O rosto da linha Ana Hatherly
O decifrador de imagens
persegue um fantasma de vestígios
como Ulisses amarrado
ao querer do conhecer
A descoberta é invenção
provisória: as vozes não se vêem
o que se vê não se
ouve A imaginação
ergue-se do arrepio da
sombra guerrilha entre
parênteses ergue-se da
constante chacina
procurando outra coisa
outra causa outro lado do ver.
Ana Hatherly, O Pavão Negro
Quando, em meados dos anos 60, Ana Hatherly iniciou o estudo de um dicionário
de inglês-chinês que compreendia uma secção dedicada ao chinês arcaico,
levantou a ponta de um véu cheio de pó e civilização.[1] No texto que apresenta
em Mapas da Imaginação e da Memória, Hatherly (1973) relata esse estudo
começando por destacar a disciplina que a levou, num primeiro momento, a
transcrever os caracteres, com o maior rigor, repetindo o gesto até que este se
tornasse natural. A instrução da mão é feita pela repetição dos movimentos, na
compreensão da sua pressão sobre a caneta de feltro e o seu deslize na folha de
papel, a descoberta da ordem dos traços e as suas derivações e fusões na
construção dos caracteres. A escolha da ponta de feltro só pode recair pela
semelhança formal do traço quando comparado com o pincel, porém, na sua
rigidez, aproxima-se das canetas normais, seja a esferográfica, seja a rotring,
ou mesmo das canetas de bambu usadas com tinta-da-china. A artista confessa-se
"fascinada e obcecada" com o engenho da mão, da forma como ela assume
"gratuitamente" as direcções, circularidades, as velocidades da escrita sem
resistência, a não ser as primeiras ansiedades próprias da aprendizagem.[2] A
autonomia em relação aos modelos da cópia, aos caracteres desenhados, primeiro
a pulso e depois num sopro, é surpreendentemente rápida. Mas tudo isto aponta
para um estudo morfológico dos caracteres e nunca para a aprendizagem da
língua, que aliás, a artista nunca aprendeu.
Na verdade, sendo Ana Hatherly artista e poeta, de imediato assalta-nos a
questão: mas como pode um poeta recusar ouvir o canto de uma língua? Nos
desenhos de Mapas da Imaginação e da Memória, Hatherly parece renunciar a uma
voz que a chama. A artista prefere entusiasmar-se apenas com o desenho da
escrita que, na sua visualidade antropomórfica, balbucia sons parecidos às
figuras que as formas parecem suscitar (Figuras 1_e_2).
A artista não é indiferente à língua que escreve, mas ‘escuta na sua matéria’
uma outra voz que ecoa das profundezas negras dos traços, das imagens que deles
imaginamos. O gesto "inteligente" que se dá gratuitamente à escrita, envolve-se
dessas ressonâncias, e desenha escrevendo (nesses poemas visuais), não dizendo
nada, mas soando sempre qualquer coisa (Figura_3).
Ana Hatherly, poeta, encontra uma outra poesia, feita ainda de signos e sons,
que não sendo os da escrita, os das palavras, são das coisas para as quais as
formas apontam. Num desenho de 1970 (Figura_4), podem-se ver pequenos traços
negros como corpos, antropomórficos que se acumulam em multidões frementes
formando uma mancha, que não é de texto, mas que é ainda da narrativa, porque
parece contar a história daquela gente ali reunida, numa conversa muda.
Este cruzamento, que torna quase indistinta a relação entre a mancha do desenho
e a mancha do texto, revela uma compreensão muito nítida do esforço necessário
para as separar e classificar. Em vários desenhos, de que este faz parte,
parece sempre sentir-se, a todo o momento, a decomposição do grafismo quer da
escrita quer do desenho, pois a reciprocidade entre ambos não cessa. Nestes
poemas visuais, Ana Hatherly toca no mais fundo da inscrição, a artista provoca
a estranheza quando recupera a matéria de que são feitos os signos, quando
busca a sua raiz imagética, mas também da natureza linguística dos traços, nas
inclinações, extensões e contracções, e, ao recuar a esses tempos indefinidos
em que a escrita e o desenho se aliavam numa única linguagem, faz ressurgir o
problema da distinção e alcance de uma e outro.
