Ecos do holocausto na literatura portuguesa de potencial receção juvenil
1. Introdução
No final da II Guerra Mundial, surgiu uma literatura "nova, interessante e
comprometida" (Vándor, 1999: 323), denominada literatura do Holocausto, que tem
vindo a atrair muitos leitores. Na literatura do Holocausto, encontramos, por
um lado, os diários, as memórias e as autobiografias, e, por outro, a ficção
literária, sobretudo novelas e romances, de autores que escreveram a partir dos
testemunhos pessoais ou sem qualquer investigação prévia (Vándor, 1999).
As narrativas de sobreviventes são as mais emblemáticas da literatura do
Holocausto, tendo sido sobretudo através dos relatos testemunhais que o
acontecimento histórico foi dado a conhecer ao mundo. Parecem ter sido várias
as razões que levaram os sobreviventes a escrever as suas memórias, sobretudo
quando elas reabriam feridas tão profundas. As vítimas terão sentido
necessidade de narrar o que viveram, não só para dar testemunho do que
experienciaram, mas também para se libertarem do peso das recordações, numa
perspetiva terapêutica, catártica. Por outro lado, terão procurado na escrita
um sentido para todo o sofrimento vivido ou tentaram, numa dívida de memória
para com todos os que morreram, deixar um legado para as gerações futuras.
Finalmente, para alguns sobreviventes, a escrita constituiu um ato de denúncia
ou um gesto humanitário (Seligmann-Silva, 2005; Vándor, 1999).
Alba Olmi (2009), investigadora que pretende demonstrar a importância e o
alcance multidisciplinar e transdisciplinar da literatura oriunda dos
sobreviventes do Holocausto em termos de memória pessoal e de memória
histórica, apresenta, a partir do estudo de Stefano Zampieri (2004), a
periodização da literatura do Holocausto. A primeira fase, surgida
imediatamente após o final da II Guerra Mundial, abrange publicações impressas
por pequenas editoras, dirigidas a um público restrito composto essencialmente
por amigos, familiares e vizinhos dos sobreviventes, sendo o texto mais
representativo desta fase Se isto é um homem, de Primo Levi. As urgências
políticas e sociais do pós-guerra constituíram razões relevantes para a pouca
importância dada a esta literatura. Nesta altura, surgiu um certo sentimento de
culpa por parte dos sobreviventes, pelo facto de se encontrarem vivos, ao
contrário de muitos dos familiares e amigos, o que originou a política do
silêncio que vigorou até meados dos anos 50 (Olmi, 2009).
A partir de meados da década de 50, liderada pela obra emblemática Noite, do
sobrevivente Elie Wiesel, surge uma segunda fase, marcada pelo mito da vítima,
numa altura em que as pessoas estão disponíveis para ouvir/ ler os testemunhos.
A terceira fase ter-se-á iniciado nos anos 60, após o processo de Adolf
Eichmann, sendo A grande viagem, de Jorge Semprún, a obra considerada
referencial. Nesta fase, estabelece-se o novo papel das vítimas, valorizando-se
a sua dignidade enquanto testemunhas (Olmi, 2009).
Nos anos 90, para além dos livros escritos pelos sobreviventes, surgem outras
obras igualmente comprometidas com a memória, com objetivos educacionais,
assumindo responsabilidades morais, sociais, éticas e históricas (Olmi, 2009).
Quer as publicações de sobreviventes, quer as de membros de ‘segunda geração’
ou as de escritores, todas têm contribuído para a reflexão filosófica,
sociológica, literária e estética em torno do Holocausto (Seligmann-Silva,
2005).
2. Da representação do Holocausto
Nos anos subsequentes à II Guerra Mundial, o Holocausto não foi percecionado
socialmente como algo particular dentro dos horrores vividos durante o conflito
bélico que deflagrou naqueles anos. No entanto, a partir dos anos 60, essa
situação foi-se alterando, tendo evoluindo, desde o final do milénio, da
impossibilidade teórica de representação do Holocausto para a sua atual
popularização e representação (Munté Ramos, 2011).
Questão polémica surgida logo após a II Guerra Mundial, a reflexão sobre a
possibilidade de representação do Holocausto continua a alimentar debates e
estudos. Theodor Adorno afirmou, em 1949, naquela que é considerada a reflexão
inaugural sobre o problema ético da representação do Holocausto, que, "depois
de Auschwitz, escrever um poema seria um ato de barbárie".[1] Esta frase passou
a manifestar, utilizada fora do seu contexto inicial, a proibição solene da
representação (Munté Ramos, 2011: 73), a impossibilidade, o risco literário que
qualquer autor enfrentaria ao associar a arte ao sofrimento e ao horror
vividos.
Os constrangimentos relacionados com esta questão, e que podem ser verdadeiros,
na nossa opinião, para outros factos da História mais recente, como o genocídio
do Ruanda, a guerra na Bósnia-Herzegovina, no Burundi ou no Sudão do Sul,
prendem-se com a dimensão e a monstruosidade desse acontecimento histórico
singular (Zamora, 2000). O Holocausto é considerado um acontecimento sem
precedentes, um marco em termos históricos, sublinhando o historiador Saul
Friedlånder (1996: 3) que o que torna a Endlösung [Solução Final] um
acontecimento ‘nos limites’ é o facto de se constituir como a mais radical
forma de genocídio da História.
