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EuPTHUHu0807-89672014000300024

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variedadeEu
ano2014
fonteScielo

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As estórias dentro da história: construções ambíguas da memória em O Olho de Hertzog de João Paulo Borges Coelho

1. A ambiguidade e o leitor implícito as três epígrafes indicam o que o leitor deve esperar deste romance: afirma- se o relato de "actos () reais, embora se suspeite que a realidade não passa de uma massa de contornos imprecisos"; levanta-se a dúvida acerca da veracidade da história a partir do momento que se questiona a linearidade do tempo, descobrindo "que todos os momentos do tempo existiram simultaneamente" (W.G.

Sebald) e, finalmente, substitui-se a perceção direta da realidade pela leitura incerta de signos (Italo Calvino). A ambiguidade, no leque de interpretações inaugurado pelas epígrafes, será portanto um conceito central nas duas narrativas que são apresentadas alternadamente, não se podendo falar de uma ação principal, mas de duas, mesmo estando elas intrinsecamente relacionadas: o que diz respeito à guerra é contado por um narrador autodiegético, Hans Mahrenholz, um oficial alemão que participou na campanha militar do general LettowVorbeck. A outra ação, contada pelo narrador extradiegético, refere-se à estadia do mesmo Hans entretanto assumindo outra(s) identidade(s) na cidade de Lourenço Marques, privilegiando-se a focalização a partir da sua perceção e consciência, nomeadamente quando percorre as ruas da cidade e como ouvinte de estórias contadas por outras personagens. Todas as narrativas, principais e secundárias, complementam-se no caminho da procura do Olho de Hertzog, nome dado ao lendário diamante.

A primeira epígrafe, ao contrário das seguintes, sem indicação de autoria, refere-se às pessoas que praticam os atos "reais ou não", chamando-as de "animais que não existem". Esta denominação identificada como paráfrase de "Durrell" parece iniciar, desde logo, a ambiguidade ao nível de nomes e identidades que carateriza todo o romance: em vez de Lawrence Durrell, o autor de The Alexandria Quartet, deve tratar-se do irmão Gerald e, provavelmente, duma alusão irónica à autobiografia romanceada da infância deste popular naturalista em Corfu, entre 1935 e 1939, sob o título My Family and Other Animals (1956). No fundo, O Olho de Hertzog constitui uma vasta galeria de personalidades, caraterizada por um excesso de nomes, que exige a participação do leitor na procura da verdade sobre acontecimentos e identidades, característica da investigação, policial e historiográfica o que constitui uma confluência fundamental para o género híbrido da própria obra que cumpre à perfeição o que Elisabeth Wesseling diz sobre o romance histórico autorreflexivo, entendido como "synthesis between the detective and historical fiction" (Wessling, 1991):

Both are concerned with "understanding the past through interpretation", although in self-reflexive historical fiction this interpretative process is not concluded by a solution as univocal as that in the regular whodunit. (Ibidem)

O leitor implícito, entendido no sentido hermenêutico no processo da leitura (Iser, 1976) como alguém interessado em preencher lacunas e resolver ambiguidades criadas pela justaposição de perspetivas no texto, é claramente prefigurado, no seio da ficção, por "Hans Mahrenholz, aliás Henry Miller" (Borges Coelho, 2010: 18). A impressão instantânea de, ao chegar à cidade de Lourenço Marques, estar de volta ao Hamburgo da sua infância, por causa da mesma "chuva miúda mas inclemente" (Idem, 13), "Hamburgo às cegas" (Ibidem) no entanto, evoca Walter Benjamin e, concretamente, o famoso início do texto autobiográfico Berliner Kindheit um 1900, ao aludir a um regresso à cidade da infância como errância específica: "Desorientar-se numa cidade não quer dizer nada. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta, exige alguma aprendizagem".[1] Hans não regressa a Hamburgo, é uma ilusão fugidia.