A inscrição tem o seu paralelo em toda a criação humana, a criação de uma
cultura, dado que nela aquilo que não tem corpo, aquilo que faz parte do
pensamento, da imaginação, do sonho, passa a existir, no momento em que é visto
através da imagem. Essa visibilidade transforma esse pensamento em coisa, em
matéria física inscrita na pedra, na areia, no papel.[3] Isto significa que,
pelos riscos e incisões, ganham vida coisas que de outra forma não têm
existência. Os animais sulcados na pedra não apresentam aquilo que já existe na
natureza: o veado, o auroque, a cabra; antes, fazem aparecer aquilo que o homem
deseja deles: a abundância, o domínio, a distinção. O que se torna visível e,
por consequência, concreto é aquilo que antagonicamente é, em absoluto,
abstracto. O desenho e a escrita reflectem e projectam a experiência da
abstracção e aquilo que os distingue será, porventura, a capacidade máxima de
dar existência – e disso comunicar – àquilo que só existe no pensamento e na
imaginação. Ana Hatherly atua nesse grau de indefinição onde só se sabe, de
facto, que se está diante de uma imagem que comunica algo que está para lá da
realidade física da sua natureza visual. A artista age ‘entre’ o discernimento
da escrita e o do desenho, e desse ‘entre’ (infra-fino?) destaca o exercício de
entendimento e separação dos dois modos de inscrição. Hatherly põe a nu o que
Goethe aponta ser o Aperçu.
Tomando a forma geral de um objecto – escrita num conceito, ou desenhada num
símbolo –, esta forma geral reúne todos os possíveis contornos, escritas,
configurações, desse objeto, já conhecidos pelo sujeito e outros tantos
contornos, escritas, configurações, que esse sujeito pode imaginar por
conformidade.[4] Tomemos, a título de exemplo, o carácter chinês: ao
reconhecermos na figura do carácter a geografia da língua para que aponta –
chinês ou japonês –, assinalamos na sua silhueta todo o idioma chinês, como se
os seus diferentes desenhos, independentemente das suas características,
coubessem naquela figura que se torna súmula de todas as formas em que o
carácter pode aparecer. Nesse sentido, nessa figura a forma tem um contorno
universal, é um esboço no qual todas as formas semelhantes que apontam para
esse esboço tomam parte nele. Este processo de reconhecimento daquilo que une
todas as formas possíveis de uma coisa só pode acontecer quando o homem "deixa
cair" as imagens, "uma sobre outra" (tal como Kant esclarece no §17 da Crítica
da Faculdade do Juízo), de todas as formas dessa mesma coisa deixando apenas
aquilo que é coincidente e que configura o que se pode chamar uma forma ideal,
que, para Goethe, seria a forma original e a matriz de todas as outras.[5] Esta
forma original parece ‘pairar’ entre todas as formas que devêm dela; ela
gravita, ‘flutua’ entre todas as formas, não chegando nunca a realizar-se
plenamente num único "indivíduo" (Molder, 1995: 332). A imagem originária é o
"traçado visível"[6] desse desejo do nexus rerum, de conexão de cada coisa com
cada coisa; é uma aparição que ultrapassa as formas concretas da natureza.[7]
É certo que o nosso exemplo dos caracteres pertence já a esse reino da
imaginação, i.e., desenho e escrita são já imagens criadas pelo homem,
produzidas pela sua imaginação e entendimento, porém, ao indagarmos sobre o que
acontece entre a escrita e o desenho e que nos permite separá-los, damos conta
de que existe algo que ultrapassa a sua natureza concreta (visual) e imagética,
que tem que ver precisamente com essa "imagem pairante" (Kant) e que diferencia
cada uma.[8] Assim, o reconhecimento de um carácter e a sua diferença em
relação ao desenho não está nunca compreendida na razão semântica, mas na
capacidade de o carácter expressar a sua condição linguística e do desenho
fundar a sua visualidade.
Na senda de Ana Hatherly, consideremos um sinal que não corresponda à língua
chinesa (Figura_5).