A questão da representação do Holocausto desencadeou um intenso debate nos
meios de comunicação social e na arte, sobretudo a partir das décadas de 60 e
70, quando existia já visibilidade e conhecimento social do Holocausto,
surgindo muitas vozes a reclamar que aquele não é passível de ser representado,
porque é inenarrável, porque não há palavras ou imagens capazes de traduzir os
atos de desumanidade infligidos, porque há limites, fronteiras éticas e
estéticas que não podem ser transgredidas.
Os argumentos essenciais contra a representação deste genocídio subordinam o
valor da imaginação e da ficção literária à narração histórica (Munté Ramos,
2011: 87), estando entre os seus principais defensores Elie Wiesel, Berel Lang
e Claude Lanzmann. Em 1977, Elie Wiesel afirmou, num texto que se tornou
referencial nesta questão da abordagem literária do Holocausto, que Auschwitz e
inspiração literária eram termos contraditórios, uma vez que "A novel about
Treblinka is either not a novel or not about Treblinka" (Wiesel, 1977: 7).
Baseando-se no facto de considerar o Holocausto como um acontecimento histórico
único, o autor questiona a utilização de eventos tão horrendos com objetivos
literários, reforçando a impossibilidade, por parte de quem não tenha
experienciado o Holocausto, do conhecimento da sua verdadeira e total dimensão.
Por seu turno, Berel Lang (2000), refletindo sobre os constrangimentos que
limitam a representação do Holocausto – o que pode ou deve ser representado
neste evento e como – reclama o respeito pelo acontecimento e pelos limites
históricos e éticos por ele impostos a todos os que o abordam. Lang considera
que apenas a não ficção, a crónica literal dos acontecimentos pode representar
de forma autêntica e verídica o Holocausto. Por isso, segundo o autor, qualquer
representação literária do genocídio apresentaria uma inferioridade moral em
relação a um relato histórico (Munté Ramos, 2011: 107).
Finalmente, Claude Lanzmann advoga que a ficção é transgressão, associando-a à
trivialização do sofrimento das vítimas do Holocausto, reportando-se o autor,
de modo particular, à ficção cinematográfica sobre o genocídio. Com efeito, a
série americana Holocausto, emitida em abril de 1978, desencadeou, pelo impacto
que teve não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo, uma acesa discussão
sobre questões essenciais no contexto da representação do Holocausto (Baer,
2006). Refira-se que a série inaugura uma época em que os meios de comunicação
de massa assumem um papel importante enquanto conformadores de perceções
coletivas (Ibidem). Claude Lanzmann e outros sobreviventes, entre os quais Elie
Wiesel, consideraram que Holocausto não passava de uma banalização ou mesmo um
insulto para as vítimas, receando que as representações veiculadas pelos
produtos da indústria cultural e com fins comerciais pudessem substituir a
própria História. Procurando contestar o poder homogeneizador dos meios de
comunicação social no controlo da memória coletiva (Baer, 2006)[2], Claude
Lanzmann recolhe testemunhos de sobreviventes, em diferentes locais, e
apresenta Shoah, o mais extenso documentário sobre o Holocausto, em 1985, no
Festival de Cannes.
Narrar o Holocausto, sobretudo quando falamos de textos ficcionais, parece,
pois, oferecer, desde sempre, constrangimentos particulares, apesar de alguns
estudiosos defenderem a ficção como a melhor forma de representação (Kokkola,
2003). Lawrence Langer defende a imaginação literária para representar o
Holocausto, sublinhando que a tarefa fundamental da crítica não é perguntar se
se deveria falar de literatura do Holocausto, uma vez que já existe, mas julgar
a sua eficácia e as suas implicações para a literatura e para a sociedade (apud
Munté Ramos, 2011: 119). Os textos literários sobre o Holocausto possuem, de
acordo com este autor, uma verdade literal (verdade factual, de documentar os
acontecimentos e as ações que ocorreram durante o Holocausto) e uma realidade
imaginativa (a capacidade de o escritor transformar a verdade literal numa nova
realidade que apela à imaginação), com efeitos perlocutivos importantes nos
leitores (apud Munté Ramos, 2011: 120).
Fernández López (2006: 5) sublinha que não é de estranhar que, desde a
perspetiva dos escritores sobreviventes, das testemunhas e de todos os
intelectuais que consideram o Holocausto como um acontecimento de profundas
implicações éticas, filosóficas e políticas, se exija o que autor designa por
"correta representação", uma representação que tem que estar ao serviço da
verdade e da memória. Segundo este investigador, esta questão da representação
do Holocausto torna-se ainda mais complexa quando nos deparamos, por um lado,
com obras ficcionais com uma intencionalidade artística, anamnésica, de autores
que não viveram os horrores perpetrados durante a II Guerra Mundial e, por
outro, com as memórias mais ou menos ficcionadas da autoria de sobreviventes.
No primeiro caso, os autores confrontam-se com o "desafio da ficção" baseada na
construção historiográfica da realidade, enquanto o narrar dos sobreviventes
sempre é acompanhado pela dúvida se o realmente vivido é comunicável através da
representação ficcional. Sejam quais foram as opções da ‘ficção-realidade’,
impõe-se, no entanto, uma ética do olhar (que ver e como ver) (Baer, 2006) .
