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EuPTHUHu0807-89672014000300021

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variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0807-8967
ano2014
Issue0003
Article number00021

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Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura & Noé Senda

1.

No texto que se viria a constituir como o primeiro tratado de pintura exclusivamente dedicado ao retrato, Francisco de Holanda afirma no segundo capítulo de Do Tirar Polo Natural (1549) que o isolamento do desenhador é condição essencial à boa execução da obra. Este pensamento é tanto mais radical que Holanda exclui do espaço artístico o próprio modelo: "quero dizer-vos ainda mais: que se pudera estar o mesmo desenhador , sem ninguém, e ter na fantasia e na memória a pessoa que há-de pôr em obra e pintar, crêde que muito melhor seria tê-la diante de olhos visíveis se a visse com invisíveis." (Holanda, 1984a: 18). As indicações de Holanda parecem abalar o que o título do tratado sugere, transferindo a ideia de "natural" para a mente do artista. Das palavras de Holanda, destacaria três que indiciam uma certa visão do conceito de retrato: fantasia, memória, e olhos invisíveis. Parece haver um descentramento do retrato para o espaço interior do artista, ecoando o preceito de arte enquanto cosa mentale de Da Vinci.

Não obstante a exímia técnica de desenho de que é possuidor, a relutância que Miguel Ângelo Buonarrotti demonstra em retratar modelos vivos reitera a visão de Holanda. Esta recusa absoluta da presença do modelo vivo reflete a ideia de que o retrato se baseia apenas na questão da semelhança, respondendo antes a outros apelos que não o que se limita a um cadastro fisionómico. Como aponta Édouard Pommier, Miguel Ângelo privilegia o aspeto memorial do retrato em detrimento da semelhança. Eis a função essencial do retrato aos olhos de Holanda e Miguel Ângelo, a sua sobrevivência à morte.

De resto, desde os primeiros relatos que nos chegam sobre a origem do retrato, constatamos que ausência e morte andam emparelhadas. Destas parece irromper o ato retratístico. Ao observar as narrativas que se reportam aos primórdios do retrato na cultura ocidental, verificamos que lhes surgem sempre associados a ausência e a perda. Relembremos a célebre história que alude ao banquete no qual o teto do palácio desaba sobre os comensais e o poeta Simónides de Cos consegue, de memória, restituir o rosto dos defuntos de forma a conceder-lhes as devidas honras fúnebres. Das várias ilações que se podem retirar da narrativa, destacam-se quatro que pairam sobre o retrato: ausência, morte, restituição e celebração.

Na abordagem dos textos de Plínio, o contributo de Pommier é precioso, pois confronta o episódio do Simónides com o da filha do oleiro (ou pastora, consoante as versões) que contorna a sombra do amante na parede antes que este parta. Aproximam-se assim referências ao desenho e à poesia, dois traços que surgem do mesmo "espaço interior" como se imagem e palavra fossem interiorizadas e posteriormente devolvidas ao mundo.[1] O retrato constitui para Miguel Ângelo e Holanda uma impossibilidade. notava Pommier, as teorias italianas apontam apenas dois retratos possíveis: o de Adão antes da queda e o de Deus. Todos os outros, feitos pela mão do homem, são uma superfície onde o artista corrige a realidade. Referia Holanda, nos seus Diálogos em Roma (1548), que a pintura era uma semelhança perdida com Deus, palavras que são proferidas por Miguel Ângelo, no primeiro diálogo: "a boa pintura não é outra coisa senão o traslado das perfeições de Deus e uma lembrança do seu pintar, finalmente uma música e uma melodia que somente o intelecto pode sentir, a grande dificuldade" (Holanda, 1984b: 30). Esta ideia parece radicar da distinção entre dois conceitos-chave para a teologia medieval imago e vestigium e que se concretizam no pensamento contemporâneo de Georges Didi-Huberman. A variação entre conceitos que aqui retomamos revela igualmente o peso da perda e da ausência na tradição imagética ocidental.

