História prodigiosa de Portugal: mitos e maravilhas
RECENSÕES
História prodigiosa de Portugal: mitos e maravilhas. Joaquim Fernandes, Vila do
Conde: Quidnovi, 2012, 326 pp.
João Peixe*
*Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho; Braga Portugal.
jpeixe@ilch.uminho.pt
História Prodigiosa de Portugal: Mitos e Maravilhasnão é mais uma história da
nação. Assinado por Joaquim Fernandes, professor universitário e destacado
investigador da história e da filosofia das ciências, o volume dá a conhecer
alguns aspetos menos conhecidos da história de Portugal ligados à mitologia e
ao sobrenatural. O livro relata – lê-se na capa – "feitos excecionais da
lusitana casta". E o interior não defrauda o leitor. Pela pena esclarecida e
inspirada do autor, somos levados a visitar Mitose Maravilhasque povoa(ra)m o
imaginário português. São lendas de antepassados míticos e relatos de
intervenções sobrenaturais que, pela sua natureza, não cabem no registo oficial
da historiografia da nação e das suas gentes. Todavia, porque criaram crenças e
superstições, algumas que ainda hoje sobrevivem, são narrativas que moldaram a
identidade cultural de um povo, com implicações diretas ou indiretas no seu
devir.
O livro está dividido em duas partes, anunciadas no subtítulo da obra. A
primeira dedica-se aos Mitos que a tradição inscreveu na nossa memória
coletiva. Dos heróis míticos Tubal, Ulisses e Hércules, que deixaram a sua
marca em terras lusitanas (pp. 13 e sqq.), à nobre linhagem do ilustre
imperador Clarimundo, cujo sangue corria nas veias de D. Afonso Henriques
(ibidem), as origens da casta lusitana são das mais auspiciosas que se podem
desejar. Também não fi a fora de hipótese que os Açores sejam o que restou da
Atlântida após o misterioso desaparecimento daquela terra e do seu povo bem-
aventurado (pp. 27 e sqq.). E mesmo a fundação do reino estará abençoada pelo
Filho de Deus, que, ao rei fundador e ao seu povo, outorgou as terras, auxiliou
nos combates pela independência e vaticinou os maiores sucessos
civilizacionais. A própria mãe de Jesus tomou à sua guarda o povo português,
que desde então se tornou devoto mariano (pp. 69 e sqq.). Por outro lado,
sempre dos Céus vieram preciosos augúrios astrológicos para guiar governantes,
para avisar o reino de catástrofes e para valer a militares no campo de batalha
(pp. 93 e sqq.). Do relato do autor, fi a a imagem de um povo eleito,
predestinado a grandes feitos. Uma imagem que, com certeza, serviu para criar
uma identidade nacional, importante para a agregar as pessoas em torno de
grandes objetivos. Naturalmente, algumas destas narrativas foram decalcadas de
outras mais antigas, que também terão galvanizado outros povos. Destacam-se,
por exemplo, as semelhanças que entre D. Afonso Henriques e o Imperador
Constantino que, em vésperas de batalhas decisivas, lograram obter decisivos
sinais de Jesus Cristo (pp. 53-54); ou, então, o relato do comandante português
que, qual Josué, consegue uma prorrogação da luz do dia sobre o campo de
batalha e, qual Moisés, faz brotar água de uma rocha, para matar a sede aos
seus militares (p. 61).
O último capítulo da primeira parte vai deter-se na contrapartida de tão
grandes crenças no sobrenatural. Da mesma forma que se cria no sobrenatural
divino, também se cria no sobrenatural diabólico. Nas palavras do autor,
Portugal é um "país fidelíssimo que não tem rebuço de servir a dois senhores,
deuses repartidos na gestão de dois territórios, disputados entre o Bem e o
Mal, a Luz e as Trevas" (p. 123). Num reino sem o debate teológico suscitado
pelos movimentos reformistas que houve noutros locais, a atenção e o combate da
hegemónica Igreja Católica voltaram-se para as heresias, mormente as práticas
judaizantes e, em menor escala, os pactos demoníacos. Para as primeiras, foi
criado um discurso que demonizava os judeus (pp. 131 e sqq.), autênticos
demónios que assombravam a vida dos cristãos, consumiam os seus recursos e
acumulavam fortunas. Desta forma, fechava-se o processo de criação da
identidade nacional. Se na política os Céus nos bafejavam, estava encontrado o
inimigo infernal que vinha unir os cristãos contra tamanha ameaça.