3. O Holocausto na literatura portuguesa de potencial receção juvenil
Contrariamente ao que sucede nos países francófonos, na Alemanha, nos Estados
Unidos ou no Canadá (Delbrassine, 2006; Hubert-Ganyare, 1998; Nilsen &
Donelson, 2001), as manifestações literárias comprometidas com a História, com
determinados períodos em particular, como a II Guerra Mundial, são escassas na
literatura portuguesa de potencial receção juvenil.
A presença da temática do Holocausto na literatura de potencial receção juvenil
da autoria de escritores portugueses é, na verdade, extremamente residual. A
parca exploração deste assunto pode estar relacionada com o facto de Portugal
não ter tido uma intervenção ativa no conflito. Com efeito, Portugal proclamou
a neutralidade logo no dia 1 de setembro de 1939, aquando da invasão da
Polónia, data em que se inicia a II Guerra Mundial, uma neutralidade que parece
ter interessado a várias partes envolvidas na guerra (Muscznik, 2012).
Com efeito, é sobretudo a partir de publicações estrangeiras, traduzidas e
editadas em Portugal, que os leitores portugueses mais jovens têm acesso a
livros sobre este assunto, verificando-se, nos últimos anos, um investimento
editorial significativo nesta matéria. Para além do livro O Diário de Anne
Frank, traduzido por Ilse Losa em 1955, os jovens podem ler A ilha na rua dos
pássaros (Orlev, 1998), A rapariga que roubava livros, (Zusak, 2008), O rapaz
do pijama às riscas (Boyne, 2008) e o álbum Anne Frank (Poole & Barrett,
2005), todos recomendados pelo Plano Nacional de Leitura. No âmbito desta
temática, os leitores encontram ainda o livro Quando Hitler me roubou o coelho
cor de rosa, de Judith Kerr, autora nascida na Alemanha, publicado pela
primeira vez em 1971 e editado em Portugal, com a chancela da Editorial
Caminho, no início da década de 90 (Kerr, 1992), e os álbuns A história de
Érika (Zee, 2008) e Fumo (Fortes, 2008). Refira-se que o livro de Judith Kerr,
uma das primeiras narrativas sobre este assunto a ser traduzida e publicada em
Portugal, e obra recomendada em contexto escolar na Alemanha, recebeu, em 1974,
o Prémio Alemão de Literatura Juvenil. De cariz autobiográfico, narra a
história da fuga da protagonista e da sua família da perseguição nazi.
Recentemente, foram publicadas em Portugal narrativas em forma de diário que
testemunham na primeira pessoa os acontecimentos vividos no meio do horror, da
maldade e do sofrimento. Destacamos, neste contexto, O diário de Rutka
(Laskier, 2007); A rapariga do gueto (Bauman, 2008); Diário - o diário de uma
jovem judia em Paris sob a ocupação nazi (Berr, 2008); Clara, a menina que
sobreviveu ao Holocausto (Kramer, 2010); O Diário de Helga – A vida num campo
de concentração pelos olhos de uma jovem (Weiss, 2013), entre outros textos de
caráter testemunhal, como os livros Alice – lições de vida, fé e coragem da
mais antiga sobrevivente do Holocausto (Stoessinger, 2012) e O rapaz do caixote
de madeira (Leyson, 2014).
Noutros países, a abundância de livros sobre a temática do Holocausto a partir
da década de 90 (encomendas feitas a autores, mas também aos sobreviventes e
aos historiadores) parece estar relacionada não só com o crescente interesse na
literatura infantojuvenil, mas também com a institucionalização da memória da
Shoah. Nos Estados Unidos, na França e na Polónia, entre outros países
europeus, assiste-se a uma verdadeira explosão editorial constituída por
romances, testemunhos, banda desenhada e álbuns, alguns deles para leitores
adolescentes e adultos (Delbrassine, 2002; Finet, 2013; Hamaide-Jager, 2010;
Nilsen & Donelson, 2001).
Neste contexto, cremos ser pertinente referir a criação, em 1998, da
International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) constituída por 31 países
membros e 5 países observadores. Os principais objetivos desta aliança estão
presentes na Declaration of the Stockholm International Forum on the Holocaust
(IHRA, 2000), salientando-se o compromisso com a educação, a memória e o estudo
sobre o Holocausto; a promoção da educação sobre o Holocausto nas escolas e
universidades; o compromisso em honrar as vítimas e encorajar o estudo do
Holocausto em todas as suas dimensões. Portugal tornou-se, desde junho de 2009,
membro observador da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto.
Nos últimos anos, na sociedade portuguesa, têm vindo a ser desenvolvidas
algumas ações que contribuem para o conhecimento do Holocausto. A II Guerra
Mundial e o Holocausto são conteúdos curriculares abordados na disciplina de
História, no 9.º ano de escolaridade e, de forma mais aprofundada, no 12.º ano,
registando-se, em muitas escolas, projetos de articulação curricular em volta
da temática do Holocausto, sobretudo a partir das bibliotecas escolares.[3] É
pertinente salientar ainda a evocação do Dia Internacional em Memória das
Vítimas do Holocausto, criado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas através
da Resolução 60/7, em 2005, a 27 de janeiro, data da libertação do campo de
concentração de AuschwitzBirkenau. Em Portugal, têm vindo a ser realizadas
diversas iniciativas que visam evocar e preservar a memória daquele
acontecimento trágico, considerando o Estado Português que é um imperativo
promover a educação dos jovens sobre este período negro da História.[4]
Refira-se, ainda, neste contexto, a criação, em Portugal, da MEMOSHOÁ –
Associação Memória e Ensino do Holocausto, no seguimento do primeiro seminário
para professores portugueses sobre o ensino do Holocausto, que aconteceu em
agosto de 2008, pela Escola Internacional do Yad Vashem (em Jerusalém). Esta
associação foi fundada por Esther Mucznick, vice-presidente da Comunidade
Israelita de Lisboa, e por professores de História, e tem como objetivo o
desenvolvimento do trabalho de educação e memória do Holocausto, de forma
particular no meio escolar. Várias exposições e sessões de formação para
docentes têm vindo a ser realizadas desde então, em colaboração com o Yad
Vashem.