Quem não conhece esta língua, tomará o carácter por verdadeiro, pois encontra
nele uma correlação com todos os outros caracteres vistos e apreendidos, e
encontrando essas ressonâncias admite nele a dimensão linguística. Tal ocorre
porque essa correlação não se baseia nunca na existência de um significado para
aquele sinal, mas pela força imagética que aquele desenho possui para se
apresentar como carácter. Não se trata aqui de fazer passar gato por lebre, mas
de perceber que na impossibilidade de ter presente todas as imagens do objecto,
neste caso de todos os caracteres existentes e também na impossibilidade de
reter tudo aquilo que lhes é único e distinto, o entendimento desse mesmo
objecto / carácter, tende naturalmente a devolvê-lo na sua forma holística e
determinante. Inversamente, essa mesma forma geral promove a coincidência com
outras semelhantes, dando lugar à produção de sentidos, de ligações. Ana
Hatherly não nos tenta enganar dando-nos escritas falsas. O que a artista
procura é, antes, levar ao extremo esse grau de confiança que separa o desenho
da escrita e o desenho do desenho, e fá-lo de tal forma que, mesmo reconhecendo
não se tratar de meros caracteres ou palavras, a todo o momento, os traços
apontam para os caracteres, bem como a sua presença plástica os confunde no
desenho (Figura_2). Os traços negros há muito perderam o seu rosto de escrita,
mas conservam ainda a máscara do carácter, a máscara da palavra.
Todavia, o estudo de Ana Hatherly ganha maior clarividência quando a própria
afirma não lhe interessar a aprendizagem da língua chinesa, nem o desenho dos
seus caracteres, mas, sim, proceder a uma "investigação do idioma artístico"
(Hatherly, 1992: 75). Esta definição, que remete para a possibilidade de um
idioma artístico, tenta de imediato localizar a criação artística no cerne da
compreensão do mundo.[9] A artista define o seu objecto de estudo no modo
particular como compreendemos a natureza das coisas e situa as suas
investigações na capacidade produtiva, formativa, dessa mesma compreensão.[10]
Antes de iniciar a experimentação da escrita, primeiro com os caracteres
chineses aos quais se juntaram depois outras geografias, da África à
Escandinávia, numa espécie de "investigação espeleológica" (Hatherly, 1973) às
profundezas da língua, Ana Hatherly já colocara num limbo a mancha gráfica do
texto, o desdobramento das linhas das palavras, a verosimilhança da escrita.
Partindo de um vilancete camoniano Descalça vai para a fonte/ Leonor pela
verdura/ Vai formosa e não segura, a artista executa trinta e uma variações
temáticas tendo em vista o desdobramento dos sons, a multiplicação de sentidos,
a reorganização visual. O programa é-nos dado logo no início, destinando
procedimentos a cada uma das variações.[11] Não nos interessa analisar o
conjunto desta investigação de Hatherly senão apenas a Variação XIX (Figura_6)
que revela a profundidade em que se joga o desdobramento e desmultiplicação dos
limites da inscrição, onde se instala o início da distinção (ou indistinção) do
desenho e da escrita.
Apresenta-se-nos, então, uma mancha de texto que obedece à configuração regular
e tradicional de um espaço reservado à escrita, um espaço, na maioria das
vezes, rectangular. Este espaço, a que comummente chamamos de mancha de texto,
aponta já para um espaço paradoxal, na medida em que lhe destacamos a sua
gravidade, o seu carácter pluridimensional, isto é, o texto feito de linhas
torna-se mancha de cor atmosférica, com regiões mais densas, nubladas e outras
limpas. O texto mancha a folha com linhas unidimensionais[12] que ao cruzarem-
se, encresparem, inclinarem, movimentam-se já num espaço de múltiplas
dimensões. Mais ainda, uma mancha constitui-se pelo resplandecer, avivar,
manifestar-se (o exemplo mais assertivo é curiosamente o corar), o que
significa que a mancha de texto tem essa qualidade vivificante, o texto
desperta, manifesta qualquer coisa. Ora, deste espaço textual saem alguns
excessos formais, perninhas de supostas letras dando a ilusão de fiapos, como
se a moldura da escrita estivesse na iminência de se desfiar. A sua composição
procura seguir as regras da escrita bustrofédica (Hatherly, 2000: 170), ou
seja, da organização paralela das linhas de texto, imitando os regos abertos na
terra pelo arado. Mas mesmo ela é assaltada pelo tumulto da sobreposição de
linhas que provocam concentrações gangrenosas, dando ao texto uma atmosfera
tempestuosa. Seguimos, então, para a sua leitura. A iniciar o texto, abre-se em
estilo de letra capital, um grande L. Na sua senda desenrola-se o encadeamento
fibrilar da linha das supostas palavras, no entanto, só por um olhar demorado é
possível reconhecer, ou acreditar, na sismografia da palavra.
