetidos a práticas inumanas de domesticação e controlo que atingiam o paroxismo da violência:

Ceux qu’on enchaîne aux murs des cellules, ce ne sont pas tellement des hommes à la raison égarée, mais des bêtes en proie à une rage naturelle : comme si, à sa pointe extrême, la folie, libérée de cette déraison morale ses formes les plus atténuées sont encloses, venait à rejoindre, par un coup de force, la violence immédiate de l’animalité. (Idem, 165)

No entanto, os métodos mobilizados para controlar a animalidade desenfreada dos loucos não pretendiam "élever le bestial vers l’humain, mais restituer l’homme à ce qu’il peut avoir de purement animal" (idem, 167-168). É na redução do homem à animalidade que a loucura encontra a sua verdade e a sua cura, pois, transformando-se em animal, a bestialidade humana, que constituía o escândalo da loucura, desaparece, não porque o animal se tenha calado, mas porque o homem se aboliu. Ora, quanto mais animal for o homem, mais próximo se encontra da natureza e, por conseguinte, da redenção divina.

Com efeito, segundo Foucault, se o Cristianismo clássico repudiava os insanos pelos seus pecados imorais, concedia ao louco o perdão, reconhecendo na loucura "la coupable innocence de l’animal en l’homme" (idem, 173), ou seja, os confins inferiores da humanidade em que o homem é ainda solidário com a natureza.

Assim, para os Padres da Igreja, a loucura representa "l’incarnation de l’homme dans la bête, qui est, en tant que point dernier de la chute, le signe le plus manifeste de sa culpabilité ; et, en tant qu’objet ultime de la complaisance divine, le symbole de l’universel pardon et de l’innocence retrouvée" (idem, 173).

Esta condescendência divina encontra-se parodicamente representada nos fragmentos de animalescos que constantemente ecoam as profecias apocalípticas de um tirânico Cristo dos animais. Pressagiando a desumanização do homem, procura restituir-lhe a sua essência primitiva, ou seja, a sua animalidade perdida, ensinando-o a viver novamente de acordo com a sua natureza animal:

é isto que o Cristo dos animais quer, humanos de quatro patas que estejam contentes, uma tribo de cem mil homens a quatro patas que se fascinem com os ponteiros dos relógios tal como os seus ancestrais se fascinavam com totens ou com a trovoada (Tavares, 2013a: 66).

Na verdade, tal como os terapeutas da Idade Clássica, também Gonçalo M. Tavares exibe a loucura como espetáculo da degradação humana e retrocesso apocalíptico da humanidade, expondo ao homem saudável a imagem inquietante e avassaladora da sua possível queda na loucura e animalidade, de modo a fazê-lo tomar consciência da fragilidade da sua condição humana.

2. Loucura, animalidade e biopoder A lógica da máquina é mais violenta que a lógica dos animais.

(Gonçalo M. Tavares) Segundo Foucault, se, na Idade Clássica, a animalidade constituía o não-ser do homem e sinalizava os limites da sua natureza humana, na Época Moderna (séc.

XIX e XX) é o afastamento da sua existência natural e a perda de contacto com a vida imediata do animal que abre o indivíduo aos perigos da loucura, vista então como "la nature perdue, le sensible dérouté, l’égarement du désir, le temps dépossédé de ses mesures; c’est l’immédiateté perdue dans l’infini des médiations" (Foucault, 1972: 393).

O animal perde, assim, o seu valor de negatividade e passa a ser associado à felicidade bucólica do mundo natural, do qual o homem cada vez mais se aliena, construindo para si um meio, entendido aqui como metáfora da civilização, adverso aos movimentos da natureza: "Le milieu commence la nature commence à mourrir en l’homme" (idem, 392). Por outras palavras, "la folie a été rendue possible par tout ce que le milieu a pu réprimer chez l’homme d’existence animale" (idem, 394).