Por outro lado, é pertinente sublinhar que tem vindo a ser realizada
investigação sobre o Holocausto no nosso país, o que demonstra um crescente
interesse sobre o assunto.[5]Parece haver, no entanto, por partes dos autores
portugueses, alguma resistência em tratar literariamente um assunto tão
polémico, de abordagem tão complexa. Encontrámos sobre esta temática, e
pensando nos leitores mais jovens, apenas as seguintes narrativas: O mundo em
que vivi, publicado pela primeira vez em 1949 (Losa, 1987), Campos de lágrimas
(Letria, 2001), Mouschi, o gato de Anne Frank(Letria, 2002), com ilustrações de
Danuta Wojciechówska, e O caderno do avô Heinrich (Tomé, 2013).
O mundo em que vivi evoca, numa perspetiva de forte pendor autobiográfico, a
infância, nos tempos que se seguiram à I Guerra Mundial, a adolescência, nos
anos de crescimento do nazismo e do antissemitismo, e o início da idade adulta,
no período imediatamente após a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, da judia
alemã Rose Frankfurter.[6] Tal como em Quando Hitler me roubou o coelho cor de
rosa, de Judith Kerr, O mundo em que vivi não confronta os leitores com o
Holocausto, mas com os acontecimentos que o precederam, nomeadamente a
perseguição nazi e a fuga subsequente, protegendo-se os potenciais leitores da
exposição a atos de barbárie.
Campos de lágrimas, de José Jorge Letria, narra a viagem de uma família
portuguesa com filhos adolescentes à Alemanha, para visitar o campo de
concentração de Buchenwald, na tentativa de reencontrar as memórias de um
familiar (um avô) que ali possivelmente morreu.
Em Mouschi, o gato de Anne Frank, pela voz do animal de estimação, é dado a
conhecer aos leitores o que aconteceu a Anne Frank durante o período em que
esteve escondida no anexo em Amesterdão, fazendo-se referência ao seu diário e
a alguns episódios presentes no mesmo (as dificuldades do quotidiano
relacionadas com a alimentação, a higiene e os conflitos; o namoro entre Anne e
Peter; a relação da adolescente com a mãe e com a irmã…), evocando-se também
acontecimentos posteriores à detenção da menina judia.
Finalmente, em O caderno do avô Heinrich, um narrador alemão idoso, refugiado
no nosso país, relata ao neto episódios da sua infância, na Alemanha, na década
de 30; as dificuldades vividas nos anos difíceis da II Guerra Mundial, na
Polónia; e os laços de afeto que criou com um rapaz judeu, em Varsóvia, amizade
que mudou radicalmente a vida de ambos.
O mundo em que vivi é, tal como O Diário de Anne Frank, uma obra proposta pelo
programa curricular de Português para o 3.º ciclo do Ensino Básico, fazendo
ainda parte da lista das obras a ler no âmbito da Educação Literária
(introduzida pelas Metas Curriculares de Português) no 8.º ano, além de ser um
dos livros recomendados para leitura orientada na sala de aula pelo Plano
Nacional de Leitura, para o mesmo ano de escolaridade. O caderno do avô
Heinrich recentemente publicado pela Editorial Presença, foi o texto vencedor
do Prémio Literário Maria Rosa Colaço, na categoria de Literatura Juvenil, em
2012, sendo recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para leitura orientada
na sala de aula, para o 6.º ano de escolaridade.[7] Refira-se, no entanto, que
há outros livros de potencial receção juve-
nil de autores portugueses, de caráter mais informativo, sobre a temática do
Holocausto, como acontece com aqueles que dão a conhecer a vida de Aristides de
Sousa Mendes, cônsul em Bordéus, na altura da II Guerra Mundial, nomeadamente:
Chamo-me... Aristides de Sousa Mendes (Margarido, 2011) e Aristides de Sousa
Mendes – Herói do Holocausto (Ruy, 2005),este último recomendado pelo Plano
Nacional de Leitura para o 6.º ano de escolaridade.
4. A ideologia veiculada nas narrativas portuguesas de potencial receção
juvenil sobre o Holocausto
Quer ao nível da história quer ao nível do discurso, os textos ficcionais
constituem-se como contextos especiais para a ideologia operar, porque os
textos narrativos estão altamente organizados e estruturam discursos que podem
ser usados para expressar deliberadamente certas práticas sociais instituídas
ou veicular implicitamente normas e valores sociais (Stephens, 1992).