os teólogos sentiram necessidade de distinguir o conceito de imagem (imago) do de vestigium: o vestígio, o traço, a ruína. Tentavam assim explicar que o que diante de nós é visível, em torno de nós a natureza, os corpos deveria ser visto como trazendo o traço de uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança com Deus perdida no pecado." (DidiHuberman, 2011:15)

o referimos, o retrato apresenta-se assim uma resposta à morte, uma forma de a superar, e é duplo (até) neste sentido, porque se faz na ausência do modelo (Miguel Ângelo e Francisco de Holanda) e por evocar a presença dentro da própria ausência. O retrato funcionaria assim como uma ruína de uma presença anterior, como um rasto, da mesma forma que o homem é um vestígio de uma imagem perdida.

Le portrait est fait pour garder l’image en l’absence de la personne, que cette absence soit un éloignement ou la mort. Il est la présence de l’absent, une présence in absentia qui n’est donc pas chargée de la reproduction des traits, mais de présenter la présence en tant que qu’absence: de l’évoquer (voire de l’invoquer), et aussi d’exposer, de manifester le retrait se tient cette présence. Le portrait rappelle la présence, aux deux valeurs du mots rappel: il fait revenir de l’absence, et il remémore dans l’absence. C’est ainsi que le portrait immortalise: il rends immortel dans la mort. (Nancy, 2000: 53, 54)

Seguindo as palavras de Nancy, o retrato sobrevive à morte precisamente porque é para este limite que aponta. O retrato é assim uma evocação que marca um rasto de presença na ausência, é um simulacro de presença, uma virtualização.

Ao transpor para a esfera literária as questões retratísticas relacionadas com a ausência, encontramos na ekphrasis um paralelo no que concerne a manifestações de algumas inquirições teoréticas do retrato. A questão da ausência do referente estabelece um aparente conflito em termos muito idênticos aos defendidos no retrato. O problema surge na diversidade de definições que foram propostas a longo da história, ora excessivamente restritivas ora insuficientes. Por não se constituir como uma realização cristalizada, mas antes mutável e sensível aos tempos, paira sobre a ekphrasis uma certa insolvência teórica.

Olhando para a definição proposta pela enciclopédia virgiliana, segundo a qual a ekphrasis consistiria num "procedimento verbal que transforma o leitor em espectador com a intenção de lhe dar a ver determinado objeto ou acontecimento", as questões que se prendem com o lugar do referente emergem.[2] A aparente simplicidade da definição oculta um problema conceptual que deve ser sublinhado, pois a metamorfose do leitor em espectador deriva da transposição de um "objeto ou acontecimento" eminentemente visual para o plano poético, abeirando-se assim de questões teórico-formais que estão na base das classificações das artes. Retoma-se aqui um problema em todo semelhante àquele que Francisco de Holanda aponta para o retrato pictórico. Qual o lugar do "retratado" se, nos casos paradigmáticos das ekphrseis homéricas e virgilianas, o referente tem apenas uma existência textual? Metamorfose do leitor em espectador ou tentativa de transposição do real, retrato pictórico e exercício ecfrástico levantam questões que reencontramos na obra de Vasco Graça Moura.

2.

A poesia de Vasco Graça Moura constitui uma das mais prolíferas manifestações interartísticas na poesia portuguesa contemporânea. Alicerçando os seus textos numa vasta tradição artístico-literária, as suas composições constituem uma tessitura polifónica sustentada por um amplo campo referencial. Da pintura até à escultura, passando pela música e pela fotografia, a poesia de Graça Moura carrega a marca indelével das artes particularmente evidenciada através de uma propensão para o exercício da ekphrasis, inclinação que, como o próprio autor refere, se manifesta a partir da recomposição verbal de um elemento visual: "creio que a raiz mais funda dessa tendência tem a ver com uma preocupação mais genérica da restituição do visual através do verbal" (Moura, 2002: 86). A transposição intermediática referida resulta numa inquietação poética que se traduz em constante exercício compositivo, evidenciando a busca da "restituição" e constituindo-se como um espaço de interseção transmedial.