Concomitantemente, perseguia-se quem quer que fosse suspeito de celebrar pactos
com o Demónio com vista à obtenção de benefícios não alcançáveis por via
natural (pp. 140 e sqq.). Não deixa de ser interessante notar, acrescentamos
nós, que, novamente devido à falta de debate teológico, a oração cristã, a
bênção de espaços e edifícios e mesmo alguns dos sacramentos sagrados tivessem
escapado a uma análise sobre a sua própria capacidade de obter esses tais
benefícios sobrenaturais, porventura heréticos, segundo a própria definição
contrarreformista. Pelo contrário, como se verá na segunda parte do livro, há
numerosos relatos de curas milagrosas atribuídas à intervenção divina que, não
obstante terem sido investigadas pelas diversas mesas da Inquisição do país,
foram reconhecidas pela hierarquia católica.
A primeira parte do livro termina deixando de fora "O Desejado". É certo que o
autor disseca toda a narrativa sebastianista num capítulo da segunda metade,
mas o Sebastianismo em Portugal parece-nos mais do que uma "maravilha".
D. Sebastião é a encarnação portuguesa do mito universal que designaríamos de
"Salvador Oculto", cuja expressão máxima está no culto messiânico da tradição
judaico-cristã. Ora, o desaparecimento do rei em Alcácer Quibir deu o mote
factual para a esperança generalizada no seu regresso, que, consumando-se,
permitiria a salvação da Pátria. Esperanças que foram atualizadas em inúmeras
intervenções literárias e não-literárias, do Padre António Vieira a Almeida
Garrett, entre outros. Preferiríamos, pois, ver esta crença analisada enquanto
mito constituinte da identidade, em vez de simples relato maravilhoso. Mesmo
que a argúcia científica do autor o levasse a concluir a impossibilidade do
Sebastianismo poder ser considerado um mito, gostaríamos de conhecer tal
raciocínio.
Segue-se a parte das "Maravilhas". São oito capítulos que expõem os factos e os
feitos que dão substância real à mitologia da nação, exposta na primeira metade
do livro. Realidade que dá substância, mas que, ao mesmo tempo, alimenta o
enraizamento desses mitos. O primeiro destes capítulos fala-nos da visita de
"cometas", cuja leitura astrológica autoriza as mais diversas "profecias". Nos
dois capítulos seguintes ficamos a saber da propensão do povo português para
ter "visões" paranormais, para ver nascer inúmeras "santidades" no seu seio,
para o culto de "relíquias", enfim, uma tendência invulgar para abraçar
manifestações e cultos do sobrenatural, mas que, como observa o autor, está no
limite da heresia. Nos capítulos seguintes, há espaço para o relato da ação de
alguns serventes do tal senhor a quem o autor dizia na primeira parte que
Portugal também serve. E são vários os "magos e curandeiros" que por terras
lusas passaram, prestando vassalagem ao Diabo e demais demónios, operando
benefícios e malefícios investidos do seu poder. Há também espaço reservado
para as narrativas de "monstros" bestiais e outras "raridades", bem como para
as histórias do "lendário oriental" que se trouxeram juntamente com as
especiarias.
Dois outros episódios da história de Portugal merecem do autor uma atenção
especial. Um, como já deixamos antever, dedicado ao "Sebastianismo e [aos]
Sebastiões" que grassaram por esse país fora. Efetivamente, segundo o autor,
não faltaram Sebastiões regressados de Alcácer Quibir ou quem visse o Encoberto
aqui e ali. O outro destaque, também meritório de um capítulo exclusivo, é a
Casa de Bragança que protagonizou a "fabulosa Restauração". Por anúncio divino
e extraordinário valor, estava o Duque de Bragança fadado a conduzir o país de
novo à sua autodeterminação. É essa predestinação excecional que este capítulo
documenta.
Em geral, esta segunda metade do livro não apresenta grandes generalizações ou
conclusões. Nela são descritos casos particulares que, afinal, são as
manifestações, porventura previsíveis, de uma cultura produzida pelo conjunto
de mitos analisado na primeira parte. Em todo caso, são "feitos excecionais"
que justificam o adjetivo escolhido para o título da obra: "prodigiosa".
Estamos perante um trabalho de elevado valor cultural, um contributo importante
para conhecer melhor a cultura do nosso país. É de salientar a profunda
pesquisa por trás do volume nas nossas mãos: um trabalho meticuloso de consulta
de fontes, nas mais das vezes desclassificadas pela sua natureza mítico-
maravilhosa. Num registo que oscila entre o científico e o popular, entre o
sério e o irónico, dando razão às palavras da contracapa, o autor leva-nos numa
"visita guiada aos subterrâneos do [nosso] inconsciente coletivo". Destinado ao
leitor comum, as fontes citadas, devido à vagueza da sua referência, poderão
não satisfazer um público universitário mais exigente e habituado a
bibliografias precisas. Sai o livro a ganhar em poder de recreação e facilidade
de leitura.
Na mesma série, está anunciado um segundo volume com o promissor subtítulo:
"Magias e Mistérios". Aguardamo-lo com expetativa.
Campus de Gualtar
4710-057 Braga
Portugal
ceh@ilch.uminho.pt