Hollindale (1992) identifica três dimensões no contexto da inscrição da
ideologia nos livros de potencial receção infantil e juvenil: a presença
explícita e deliberada das crenças sociais, políticas ou morais do autor e da
intenção deste em transmiti-las; a ideologia presente de forma implícita (que
Hollindale designa por "passive ideology", Idem, 29) e, por último, a presença
inerente da ideologia na linguagem, veiculando os textos os valores e as
crenças do mundo em que o autor vive: "A large part of any book is written not
by its author but by the world its author lives in" (Hollindale,1992: 32).
A análise da ideologia nos textos de potencial receção juvenil sobre o
Holocausto implica considerar o debate mais abrangente da representação
literária do Holocausto. De acordo com Kokkola (2003), a literatura tem
potencial para ser uma poderosa forma de apresentar o Holocausto aos mais
jovens, mas, de acordo com a investigadora, a existência do negacionismo
implica, necessariamente, maiores responsabilidades para os autores que
escrevem sobre este assunto. Por outro lado, como destaca Nadine Majaro (2014),
é também necessário compreender o que os autores tentam veicular: apenas a
promoção do conhecimento sobre o Holocausto ou a evocação da grandeza do
espírito humano relatando atos de resistência ou heroísmo? É o Holocausto
apenas representado como uma tragédia que envolve o povo judeu? E que mensagens
veiculam, neste contexto, as representações das vítimas e dos perpetradores?
No que diz respeito à evocação dos universos conotados com o mundo histórico-
factual, é pertinente sublinhar que as narrativas em causa relatam, em
retrospetiva, a partir de uma data mais ou menos próxima dos factos narrados,
eventos relevantes no contexto do Holocausto. Verifica-se um grande respeito
pelo potencial leitor, visível no modo como são facultadas e explicadas as
informações, garantindo uma abordagem desta temática ao alcance dos mais
jovens.
A leitura de O mundo em que vivi permite aos leitores conhecerem a situação
económica, política e social que antecedeu a II Guerra Mundial e o Holocausto,
que corresponde ao aumento da influência e vitória do partido Nazi e ações
relacionadas (desemprego, antisemitismo, perseguições aos judeus e a todos os
que não concordavam com o regime e primeiras deportações). Nesta narrativa são
feitas várias referências às alterações na vida quotidiana dos judeus,
marcando-se, de forma clara, um tempo anterior ao tempo sombrio do nazismo e um
outro tempo marcado pela violência e discriminação dos judeus:
Houvera um tempo longínquo, distante – uma eternidade o separava de
nós – em que eu e a minha gente nos tínhamos sentido bem ancorados,
um tempo em que ocupávamos um lugar legítimo no mundo. Éramos os
Frankfurter, fazíamos parte da comunidade, pertencíamos à cidade e ao
país. Mas depois tiraram-nos o chão debaixo dos pés, excluíram-nos do
povo alemão, transformaram-nos num "problema", um problema para os
outros, um problema para nós próprios (Losa, 1987: 155-156).
As manifestações antissemitas são mencionadas pela narradora-protagonista, com
mágoa: os colegas com a cruz suástica ao peito; as caricaturas monstruosas; a
discriminação na escola; os insultos à mãe quando fazia compras (cf. Idem,
156), as limitações impostas ao relacionamento entre cidadãos judeus e não
judeus.
A chegada de Hitler ao poder é referida de forma explícita nesta narrativa,
sublinhando-se as consequências previsíveis que essa vitória traria à vida dos
judeus: "o nosso futuro tinha-se decidido" (Idem, 183), afirma a narradora-
protagonista, deixando antever o horror que assombraria a Europa nos anos
seguintes. "Agora está mesmo por cima de nós" (Idem, 184), afirma a narradora,
a propósito da vitória de Hitler, utilizando metaforicamente a imagem da
tempestade que se vinha formando e que eclodiria nessa altura, sublinhando
desta forma a difícil situação em que os judeus se encontravam naquele momento,
na Alemanha.
De forma particular nos livros de José Jorge Letria, é promovido o conhecimento
do que se passou nos campos de concentração. Em Mouschi, o gato de Anne Frank,
chegam ao anexo "notícias terríveis da triste sorte de milhares de judeus
holandeses, presos e levados para campos de concentração" (Letria, 2002: 16) e
é conhecido o destino trágico da família de Anne Frank ("Mais tarde ouvi dizer
que todos eles tinham sido levados para campos de concentração e que a minha
querida Anne Frank tinha morrido no campo de concentração de Bergen-Belsen";
Idem, 33). É, no entanto, a narrativa Campos de lágrimas que dedica mais espaço
à exploração desta questão dos campos de concentração, descrevendo-os como
locais "de horror e miséria" (Letria, 2001: 9), espaços de grande "sofrimento
físico e moral" (Idem, 14) para onde foi levado o avô de Francisco, o narrador,
após ter sido preso pela Gestapo em França, onde lutava pela liberdade ao lado
das forças que combatiam o nazismo.