Nos textos que gravitam em torno da sua poesia, o poeta aponta os elementos que considera essenciais para a elaboração de um poema: "o poema faz-se por uma manipulação da palavra que envolve um certo apetrechamento cultural e um certo adestramento técnico. Não surge ex nihilo, mas é um modo verbal de estar no mundo" (Moura, 2013: 487). Os domínios alimentam-se mutuamente, sendo que, para se trabalhar sobre textos que constituem um substrato memorial considerável, a técnica é indispensável. Nestes "discursos poéticos", o poeta revela uma tal destreza da técnica que dela abre mão e partilha, com uma nonchalance bem ao jeito maneirista, que relembra a sprezzatura do Cortesão de Castiglione. É necessário ser "o fabbro da palavra" ( cego, o regresso) para se trabalhar no poema, que nele "coagulam-se a passagem do tempo e a experiência vivida" (Moura, 2013: 487).

Em torno destas inquirições gira parte da poesia de Graça Moura. O poeta, consciente da insolvência da questão, abre o décimo sétimo poema de cego, o regresso (1982) com a interrogação "como meter o mundo/ num poema?". O verso viria a ser alvo de um exercício crítico autorreflexivo, que a pergunta é retomada vinte e três anos depois no poema Laocoonte, incluído em Laocoonte, rimas várias, andamentos lentos (2005) que evoca a longa tradição teórico- crítica envolta da figura de Laocoonte, nomeadamente as considerações basilares de Lessing acerca da relações entre as artes. Ancorado nesta memória, lemos na terceira e última parte do poema:

uma vez perguntei como meter o mundo num poema. nem aprendi, nem soube se alguém tinha resposta em muito anos.

hoje entendo melhor as minhas dúvidas:

no tempo de homero é que o mundo cabia nalguns versos. depois deixou de haver a mesma coincidência fulgurante que fazia o real entrar pelas palavras dentro

numa cadência inaugural do som e do sentido a martelar a chapa dúctil da memória na bigorna sonora de ásperos timbres.

Não alheia a uma maturidade poética adquirida ao longo dos anos, a resposta resulta, como esperado, numa manifestação da noção de melancolia tão intensamente explorada pelo autor " no tempo de homero é que o mundo/ cabia nalguns versos". Não se trata contudo de uma melancolia passiva e meramente contemplativa, mas de uma "melancolia reativa", como defenderam Barrento e Ribeiro.[3] O poeta nunca deixa de explorar os caminhos "da transposição visual para o verbal", surgindo o poema como um exercício incompleto, uma busca constante. O poeta revela assim "a furiosa paixão pelo tangível", mesmo que esta paixão indicie sempre uma perda. A escrita de Graça Moura aponta o caminho da perda e da ausência no processo de transposição, de metamorfose, da busca da "coincidência fulgurante que faz[ia] o real entrar pelas palavras dentro".

No poema uma tão perfeita ausência incluído em o retrato de francisca matroco e outros poemas (1998), o léxico a que o autor recorre em muito se aproxima das considerações renascentistas anteriormente referidas, explorando o topos da ausência e da (impossibilidade da) sua representação:

uma tão perfeita ausência restitui os vestígios de alguém, como se houvesse um angelismo intermediador entre os dias e o mundo. e não obstante vi que

essa ausência doía mais que tudo e que a tornavam sensível as coisas anódinas: uma jarra, o olhar através de uma janela, o caminhar no meio

dos plátanos. ou usar as palavras para escrever as cartas que somente podiam ter sido escritas num vazio sem remédio quanto a alguém. a neve,

o lago, a montanha, a rua, o espaço da lareira da sala onde as chamas dançam, a própria densidade do tempo e da chuva, tudo está nas palavras porque no coração

elas nascem espontâneas de uma tão perfeita ausência. esta seria uma obra de arte se fosse intencional. mas, se o fosse, não daria lugar ao poema como vez

de alguém se consumir, elaborando-a.