A loucura moderna assume, assim, os contornos de uma relação opositiva entre natura e cultura, sendo o segundo destes termos negativamente polarizado:

Le milieu ce n’est pas la positivité de la nature telle qu’elle est offerte au vivant; c’est cette négativité au contraire par laquelle la nature dans sa plénitude est retirée au vivant ; et dans cette retraite, dans cette non-nature, quelque chose se substitue à la nature, qui est plénitude d’artifice, monde illusoire s’annonce l’antiphysis. (Idem, 392)

É, pois, escapando à sua animalidade intrínseca, pelo refúgio na civilização e na cultura, que o homem se expõe à loucura, participando de uma máquina social que o vai corrompendo até à desumanização. Com efeito, a crença do homem moderno na técnica e no progresso, aliada a um irrefreável movimento de intelectualização da sociedade, instituiu o mito da razão como ideal técnico de explicação do cosmos pelo domínio absoluto da natureza, radicalmente disponível para a exploração humana. Assim, instrumentalizada pelo homem, a razão transforma-se num instrumento despótico de poder sobre a vida, designado por Michel Foucault de biopoder.

No primeiro volume da sua Histoire de la sexualité, intitulado Volonté de savoir, Foucault define dois polos essenciais de desenvolvimento deste biopoder na sociedade moderna. O primeiro constitui uma espécie de anatomia política do corpo humano que, considerado como uma máquina, é manipulado por práticas repressivas de disciplina e adestramento que concorrem para "la majoration de ses aptitudes, l’extorsion de ses forces, la croissance parallèle de son utilité et da sa docilité, son intégration à des systèmes de contrôle efficaces et économiques" (Foucault, 1976: 183). A segunda forma de poder, designada de biopolítica da população, centra-se no corpo-espécie, ou seja, "le corps traversé par la mécanique du vivant et servant de support aux processus biologiques" (ibidem). Em síntese, explica Foucault que

Les disciplines du corps et les régulations de la population constituent les deux pôles autour desquels s’est déployée l’organisation du pouvoir sur la vie. La mise en place au cours de l’âge classique de cette grande technologie à double face anatomique et biologique, individualisante et spécifiante, tournée vers les performances du corps et regardant vers les processus de la vie caractérise un pouvoir dont la plus haute fonction désormais n’est peut-être plus de tuer mais d’investir la vie de part en part.

(Ibidem)

Foucault denuncia, assim, este biopoder que condiciona severamente a vida, exercendo um domínio absoluto sobre as relações dos homens entre si e com as outras espécies, mobilizando para uns e outros as mesmas técnicas de adestramento e controlo que, no fundo, culminam numa animalização ou bestialização do homem, consoante a sua posição na hierarquia do poder.

Ora, na História da loucura, o filósofo apoiara-se no binómio loucura/ animalidade para justificar estas relações de poder[2] que controlam o homem da mesma forma que este domina o animal. Assim, estabelecendo uma ligação entre política e animalidade e explorando a polissemia da palavra besta, Foucault define o universo da loucura como cenário privilegiado de atuação desse poder subjugante, exercido pela potência racional daqueles que internam sobre os loucos internados e que se traduz no triunfo da bestialidade tirânica dos primeiros sobre a animalidade dominada dos segundos:

Le fou n’est pas la première et la plus innocente victime de l’internement, mais le plus obscur et le plus visible, le plus insistant des symboles de la puissance qui interne. La sourde obstination des pouvoirs, elle est au milieu des internés dans cette criarde présence de la déraison. La lutte contre les forces établies, contre la famille, contre l’Église reprend au cœur même de l’internement, dans les saturnales de la raison. Et la folie représente si bien ces pouvoirs qui punissent qu’elle joue effectivement le rôle de la punition supplémentaire, cette addition de supplice qui maintient l’ordre dans le châtiment uniforme des maisons de force. (Idem, 419)

Na verdade, o homem torna-se vítima do próprio progresso e racionalidade, entrando num processo regressivo e autodestrutivo de dominação e desumanização, que se traduz na subordinação do homem pelo homem que utiliza o seu poder supremo para oprimir os mais fracos, sejam eles humanos ou animais. Por outras palavras, o inimigo do homem deixou de ser a terrível animalidade que, desde sempre, o tem assombrado e passou a ser ele próprio e a sua ação devastadora sobre a natureza e o meio que o rodeia:

Ce n’était plus la bête qui était dangereuse, c’était le progrès soi- même! [] Après beaucoup d’efforts et beaucoup de recherches, nous étions parvenus enfi à identifi l’ennemi : c’était nous-mêmes! La bête innocentée méritait nos pardons. Il fallait en urgence ouvrir les cages, fermer les abattoirs, marronner les animaux domestiques et révéler leur âme. Le grand culpabilisateur venait encore de frapper, mais le combat changeait d’âme. Ce n’était plus la Nature qu’il fallait museler, c’était la Culture d’où venait toute le Mal.