Em boa verdade, a escrita perde a sua soberania na derisão de tudo aquilo que a
funda. Tal como no programa delineado por Hatherly, sucede a
"ininteligibilidade por semantização visual absoluta" (Hatherly, 2001: 193); ou
mais exactamente, aquilo que tem significado não são as palavras, mas as
linhas, as suas irregularidades, vibrações, em contracção ou expansão. A
leitura ocupa-se de dois pequenos rasgos que irrompem lateralmente na mancha;
das concentrações abrasivas na sobreposição; da maior ou menor distensão
encaracolada da escrita, ou mesmo da orientação das linhas que, apesar de
procurar manter equidistância, são cobertas por outras criando nervuras,
mesclas que afundam o texto em sombras acidentadas.
Mantém-se a indecisão entre a escrita e o desenho porque o nosso poder
configurador não resiste ao chamamento de um e outro. É nesse entre (do desenho
e da escrita) abissal, vertiginoso, que Ana Hatherly joga a força criativa, o
poder de dar imagem. Configurar, significa dar forma, dar contorno a algo e
também engendrar. Ora, dar forma, tendo em vista o conhecimento de uma coisa, é
desenhar-lhe o seu contorno, silhueta, fazer-lhe um esboço. Nesse esboço (o
Aperçu goethiano) – que reflecte a mais profunda compreensão das coisas, porque
o entendimento é obrigado a canalizar todas as percepções para uma só – aquilo
que na natureza é produtivo, vivo e por isso variável, só pode ser assumido
como essência e é dela que é esboçada a forma, contanto essa forma da essência
possa justamente fazer-lhe prova.[13] Aquilo que sobrevive, ou aliás, vivifica
as formas que esboçamos, desenhamos, para as coisas (as formas gerais) é a
essência da coisa conformada pelo homem, pelo seu modo de a ver, conhecer,
sentir. Abre-se, assim, um novo horizonte nas formas e conceitos, pois parece
ocorrer uma transformação imperceptível daquilo que os irá animar. Tomando o
exemplo de há pouco, se para chegar a uma forma ideal de um carácter deveremos
proceder ‘cegamente’ em relação às características de cada um (e estamos
necessariamente a colocar de parte qualquer relação com o seu significado, ou
seja estamos exclusivamente a considerá-lo na sua forma visual, como o fez Ana
Hatherly), só poderemos ser bem-sucedidos, se nessa ‘cegueira’ nos permitirmos
assimilar todas as diferenças visuais conhecidas antes de ‘vendar os olhos’.
Isto significa que no processo de configuração confluem todas as memórias,
todas as percepções que temos das coisas, confluem para, de seguida, se
condensarem em formas sintéticas, sinais, símbolos, com os quais alcançamos e
comunicamos a mais poderosa compreensão das coisas. Essa condensação, síntese,
revela, ainda, o poder criativo do homem, porque nela ele tem a sua máxima
compreensão das coisas; ele sabe que deve deixar repousar todas as diferenças e
aproveitar de todas elas aquilo que lhe convém. Esse esboço, essa forma
sintética (a forma originária de Goethe), conserva, assim, no mais fundo de si,
cada particularidade, cada variação, cada fusão: as diferentes arquitecturas
dos caracteres, uma perna comum, uma simetria; e a todo o momento, essas
singularidades vêm à tona, à superfície, brindar-nos com essa mesma sabedoria.