Em Campos de lágrimas, quase em jeito de reportagem jornalística, os
adolescentes (os filhos da família em viagem, mas também os potenciais
leitores) são confrontados com a realidade da existência dos campos de
extermínio, dando-se importância não só a aspetos históricos relacionados com a
data de criação do campo de concentração de Buchenwald (cf. Idem, 19), mas
descrevendo-se, de forma pormenorizada, o quotidiano dos presos, a partir do
momento que chegavam a Weimar: a humilhação do transporte em vagões de gado, a
separação de homens, mulheres e crianças, a falta de condições de higiene, a
fome, os maus tratos, as experiências médicas monstruosas realizadas pelos
nazis (cf. Idem, 22), os trabalhos forçados, a tortura e o assassínio. Os
leitores são conduzidos até aos fornos crematórios (mencionando-se na narrativa
também as câmaras de gás) e aos locais de fuzilamento, sendo referidos
explicitamente factos de grande crueldade, como é caso das fábricas que faziam
travesseiros e cabeleiras postiças com os cabelos cortados dos prisioneiros.
O facto de se fazer referência, de forma explícita, aos atos hediondos
perpetrados ou à forma como eram executados pelos nazis em Campos de lágrimas
deixa claro não estar latente nesta narrativa a intenção de proteger os
leitores mais jovens de atos demasiado cruéis (Bosmajian, 2002: 6), mas antes o
propósito de os confrontar com a verdade histórica.
Em O mundo em que vivi, a narradora, num altura que em relata momentos da sua
infância, recorrendo a uma prolepse, afirma: "Havia de chegar o tempo em que o
espectáculo de neve não me inspirava senão tristeza por saber os meus amigos a
morrer de frio em campos de concentração. Mas como adivinhar isso nessa época,
(…) e eu vivia despreocupada como toda a gente" (Losa, 1987: 60). Noutra
passagem textual deste mesmo livro, é feita referência ao destino trágico de
Marie, mulher do tio (Franz) da narradora-protagonista: "afeiçoei-me a ela.
Marie morreu. No fim da guerra, o seu nome figurou, burocraticamente, entre os
dos mortos em Buchenwald" (Idem, 113).
Da análise das narrativas em causa, concluímos que há algumas estratégias que
parecem estar ao serviço da veiculação de uma certa ideologia. Em primeiro
lugar, gostaríamos de destacar que a narração realizada pelo protagonista
surge, nos textos em análise, como um recurso poderoso. O mundo em que vivi e
Mouschi, o gato de Anne Frank (ainda que neste último caso seja o gato da
menina a contar a história) adotam um tipo de narração focalizada numa
personagem que, através do ato de recordar, controla a informação, doseando-a,
de modo a reter a atenção do leitor.
Na verdade, apesar de a narradora de O mundo em que vivi ser já adulta no
momento em que evoca o período das perseguições que precedem ao Holocausto,
relata os acontecimentos num "enquadramento (…) limitado pelo universo
psicológico da entidade focalizadora – a criança e, mais tarde, a jovem judia"
(Marques, 2001: 58), aproximando-se, desta forma, dos potenciais leitores e
promovendo a desejável identificação. O mesmo parece acontecer em Campos de
Lágrimas, devido ao facto de o narrador se dirigir a dois adolescentes, seus
filhos, ao mesmo tempo que se dirige aos potenciais leitores. No entender de
Stephens (1992), é importante considerar o papel do leitor implícito nesta
questão particular da ideologia, uma vez que, pela sua análise, se poderão
descortinar não só as intenções explícitas do autor real, mas também a
ideologia passiva de que fala Hollindale (1992). O leitor implícito previsto
nestas narrativas aproxima-se do perfil dos seus potenciais leitores.
Sublinhe-se ainda o facto de os narradores adultos em O mundo em que vivi e em
Campos de Lágrimas assumirem uma função privilegiada, porque são capazes de
relatar aquilo que uma criança ou um adolescente não seria, sendo detentores de
um saber / experiência verosímil. É pela voz dos adultos que os leitores são
conduzidos até ao Holocausto e a alguns dos momentos / espaços mais
representativos, assegurando-se, deste modo, a compreensão da mensagem e a
passagem da ideologia.
Em Campos de lágrimas, a narração é realizada por uma figura que transporta uma
grande carga afetuosa: um pai, que recorda um avô, ambos da mesma nacionalidade
que a globalidade dos potenciais leitores. A figura da criança / adolescente
vítima tem também um certo poder atrativo, constituindo-se, como sublinha
Delbrassine (2006: 317), como um "excellent mobilisateur de la sympathie du
lecteur", o que acontece no caso emblemático de Anne Frank, convocada pela voz
do seu gato de estimação, no livro de José Jorge Letria.
No que diz respeito às posições ideológicas veiculadas na caracterização das
vítimas e dos algozes, há que sublinhar algumas diferenças, possivelmente
relacionadas com as vivências dos autores. Ilse Losa, de origem alemã e
ascendência judaica, viveu na Alemanha antes da II Guerra Mundial, tendo sido
obrigada a abandonar o seu país em virtude da sua condição de judia e da
perseguição iminente. A sua visão dos anos que antecederam a II Guerra Mundial
é, claramente, feita de experiência vivida, refletindo-se esta sua condição de
testemunha em O mundo em que vivi.
Em relação às vítimas, refere-se, em Campos de lágrimas, que os prisioneiros
que chegavam a Weimar com destino ao campo de concentração de Buchenwald eram
"judeus, políticos, ciganos ou outros" (Letria, 2001: 14), "presos políticos,
criminosos de delito comum e testemunhas de Jeová" (Idem, 19), "comunistas ou
socialistas, ciganos, homossexuais" (Idem, 20), "padres" e "doentes mentais"
(Idem, 50), salientando-se, no entanto, que os judeus eram as principais
vítimas do terror dos campos (cf. Idem, 19). Sublinha-se o facto de terem sido
seis milhões os judeus mortos durante o Holocausto (Idem, 36), em vários campos
de extermínio mencionados no texto (cf. Idem, 50), mas não se considera o
Holocausto apenas uma tragédia judaica.