(Cyrulnik, 1998: 31)

Podemos assim dizer que as refl ões de Foucault na História da loucura constituem um prognóstico certeiro do devir das relações entre humanidade e animalidade no contexto da hipermodernidade, no qual aquelas cada vez mais se encontram reguladas pelo triângulo homem/animal/artefacto:

L’animalité ne renvoie ni à une essence de l’homme, ni à une essence de l’animal, mais plutôt à la façon qu’ont l’homme et l’animal d’habiter un même espace physique et géographique. La notion d’animalité ne sert ni à penser l’animal ni les marges de l’humain, mais à préciser les rapports de l’homme à l’animal et leur rapport à la machine. (Lestel, 1996: 22)

Em animalescos, é precisamente em torno desta triangulação que se vai delineando o rosto da loucura. Nas microficções de Gonçalo M. Tavares, ela parece derivar da reação do homem moderno a uma espécie de desencantamento do mundo, impulsionando a substituição da mitologia pela tecnologia e dos animais reais pelas máquinas:

Novas mitologias, centauros substituídos por motores a funcionar sem qualquer sentido como os animais que não percebemos como fazem filhos () são as máquinas que dormem no celeiro, ocuparam o lugar do feno e dos cavalos, e não podes fazer barulho para não assustar esses novos monstros, vais dar de comer à máquina de manhã como antes davas aos animais (idem, 30)

Numa entrevista concedida à Euronews, admitindo que " um animal em nós" e questionado acerca da violência desse nosso animal interior, Gonçalo M. Tavares explica que "a lógica da máquina é mais violenta que a lógica dos animais", pois "o animal pode matar se tiver medo ou fome mas a máquina mata mesmo não tendo fome nem ódio" (apud Gonçalves, 2011), concluindo que "a moralidade da máquina está a alastrar pela sociedade" (ibidem).

É, segundo nos parece, esta moralidade que se encontra adjacente à loucura tematizada na maioria dos episódios de animalescos, onde a máquina, subentendida como metáfora da razão, "vai matando e ensinando à medida que avança" (Tavares, 2013a: 48). Responsável por uma conceção utilitarista e manipuladora da natureza e da condição existencial do homem, a máquina veio intensificar essas relações de poder foucaldianas que conferem ao humano a sensação de domínio sobre tudo e todos: a natureza, os animais e o próprio homem.

Efetivamente, a loucura que se intui em muitas das figuras animalescas de Tavares surge associada a um confronto radical entre o homem e a natureza, sobre a qual ele exerce uma opressão destrutiva, apoiando-se na técnica e no metal, termo frequentemente utilizado ao longo do texto como sinónimo de artefacto. Este violento jogo de forças entre o humano e o mundo natural encontra-se explicitamente evocado no fragmento intitulado "espingarda / bala / o pai / plantas / animais / obrigar a natureza a acelerar", no qual um homem velho entra em duelo com as forças da natureza, disparando violentamente contra o solo, convicto de que a velocidade furiosa a que essas "sementes metálicas" penetram na terra irá acelerar a colheita:

é atirar o metal para dentro da terra, fazê-lo mais forte, mais duro, mais apto a crescer e a resistir à natureza que não quer que essas coisas cresçam; porque duas naturezas, uma que diz: cresce, e outra que diz: não cresças; os ventos fortes, a geada, e até os pequenos terramotos causados por movimentos errados do pai, tudo isso que a natureza pode fazer combate o crescimento que o homem quer e as balas são outro material que o homem tem; do céu não chove metal e isso é uma vantagem do ser humano: fez algo que os deuses e muitos milénios não conseguiram; () e se do céu não vem metal, da arma do pai vem, () deus nos salve mas é assim que aprendemos a fazer crescer os animais, as plantas, os cereais, aqui tenho uma arma para obrigar a natureza a acelerar e utilizo esta ameaça e, se necessário, até outras de que me lembrei agora (idem, 46)

Esta violência torna-se extensiva aos animais reais que, em animalescos, aparecem sobretudo como vítimas da perversidade do humano racional que os coisifica sem pudor, infligindo-lhes as mais cruéis atrocidades em nome da ciência e do progresso. Torna-se, pois, inteligível, na ficção miniatural de animalescos, uma crítica implícita ao desrespeito ontológico do animal e ao sofrimento que lhe é imputado, nomeadamente através das experiências científicas. É o caso do texto "o dono do cão / a electricidade / o Cristo / morrer de fome", onde se descrevem várias experiências macabras exercidas sobre cães:

e claro que podemos fazer mais experiências com cães (): por exemplo, durante semanas a cada tentativa do cão para sair do quadrado, uma enorme descarga [] E a memória guardou com tal força a violência do choque que o cão não tem coragem para sair do quadrado.