Ora, é precisamente nesse emergir de uma diferença em dois desenhos do mesmo
carácter, ou do desenho de dois caracteres – que se liga, porém,
incontornavelmente à forma original do carácter – que sentimos o regresso a uma
percepção anterior e maior. As variações formais ecoam entre si na contextura
de um imaginário que contém todas as diferenças possíveis da forma original,
por exemplo, os caracteres que Ana Hatherly desenha e que remontam à escrita
chinesa (Figura_7).
Mas essa relação com o original só pode ser intuída, sentida, porque na verdade
não estamos em posse da razão de todas as diferenças, ou seja, e voltando ao
nosso exemplo dos caracteres chineses, sabemos que se trata de um carácter de
uma língua oriental, mas não sabemos a sua origem e o seu significado. A
imaginação é despoletada por uma intuição que reconhece e imagina a sequência
que a forma geral e originária (a escrita chinesa) irradia e onde a variação (o
carácter) se inscreve.
O facto de a forma geral irradiar, significa que há uma força viva nessa forma
geral (originária), seja ela dada pelo desenho, seja pela escrita, que tem
origem na sua capacidade produtiva, i.e., na capacidade dessa forma suscitar
novas imagens a partir das percepções, sensações e sentidos que traz consigo (e
que a compõem), silenciosamente – isto, porque, na verdade, sempre que vemos
uma forma de um objecto, não somos obviamente assaltados por todas as imagens
que temos dele, no entanto, sabemos juntar a forma que temos diante de nós a
essas outras tantas que se dizem dela. Mas este surdo rumor só é audível para
aqueles que saibam auscultar no silêncio. O amarelecimento das folhas no fim do
verão, a descida dos cumulus às regiões inferiores transformando-se em nimbus
que se precipitam em chuva, são sinais que quer o homem quer o animal conseguem
ler e dessa leitura antecipar, imaginar o que se irá suceder. Mas há sinais
exclusivos a cada ser, que só a eles falam. O desenho, a escrita, a incisão na
carne, na casca da árvore, a inscrição, são sinais, formas que testemunham a
compreensão do mundo no homem e, por isso, só a ele dizem respeito.[14]
Leonorana atua, então, não sobre o conceito de escrita ou do desenho, mas sobre
a ideia que temos deles, i.e., a artista não atua sobre uma especificação da
escrita e do desenho, mas sobre uma visão que orienta a escrita e o desenho.
Não interessa a Ana Hatherly o que a escrita diz, conta, narra, nem o modo como
o faz, antes, como aparece, como se transforma em mancha de texto que ecoa
vozes, sons, do mesmo modo que a linha do desenho se desdobra em imagens-
contornos. Nas diferentes variações, Ana Hatherly experimenta a mancha de texto
tradicional; o encadeamento poético das palavras (variação IV); a sua
musicalidade (variação VIII); composição visual (variação XIV); explosão da
leitura e da escrita (variação XVI); activando diferentes particularidades das
formas de escrita e oferecendo-nos no seu conjunto uma ideia, uma perspectiva
viva da poesia de Leonor. É curioso a artista ter tomado de empréstimo a
variação à música (que a artista bem conhece do tempo em que estudou canto
lírico); ela serve-se da repetição da melodia com pequenas alterações e celebra
o ritmo naquilo que ele tem de mágico – e embalador. Essa magia refere-se à
essência da própria arte poética. Cada variação é uma condição de possibilidade
da poesia, é uma forma poética, que, por variar, não conhece termo.[15]
Desenhar, apresentar por meio da música, da escrita, devolve-nos a sua
essência, a sua natureza mais íntima, i.e., aquilo que a distingue de todas as
outras coisas e que a funda. Mas o desenho, o som, a palavra, não nos
apresentam todas as configurações que a coisa pode tomar porque estas continuam
o seu processo de metamorfose. Esta perspectiva viva (Goethe) sobre todas as
coisas, a sua ideia, pode, porém, facilmente ‘perder o pé’, uma vez que nada
parece estável, fixo, antes, em perpétua variação. Por outro lado, o mesmo se
pode dizer do risco de fixar, aprisionar o conhecimento em formas e conceitos,
condicionando a organicidade própria das coisas, o seu crescimento, evolução,
decaimento.[16] Só pode haver, então, um caminho: a inevitabilidade da
transformação das formas exige ao entendimento que ele seja tão plástico e
vivo, que se possa expandir, sem ser inexacto, através da compreensão da
irredutibilidade das formas gerais do conhecimento, dos conceitos, dos sinais.