A ausência é aqui vista em termos muito idênticos aos de Nancy aqui referidos, como uma membrana do presente, que é um indício, um vestígio. Como "chama", impercetível na sua intermitência e (sobretudo) intangível. O que "elabora" a obra consome-se, num jogo de transferências entre o desenhador e o desenhado, que se assume medida entre o escrever e a obra. A mesma incandescência que encontramos em junto ao retrato, onde uma rosa é vista metonimicamente como chama e que ilumina o retrato de sua mãe, em cenário que relembra uma certa devoção. Único elemento que reporta para a luz, a rosa irrompe da memória sombria, e o retrato é aqui, mais do que semelhança descritiva, um sinal de persistência ao tempo e uma invocação. Em termos retratísticos, a "restituição" presente no primeiro verso implica perda e a tentativa de a reconstituir, de a restituir pelo verbal acabando a busca por consumir o poeta.

Consumação esta que se concretiza num fazer poético, inserindo-o numa estética que se configura como uma recusa da semelhança e da figuração, vendo o retrato como uma negação que o precipita para um indeterminismo enquanto categoria: "acumulados tropos de ausência, de cegueira, de perda concorrem aqui para uma progressiva despossessão identitária, para uma progressiva desidentificação que postula o (auto)retrato negativamente como pura invisibilidade" (Ribeiro, 2014: 72). Os prefixos usados por Ribeiro remetem todos para a mesma esfera, para um conceito de retrato que se espelha na evolução etimológica da palavra, que retratar é retraçar, é retirar. A variação reside aqui na figura "consumida" que novamente parece articular-se com a ideia de Miguel Ângelo segundo a qual cada retrato é, em certo grau, um autorretrato, retomando o famoso motivo atribuído a Cosme de Médici "ogni dipintore dipinge se".[4] Na poesia de Moura, este caminho para o silêncio, para a ausência, para a cegueira não se constrói pela falta de referência e pelo vazio compositivo mas, ao invés, engendra-se por excesso, por acumulação de textos e de vozes que se cruzam no mesmo espaço poético, processo ao qual o poeta pode aceder e manipular porque domina a técnica e utiliza "técnica, técnica, até ao sarro do silêncio e do ruído" escreve o poeta em ars poetica, enaltecendo o seu uso até um poema que é um "simular/ uma ordem entrevista e sustentá-la in absentia ou no luto. vem dar ao mesmo." cego, o regresso é, nas palavras de Fernando Pinto do Amaral, um livro "onde a experiência amorosa se constitui como um leitmotiv, mas extravasando para uma meditação sobre o templo e seus instantes"(Amaral, 2001: 9). A referência ao regresso evoca o nostos de Ulisses e a estrutura composta por vinte e quatro poemas faz ecoar a dos poemas homéricos e marca, desde o título, uma cadência de melancolia.

não quero o teu retrato nem o meu, a não ser num templo em ruínas: o tempo tanto

gastou degraus, colunas, e fez do musgo acanto que podemos sentar-nos sobre a pedra votiva

e ficar de mãos dadas sob um céu de ameaça olhando a objectiva.

felizmente um disparo

automático a fuzilar-nos de amor na nossa imagem.

A referência ao retrato começa pela negativa "não quero o teu retrato" para se abeirar seguidamente de um espaço que remete para a perda, para a ruína. Didi- Huberman refere que o ato de contemplar é colocar o templo nos olhos, edificando assim uma imagem, delimitar um espaço de observação, colocar-lhe margens. Uma fotografia que é antes e sobretudo "mental" antes de "fuzilar", pois "coisa mental é o retrato,/sempre", escreveu Vasco Graça Moura. Um retrato cujos limites seriam "degraus e colunas" em ruínas sobrevivendo ao tempo.

3.