Na verdade, encontramos sobretudo personagens judias com grande protagonismo
nas obras em análise: é o caso da alemã Rose (cf. O mundo em que vivi) e da
jovem Anne Frank (cf. Mouschi, o gato de Anne Frank). Em O mundo em que vivi,
os traços físicos que apoiam o estereótipo do indivíduo judeu são
desconstruídos, uma vez que se apresentam aos leitores personagens de "rosto
amachucado, de nariz comprido", como é o caso da avó Ester (Losa, 1987: 106),
mas também a judia Rose Frankfurter, loira e de olhos claros. As imagens
estereotipadas relacionadas com as características físicas dos judeus são,
deste modo, questionadas em O mundo em que vivi, constituindo uma forma de
veicular posições ideológicas promotoras do respeito pelos seres humanos,
independentemente das suas especificidades. Nesta narrativa, demonstra-se a boa
integração da comunidade judaica na sociedade alemã, apesar do antissemitismo
latente que, à medida que, na narrativa, nos vamos aproximando da subida de
Hitler ao poder, vai assumindo contornos mais violentos, construindo uma
convivência incompatível entre os cidadãos judeus e não judeus.[8]
Apenas em O mundo em que vivi se dá a conhecer a comunidade judaica,
nomeadamente no que se refere à sua singularidade cultural e religiosa. Com
efeito, são várias as referências a festas ou a tradições religiosas[9], numa
clara valorização da cultura do Outro, veiculando-se, deste modo, o
conhecimento e o respeito pela diversidade cultural e religiosa.
Nas narrativas em análise, algumas vítimas do Holocausto são também opositores
ao regime. É o caso de Kurt, amigo de Rose, considerado pela polícia um "tipo
altamente perigoso" (Losa, 1987: 193), e do jovem que estava alojado na mesma
casa que a narradora, em Berlim. O mesmo acontece com o avô de Francisco, o
narrador de Campos de lágrimas, supostamente exterminado num campo de
concentração por lutar contra as forças nazis. Os alemães são responsabilizados
pela sua atuação, enquanto perpetradores ou observadores passivos,
identificando-se os elementos da Gestapo e o próprio Hitler, considerado um
grande líder político pela maior parte da população, mas também, por uma
minoria, um criminoso ("Senti nojo daquele cúmplice do assassino cuja
fotografia se exibia por cima da sua cabeça"; Losa, 1987: 193). Os funcionários
nazis são caracterizados sobretudo na sua dimensão psicológica, acentuando-se,
neste contexto, a agressividade e a falta de compaixão.
Entre os responsáveis pelo Holocausto parecem estar também os indivíduos que,
pelo silêncio e pela passividade, acabam por ser cúmplices dos crimes, (cf.
Losa, 1987: 165). A questão dos ‘bystanders’ é colocada em Campos de lágrimas
como um dos principais problemas desses anos, apontando o narrador o dedo, de
uma forma um pouco acrítica e sem a necessária contextualização, a todas essas
pessoas que consentiram que o Holocausto ocorresse:
– Então as pessoas viam e não faziam nada?quis saber Sofia.[…] É que
muita gente sabia o tipo de crimes que se cometiam e nada faziam para
os evitar (Letria, 2001: 13)
Não há nada que explique o silêncio cúmplice de grande parte de um
povo ao ver assassinar milhares de pessoas da mesma nacionalidade e
de outras nacionalidades sem razão aparente. E a verdade é que houve
milhares de alemães que colaboraram dia a dia com esta máquina de
terror e destruição (Idem, 34)
Em O mundo em que vivi, veicula-se, no entanto, uma perspectiva crítica e
reflexiva em relação a esta situação. Com efeito, há uma afirmação de um
professor de religião hebraica na obra citada que, na nossa opinião, parece
contrariar a visão algo maniqueísta presente noutras narrativas: "Em todos os
tempos e em todos os países cometeram-se e cometem-se injustiças. A razão
encontra-se sempre nas circunstâncias e nunca nos povos em si" (Losa, 1987:
76). Esta visão está também presente noutros momentos desta obra, veiculada
pela forma tolerante como a narradora se refere ao amigo Herbert que lutava em
França, pelo exército nazi:
Herbert tombaria em França combatendo por aqueles que eram os meus inimigos.
Creio bem que não lhe foi fácil submeter-se a essa gente. Nunca quis penetrar
em problemas complexos, era despreocupado e, talvez a seu modo, feliz. Há quem
o inclua na lista dos culpados. Mas eu não o posso fazer. (Idem, 133)
Para além de se promover o conhecimento sobre o Holocausto, em todas as
narrativas em análise evoca-se a grandeza do espírito humano relatando-se atos
de resistência ou heroísmo. É o caso dos indivíduos de nacionalidade alemã que
ajudaram os judeus ou outras vítimas, considerados seres humanos de grande
coragem e valor, sublinhando-se nas narrativas os riscos que corriam aqueles
que, não concordando com os horrores cometidos, o manifestassem publicamente
(cf. Letria, 2001: 35).