E a perversão continua: muitos dias que o cão não come e agora põem o alimento e a água a uns centímetros no exterior do quadrado: isso não se faz, claro, isso é maldade , mas as experiências são assim e assim se construiu o progresso, tira da ciência a perversidade e a ciência volta às carroças guiadas por cavalo (idem, 49-50)

A crueldade atinge, contudo, o seu expoente máximo na forma como alguns humanos, servindo-se do progresso e da tecnologia, tratam os da sua própria espécie, reduzindo-os a seres subalternos e sujeitando-os às mais bárbaras sevícias. Esta subjugação do homem pelo homem encontra-se metonimicamente figurada no submundo dos hospitais psiquiátricos, onde os médicos tiranizam os seus doentes, reduzindo-os a animais amestrados com o recurso a medicamentos e castigos corporais (idem, 61-64) ou os abandonam impiedosamente às portas da morte para serem devorados por lobos e urubus (idem, 91-93). Na realidade, neste microcosmos da loucura, torna-se reconhecível uma consubstanciação alegórica das relações de poder que regulam a sociedade contemporânea, tecnocrática, capitalista e industrializada, onde a exploração humana atinge contornos de uma violência que se torna ainda mais flagrante pela resignação com que é aceite.

Uma destas formas de exploração do humano é, para Gonçalo M. Tavares, a produção em série e a manipulação das massas, que reduz o trabalhador a mero automatismo ou a uma espécie de animal machine neocartesiano, escravo de uma inteligência mecânica exclusivamente fundada na lógica do rendimento e da eficácia:

e é isso: valorizar a indústria, a fabricação em série, e não se trata de fazer fisionomias idênticas, aos milhares, não se trata de medir com réguas as pernas e braços e fazer destes membros uma função que se repete, trata-se, sim, de tentar fazer um ódio em série, uma excitação sexual em série, uma forma de sentir medo que seja igual em cem mil homens, essa a dificuldade da fábrica necessária, a fábrica demente (idem, 112)

Ora, pior do que a exploração do homem pelo homem, mesmo o extermínio entre humanos, exposto em animalescos pela alusão ao holocausto, o mais violento atentado do homem contra o seu semelhante, mutilado, torturado e chacinado em campos de concentração e cenários de guerra. Essa violência torna-se redobradamente cruel quando exercida sobre crianças:

não percebem que os queremos matar e as crianças são tão parvas que se aproximam quando as ameaçamos e pensam QUE NÃO SOMOS ESTRANGEIROS E ABREM A PORTA, os dois meninos entram, levaNTAS A TAMPA DO CALDEIRÃO MAS NÃO ESTÁS NUM LIVRO DE FADAS, ABRES O LIVRO QUE RELATA AS ATROCIDADES EXACTAS E BEM PLANEADAS dos fornos de A-B (Auschwitz- B 9), as duas primeiras letras do alfabeto, pões os dois meninos, atiras os dois meninos para dentro dessas páginas, das páginas onde estão as plantas dos fornos crematórios encomendados à distinta empresa Topf, mas os meninos não são como insectos que possam morrer numa armadilha entre duas páginas, um livro fechado com força não fecha os dois meninos dentro nem os mata, não se trata de incinerar os vivos do século XXI, não livros assim tão poderosos (idem, 84-85)

Esta imagem do genocídio como manifestação da barbárie animalesca e bestial do homem sobre o próprio homem não pode deixar de evocar Elizabeth Costello, protagonista de A vida dos animais de J. M. Coetzee, que, no decurso de uma conferência sobre o tema dos animais, não hesita em estabelecer uma analogia entre o modo como os humanos se relacionam com os animais e o modo como o III Reich tratou os judeus:

"Foram como ovelhas para o matadouro." "Morreram como animais." "Foram mortos pelos carniceiros nazis." A denúncia dos campos ecoa tão completamente a linguagem das cercas de gado e dos matadouros que quase não me é necessário preparar o terreno para a comparação que estou prestes a fazer. O crime do III Reich, diz a voz da acusação, foi tratar as pessoas como animais. [] Ao tratarem os seus congéneres humanos, seres criados à imagem de Deus, como animais, tornaram-se, eles mesmo, animais. (Coetzee, 2000: 27)

Entende-se, finalmente, a ressonância simbólica do título animalescos que prefigura, por um lado, a bestialidade tirânica daqueles que se servem do poder para uma exploração opressiva do vivente em geral e, por outro, a trágica sujeição dos indivíduos mais fracos, reduzidos a bestas de carga ou até a gado de matadouro. Coexistindo com estes humanos animalescos degradados pela civilização triunfante, encontramos também o animal real, que surge como reminiscência nostálgica de uma natureza perdida, ou seja, como exemplo de plenitude vital e de convivialidade harmoniosa dos seres com o mundo que habitam.

Assim, ao ritmo do discurso alucinado e esquizofrénico de animalescos, vão emergindo flashes de uma desconcertante lucidez, através dos quais Gonçalo M.

Tavares muitas vezes pela voz interposta desse Cristo dos animais se dirige ao leitor em clave didática, advertindo-o para os perigos da sociedade moderna que espoliou o homem da sua essência natural "e eis uma lição de moral: mantém-te sobre quatro patas, se és um animal não queiras ser humano" (Tavares, 2013a: 70), pois "a forma como este animal inteligente argumenta tudo, esqueceu o combate direto; dispara sobre o outro, maltrata o outro como o outro o maltratou" (idem, 113). O autor não hesita, deste modo, em alvejar à prepotência etno e egocêntrica do homem racional e à sua pretensa superioridade sobre tudo e todos, nomeadamente sobre os animais, colocando-se no topo da hierarquia dos viventes:

e esta mania da grandeza que o homem tem faz com que ele exija ver tudo o que os animais vêem e ainda mais alguma coisa porque ele é homem e está, na sua taxinomia privada, bem colocado: entre o solo e o céu, acima dos animais e mesmo mesmo abaixo dos deuses e dos mistérios ou de uma parte qualquer que existe em cima e nos ordens e por vezes faz cair chuva (idem, 74-75)

Na verdade, esta hybris é inteiramente injustificada, porquanto todos lutamos pela sobrevivência, todos combatemos por uma "questão animalesca do território" (idem, 41), todos vivemos em queda constante e "todos caem à mesma velocidade" (idem, 11). Na sequência dessa queda, o homem afunda-se na loucura e adentra-se no território da maldade, sempre mais rápida e devastadora do que a bondade:

A bondade desce do céu, como se entre o solo sujo e a limpeza das alturas existissem umas belas escadas; enquanto a maldade cai do céu, como a bomba e a pedra, e o diabo também em poucos segundos está em baixo. E tal diferença de velocidade talvez explique algo: o mal em queda chega num segundo, o bom deus desce como quem flutua, sem pressas. Quando chega abaixo: o caos, a desordem e a violência instalados. (Idem, 59)

É este retorno do homem a um estado primário, em nome da maldade e da insânia, que Gonçalo M. Tavares reconstitui ao longo de animalescos, amparado pelo pensamento filosófico de Michel Foucault, numa impiedosa investigação da loucura como inescapável condição humana. Firmando um compromisso ético com o mundo, o escritor assume a função de desencantar, servindo-se da ficção como "uma espécie de agulha que incomoda constantemente, uma espécie de chamada de atenção" (apud Cantinho, 2004) para a reificação do homem contemporâneo que se descobre, entre ruínas desabitadas, no mundo desumanizado que ele próprio criou.

Em animalescos, Gonçalo M. Tavares procura denunciar uma certa condição desumana à qual se encontra subordinado o homem contemporâneo, manietado por uma racionalidade instrumental e mecanicista que o despojou da sua humanidade, transformando-o num ser social burocratizado. Os fragmentos constituem, pois, retratos lúcidos e impiedosos da degradação a que pode chegar o humano quando abdica dos seus instintos animais mais básicos, celebrando o seu destino tragicamente solitário de ser civilizado.


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