O trabalho que Noé Sendas tem vindo a desenvolver joga com noções intertextuais e transmediáticas que, mais do que uma mera acumulação de camadas interpretativas, busca um sentido novo recorrendo a processos de mistura, reedição e de rescrita que conferem à sua obra um efeito palimpséstico. As imagens de Sendas atuam para além da alusão, utilizando não raras vezes o diálogo entre obras e apoiando-se diretamente em imagens que fazem parte de uma memória artística que se engendra em jeito de repositório referencial, o artista trabalha com associações que produzem um efeito anacrónico. O tempo, assim como a reescrita, são por isso campos que se revelam centrais na obra de Sendas que, como o próprio afirma, busca através da conjugação de dois elementos um terceiro novo elemento.[5] Inscrevendo-se em matrizes tipicamente apontadas ao pós-modernismo, tais como a reescrita e a referencialidade, as questões da representação ocupam um espaço importante na obra do artista e que, vistas à luz dos preceitos retratísticos e representacionais, se articulam com os que temos vindo a referir.

Ao rever a série The Collector (2007) constatamos que o modus operandi de Sendas parte da evocação desta memória e pela apropriação de imagens que servem de mesa de trabalho a partir das quais o artista constrói estes novos retratos com alguns dos processos de composição que evocam justamente os conceitos de palimpsesto, mosaico e tessitura fulcrais nas questões da reescrita e revisitação. As imagens dialogam numa superfície que relembra aqui os preceitos warbugianos de prancha. Colocadas na mesma superfície apesar do afastamento cronológico, as imagens apontam para uma ideia ou um gesto que sobrevive e que se reaviva. À imagem das pranchas de Warburg, descarta-se uma aproximação horizontal do tempo para, ao invés, explorar uma certa verticalidade de um anacronismo que explora as cadeias de sentido revelando uma potencial sobrevivência de um gesto.

Assim, um retrato de Bruce Nauman é colocado no mesmo espaço que uma pintura de Goya, estabelecendo um improvável diálogo entre imagens, mas criando um sentido resultante de um trasbordamento das imagens para outra parte. Superando a mera soma de partes, Sendas acrescenta sempre um novo sentido à "equação".[6] O motivo que leva o artista a criar um espaço de cruzamento entre um autorretrato de Aurélia de Souza e Andy Warhol não é uma casualidade, ou apenas fruto do gosto pessoal do artista, mas resulta antes de uma teia de relações/ significados que permitem uma leitura coerente entres partes. É daqui que deriva a comparação do método de Sendas com o de um disc-jockey que, dominando uma faixa e outra, consegue elaborar uma terceira via através do "fluxo"(cf.

Sardo apud Ribeiro, 2011: 74). Este excesso realiza-se por exemplo no retrato de Warhol, Self-Portrait in Drag (1981), que explora os caminhos do corpo e do rosto através do travestimento, e os retratos de Aurélia de Souza que revelam esta mesma tendência. Vemos, por exemplo, no autorretrato que data de 1887, onde a pintora portuense se representa com um enorme laço lembrando uma figura clownesca, ou em quando se retrata como Santo António, num exercício que passa pela despossessão identitária, o abandono de um corpo, para o engendramento de outro. Este processo evidencia-se de resto na série Crystal Girls (2011) (Figura_1), obra na qual as fotografias revelam aquilo a que Carlos França viria a apelidar de um "trabalho não contemplativo ou passivo, mas sobretudo mais apostado no papel interventivo, criativo e até subversivo da imagem." (França, 2014). O olhar que Sendas dirige à tradição pictórica poderá também ele ter um certo grau de melancolia, não se limitando no entanto a uma contemplação passiva, mas antes, como no caso de Vasco Graça Moura, de uma reatividade que é produtiva no sentido em que busca sempre um sentido outro.[7]

Tomemos como exemplo a série Desconocidas (2012), trabalho que assenta numa série de fotografias encontradas pelo artista em Madrid e que datam dos anos 40. A particularidade deste trabalho resulta do facto de as fotografias serem de fotógrafo desconhecido e retratarem pessoas anónimas. O trabalho de Sendas passa por manipular um corpo ou um rosto sem conhecer a identidade do seu referente. O processo não passa apenas pela reabilitação técnica das fotografias como também da decomposição dos corpos representados. Ao referir que trabalha a fotografia como escultura, Sendas retoma a noção de transmedialidade acima referida: "comecei a trabalhar imagens como um escultor trabalha uma escultura. Tinha uma imagem base e retirava elementos. Mas, por exemplo, quando retirava um braço, tinha sempre a preocupação de criar equilíbrio no corpo".[8] Assemelhando-se ao trabalho da superfície escultórica até dela retirar a forma, Sendas busca um equilíbrio da imagem através da subtração, resultando por vezes em manifestações de ausência.