Em O mundo em que vivi, a irmã de Hedwig Schneider, professora primária, é
presa por ser contra o regime. Esta senhora acolhe Rose em sua casa depois de a
ter ouvido chorar, revelando uma grande humanidade e compaixão pelo sofrimento
de Rose e dos outros judeus:
Não posso ajudá-la. Pois quem sou eu? Uma simples professora primária
desconhecida. Mas talvez a conforte um pouco se lhe disser que sinto
simpatia por si e por todos os que sofrem. Tenho vergonha do nosso
povo, que desceu tanto. A Rose amanhã será julgada por ter dito a
verdade. Pois é verdade que esse homem é um criminoso. E são
criminosos todos aqueles que condenam os seus semelhantes pela raça e
não os apreciam pelas qualidades humanas. (Losa, 1987: 101-102)
Miep e os senhores Kluger e Kleiman, em Mouschi, o gato de Anne Frank, põem a
sua vida em risco sendo solidários com a família Frank e as outras pessoas que
viviam no anexo em Amesterdão ("Digo bem: grande coragem, pois ela arriscava-se
todos os dias, se fosse vigiada e seguida, a condenar os seus amigos à pior das
sentenças e a ser presa e talvez mesmo morta. Mas nunca desistiu", Letria,
2002: 31); o avô de Francisco, em Campos de lágrimas, é preso quando combatia
as forças nazis e levado para um campo de concentração, sendo apresentado como
um homem exemplar, altruísta. Afirma-se explicitamente que este avô "sempre
fora uma referência de dignidade e de coragem para a sua família" (Letria,
2001: 9), estando sempre ao lado dos mais desfavorecidos, "um homem honrado e
um lutador pela liberdade e pelos direitos dos outros" (Idem, 43).
Re?exões ?nais
As narrativas em causa neste artigo parecem estar comprometidas com os
objetivos da Declaration of the Stockholm International Forum on the Holocaust,
ou seja, "o compromisso em recordar as vítimas que pereceram, respeitar os
sobreviventes (…) e reafirmar a aspiração comum da humanidade a uma justiça e
compreensão mútuas" (IHRA, 2000; versão portuguesa). Sobretudo, realça-se o
facto de o Holocausto ter sido fruto da loucura humana e de mentes criminosas
("nenhuma delas cometeu crime de qualquer espécie. O único crime que podem ter
cometido foi o de serem diferentes, o de serem judeus, ciganos ou apenas homens
e mulheres que lutavam pela liberdade contra a tirania", Letria, 2001: 33).
Há intenção explícita em dar a conhecer os anos anteriores ao Holocausto (cf. O
mundo em que vivi), o que ocorria nos campos de concentração (cf. Campo de
lágrimas), registando-se uma fidelidade à História. As narrativas partem, pois,
do factual para o ficcional, sendo a matéria histórica a base para a construção
literária.
O nazismo é percecionado como algo imoral e terrível que levou a "uma das
maiores tragédias de toda a história da Humanidade" (Letria, 2001: 12), sendo
apresentados aos leitores verdadeiros heróis, capazes de mudar um pouco o mundo
à sua volta, interpelando-os pelo seu comportamento exemplar. Esta dimensão
pedagógica, educativa, que visa a formação de seres humanos respeitadores dos
direitos de todos e das diferenças, está explicitamente patente nas narrativas
em análise.
Em Campos de lágrimas encontramos a seguinte dedicatória: "Aos leitores mais
jovens, para não deixarem que se repita o maior crime da história da
Humanidade", parecendo evidente o objetivo formativo deste texto. A intenção
preventiva é manifestada explicitamente na narrativa citada, responsabilizando-
se os leitores pelo futuro: "De qualquer modo, nunca se sabe, e o melhor é
pensarmos que sempre que o pior pode voltar a acontecer, se as pessoas onde
quer que estejam e façam o que fizerem na vida, não lutarem pela defesa da
liberdade e dos direitos dos seres humanos" (Idem, 14).
A igualdade entre os seres humanos, apesar das diferenças, é reforçada
recorrentemente, de forma explícita, constituindo a opção ideológica a seguir
para que o Holocausto não volte a acontecer. Evoca-se o passado, na tentativa
de se construir um melhor futuro, comprometendo-se os leitores, para que o
Holocausto não se repita. Neste contexto, apontam-se, em Campos de lágrimas,
alguns indícios de preocupação no mundo atual (referência aos episódios
racistas que envolvem a comunidade turca, ao negacionismo, aos grupos de jovens
neonazis, ao partido de George Haider, na Áustria e à Frente Nacional, em
França e às semelhanças que estes partidos apresentam com o partido nazi). Os
leitores são envolvidos e convocados para partilhar uma ideologia de teor
pacifista, condenando-se o nazismo explicitamente.
O narrador de Campos de lágrimas lembra ainda o atual conflito israelo-
palestiniano, responsabilizando os descendentes dos judeus assassinados nos
campos de concentração que, em Israel, utilizam métodos semelhantes aos dos
nazis, ajudando os leitores a refletir sobre esta questão da discriminação e do
ódio desde diferentes perspetivas.
Algumas das questões em debate no contexto da literatura do Holocausto,
nomeadamente a discussão sobre a responsabilidade moral da literatura e a
fidelidade à História, parecem evidentes nestes textos, sendo as narrativas em
causa testemunhos ao serviço da verdade e da memória universal.