[17] Há uma complementaridade necessária entre o conceito que segura uniforme
mas universalmente a coisa e a ideia que vai alargando o contorno dessa mesma
coisa na infinidade de formas que ela pode tomar – uma infinidade que torna a
ideia tão viva mas tão inconformável.
Mas a experiência do mundo também conhece situações limite, situações
absolutamente avassaladoras, incomensuráveis a qualquer esboço, seja das
palavras, seja das formas simbólicas, pela escrita ou pelo desenho: "Amando
muito muito / ficamos sem palavras" (Hatherly, 2003: 31). O que é o mesmo que
dizer que não há condições para a nomeação, para a classificação e, no entanto,
essas situações indizíveis são tão claras para nós, tão vivas dentro de nós.
Isto não significa que faltem palavras, antes, nenhuma delas é capaz de
manifestar a ideia sobre uma coisa, a experiência de um sentimento inefável, o
sentido de uma percepção; porque se trata de uma experiência do sem-forma ou da
desmedida, e, no caso dos versos de Hatherly, essa desmedida é uma metáfora do
amor. Dá-se uma espécie de bloqueio, de impossibilidade de dizer, de falar,
porque as coisas escapam à língua. Esta sensação acontece porque as coisas
ainda estão demasiado vivas, frescas, ainda estão em maturação dentro de nós,
as ideias circulam como forças no nosso interior. Nomear, dizer, desenhar são
acções de um processo de dissecação que arranca, traz do interior, da
invisibilidade, para o exterior, para a superfície, para o mundo visível essas
mesmas forças: o segredo do tesouro enterrado só permite um sinal, um único
indício para dizer que está próximo, e mesmo esse deve procurar perpetuar-se no
silêncio, caso contrário, não seria segredo. Mas, porque o sinal é o caminho
para o interior da terra onde o tesouro está sepultado, significa que o próprio
tesouro precisa do sinal para se constituir como tal. É esta necessidade de
estacar, de não deixar pairar, a força do sinal.
O jogo dos sinais e, de resto, de toda a forma simbólica é absolutamente
paradoxal. Por um lado, o sinal mortifica, faz pousar as ideias como cinzas,
depois de as consumir simbolicamente. Por outro, o sinal expõe, revela, torna
visível, vivifica porque traz à presença, à existência. O sinal salva-nos do
abismo vertiginoso da mobilidade das coisas, da corrida do tempo, das
transformações da vida, mas de volta ‘detém a imagem’.[18] Esta inconformidade
do sinal prende-se, assim, com a sua polaridade entre o dar a ver e o permitir
esquecer. O marco de pedra ressai de toda a matéria mineral, para indicar o
fóssil, para lembrar aquele que, a partir desse momento, caminhará para o
esquecimento. "Toda a memória é funerária"[19] porque ao prender a imagem, ao
torná-la eterna não lhe concede regenerar-se, transformar-se, viver: é para
sempre. Por isso se liga tão depressa ao passado, como vestígio; ao mundo dos
mortos, como epitáfio; mas também aos deuses na imperecibilidade dos astros.
Todavia, há sinais contraditórios, sinais de fogo que fazem explodir paixões,
ódios, sinais que se ligam à vida e sobretudo à carne do indivíduo que sente a
adrenalina fundir-se em todo o seu corpo. Se a virtude do sinal é apontar para
uma coisa, significa, então, que esse poder anímico tem uma relação directa com
a imagem criada. A imaginação ganha fundura quando o homem, traçando o dedo na
areia, desenha uma linha que contém todo um espaço de que essa linha é
fronteira. O homem reconhece um dentro e um fora, um para lá e um para cá. Ele
vê essa separação, mesmo sendo esta invisível. Essa linha abre um fenda na
natureza das coisas, no mundo físico, visível, táctil, sonoro, e dessa fenda,
desse intervalo "por onde/ o pensamento desliza" (Hatherly, 2003: 37) aflora
"um (outro) mundo / o mundo" (Hatherly, 1998: 8); porventura, o da imaginação.