Lemos no título da primeira peça da série uma inscrição quase tumular: Desconocidas n.º 1, 1945-2012 (Figura_2). Esta última referência à data sugere- nos uma linha biográfica que é suscitada pela referência necrológica que reporta ao ano de 2012, e que se prende com a duração da fotografia, ultrapassando o primeiro momento de execução, concluído em 2012, altura em que é reconfigurada por Sendas. Consequentemente, esta linha aponta para uma gestação, como se os sessenta e sete anos que separam o primeiro gesto fotográfico do mais recente constituíssem um espaço de sobrevivência, recuperando a terminologia de Didi-Huberman. Não se excluindo mutuamente, as duas leituras convergem na ideia palimpséstica reiterada pelo artista em entrevista e apontam para uma sobrevivência do gesto fotográfico através da duplicação, da sobreposição de um gesto sobre o outro. No primeiro trabalho da série, o rosto pertencente à figura da fotografia original é retirado, como se esta dobra de gesto resultasse num excesso e transbordasse para a ausência e para o fragmento, compensadas no entanto através de outros elementos corporais.

Compensação, harmonia e equilíbrio resultam aqui do domínio da técnica de vários meios que se conjugam no trabalho de Sendas. Evocando um conceito apontado por Carlos França, a arte de Sendas relembra aqui o neologismo que Castiglione propusera no seu Cortesão, la sprezzatura, aqui evocado a respeito de Vasco Graça Moura (França, 2014). O domínio da técnica apresenta- se, também na arte de Sendas, como uma bella maniera de recuperação da imagem.

Da mesma forma que o autorretrato em espelho convexo de Parmigianino apresenta a mão no primeiro plano do disco espelhado, como se de um sampler se tratasse, também Sendas coloca a mão, e manipula imagens suscitando no leitor um olhar que explora um determinado anacronismo resvalando frequentemente para questões da ausência, determinado e validado pela técnica compositiva, pela maniera. A perda, o fragmento e a ausência são, tal como na poesia de Graça Moura, resultado de um excesso, de um transbordamento referencial, não tanto de uma postura minimalista de recuo em relação à composição.[9] Voltemos às origens e desta feita à história de Zeuxis, pintor grego dos séculos V a.C que, convidado a realizar o retrato de Helena, juntara cinco jovens da cidade de Crotone e, tirando o melhor de cada uma, encontra forma de compor o retrato "impossível" de Helena. Corte, colagem e sobreposição no engendramento de um retrato que dispensa o modelo e que se afasta claramente da questão da semelhança para a construção de um retrato que é, lembremo-nos, sempre mental.

Se, como destacaram Ribeiro e Sardo, o método de Noé Sendas assenta na estratégia de assemblage muito próxima da ação de um DJ, não será uma analogia menos rica quando colocada a par da poesia de Moura, como Diogo o propôs em 2006.[10] De resto, as estratégias palimpsésticas são marcas típicas de um pós- modernismo referido por Fernando Pinto do Amaral acerca do ofício poético de Graça Moura (cf. Amaral, 2001). Encontramos na citação constante a diluição de fronteiras entre um passado melancólico reativado pelo presente e que, na esfera retratística como nas demais manifestações, parece acumular uma tradição de rostos e retratos. Estas referências, cujas estratégias de composição passam pela estratificação, acumulação e sobreposição até um certo grau de excesso, resultam num transbordamento que aponta para uma fuga aos preceitos representativos tradicionais, aproximando-se da perda, da ausência.


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