[20]
Parece haver uma grande afinidade entre aquilo a que, há pouco, chamávamos as
ideias gerais das coisas e a imaginação, em primeiro lugar, porque é da
imaginação que se engendram as ideias. Em segundo lugar, porque essa afinidade
surge na capacidade de quer a ideia quer a imaginação confinarem com a vida,
terem na sua origem a excitação dos conceitos, das imagens, no pensamento, uma
excitação que age como sugestão, como influência, propiciando o encontro
daquilo que à partida parece dissemelhante, mas se revela análogo e pelo qual
se dará início à produção de formas. Face ao espectáculo do mundo, o homem
torna-se um "decifrador de imagens" (Hatherly, 2003: 36), ele perscruta a
morfologia do mundo e vê nas suas alterações um movimento contínuo que se dobra
e desdobra sobre si mesmo, criando avanços e recuos na formação de todas as
coisas. O homem segue uma sugestão, uma intuição do movimento, da metamorfose.
O que ele colhe é o conhecimento da multiplicidade, da infinidade das formas da
natureza. ‘O olho torna-se inteligente’ na medida em que, de uma imagem intui a
diversidade de outras. Há uma inteligibilidade, nunca absoluta, antes, em
contínua formação, mas suficientemente autónoma para, a partir dela (desse
inteligível), proceder à criação de novas formas de manifestação da
visibilidade.
Por consequência, o próprio processo de esboçar as formas das coisas cria no
interior da linguagem (que contém essas formas) novas formações. Dito de outro
modo, a composição de sinais, o desenho da forma geral, a construção de
analogias, vão numa segunda e consequentes fases desenvolver novas formas e
conceber novos símbolos. Tomemos o exemplo da linguagem falada e escrita, onde
a partir de uma raiz se desenvolve toda uma série de outras palavras, por vezes
criando outras famílias.[21] Neste processo vivo da língua, aparentemente, o
conhecimento vai gerindo a sua última forma de compreensibilidade e esquecendo
as diferentes camadas de sentido, i.e., os diferentes significados que se foram
acamando sobre a palavra de origem até ao seu sentido actual. Estas
transformações são essenciais para a sobrevivência de uma língua, contudo, o
maior risco é, por vezes, as palavras desligarem-se da sua raiz. Isto não
significa que as palavras percam o pé, o seu ‘motor’ ainda lá se encontre, são
ligações radicais que interiorizam o carácter sensível e orgânico da acção,
como se o nome pedisse o reconhecimento da acção, do movimento, ou solicitasse,
a todo o instante, a sua ligação à natureza da coisa. Por isso, os reflexos, as
sensações, os estados são transformados em verbos de transição, de movimento,
toque, união, direcção, relacionamento. Por sua vez, os nomes próprios
reflectem o carácter do indivíduo, da matéria, aproximando-o da sua matriz.[22]
As derivações da palavra, por vezes até à quebra de correspondência com a
palavra matriz pela perda da sua concretude, como é o caso das palavras
derivadas de gestos próprios de um ofício ou de manufactura que se perderam,
são uma consequência da cultura e da evolução própria da língua; é a modelação
do "barro das palavras" (Hatherly, 2003: 24), da linguagem, a partir do
constante relacionamento entre as coisas, com os sons, o tacto e as imagens que
os representam e para que apontam. Este processo extensível, maleável,
plástico, vivo, obriga a novas formulações conceptuais e ligações abstractas,
que tornam o conhecimento susceptível à própria erosão e sedimentação, quer dos
sinais e das marcas visuais, quer da língua nos seus signos.
Figuras 1-7: Paulo Costa, Arquivo Fotográfico CAM-FCG
(por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)