Contudo, em ambos os casos surge um alheamento (Entfremdung) que dinamiza a aprendizagem do lugar, ao vaguear pelas ruas e praças:

Olha esta praça, afinal distante de Hamburgo, povoada de gentes tão distintas, moldada pelos caprichos de quem a foi edificando, que a salpicou de pequenos quiosques, estranhas construções encimadas por minaretes de ferro forjado, chinesices. (Borges Coelho, 2010: 19)

A própria disposição irregular dos edifícios na Praça 7 de Março, bem como a forma eclética que estes assumem, em conjunto com o movimento apressado das pessoas, os "eléctricos, vagorosos", a "vozearia" e os "cheiros fortes e desconhecidos" (Ibidem) são todas impressões que não conseguem disfarçar a superioridade que Hans sente enquanto alemão e europeu, o que acrescenta à visão benjaminiana uma dimensão de reposicionamento no contexto colonial. No entanto, a narrativa refere outro alheamento que implica precisamente uma inversão das categorias de civilização europeia e urbana vs. vida selvagem africana: é a vivência no mato em Berliner Kindheit um 1900 comparação abstrata que dificulta, ironicamente, ao alemão Hans a reaprendizagem da cidade após ter andado com as tropas de Lettow-Vorbeck:

O tempo que passou no mato foi demasiado para que pudesse agora olhar em volta e ver simplesmente uma cidade. Os arbustos da savana espalhavam vultos e ameaças; os charcos, sempre que chovia, traziam mil olhos à superfície; a luz da lua lambia os canos das espingardas.

É isso que ainda nestes edifícios, nos postes, nos sofridos corpos que são as árvores urbanas, no inquietante padrão repetitivo das cercas de ferro forjado e da calçada, nas mensagens ocultas que os dizeres dos anúncios e dos cartazes calam: perversidade, dissimulação. (Idem, 20)

Esta visão entra também em diálogo com a epígrafe de Le città invisibili (1972), retirada do primeiro capítulo de la sequência "Le città e i segni": o viajante entra na cidade de Tamara vindo do mato onde não se questiona a correspondência inequívoca entre signo e objeto como ferramentas para lidar com o mundo. Nesta cidade, isto é impossível, porque o olhar fica preso numa cadeia de operações de atribuir significado que nunca chega a uma identificação substancial, portanto:

L’occhio non vede cose ma figure di cose che significano altre cose: (...) Lo sguardo percorre le vie come pagine scritte: la città dice tutto quello che devi pensare, ti fa ripetere il suo discorso, e mentre credi di visitare Tamara non fai che registrare i nomi con cui essa definisce se stessa e tutte le sue parti. (Calvino, 1972)

Apesar de a citação na epígrafe acabar em "o olhar percorre as ruas como páginas escritas" (Borges Coelho, 2010: 11), a construção discursiva do espaço Lourenço Marques segue à risca instruções posteriores de não fazer nada além de registar os nomes com os quais a cidade se define a si própria e todas as suas partes, dando somente a ilusão de uma visita. A presença massiva dos anúncios publicitários e letreiros que povoam as ruas desta cidade Lourenço Marques e a sua constante leitura, obedecendo ao olhar indeterminado do neófito Hans, apontam paradoxalmente na sua aparente precisão para "a massa de contornos imprecisos" (Idem, 7) que constitui a realidade, quando o sujeito que olha e não seleciona e constrói significado. Não é por acaso que esta aprendizagem de não se deixar iludir pelos signos bem visíveis é inaugurada pelos nomes dos navios fundeados no porto, culminando na leitura da palavra Herzog (que faz Hans estremecer) por debaixo de Beira, "nome pintado de fresco por cima do outro" (Idem, 14). O narrador avisa que a variante Hertzog vai levar a outra história, não a deste velho navio.

Por isso, a acumulação aparentemente indiferenciada dos letreiros e da publicidade não se esgota no effet de réel (Barthes, 1968) de uma reconstituição de Lourenço Marques do pós-guerra 14-18 que, conforme Eduardo Pitta, "tende a dificultar a leitura por parte de leitores não-familiarizados com a realidade local", acrescentando: "O raciocínio continuaria válido se um inventário com o mesmo tipo de anúncios estivesse reportado a Lisboa ou a Londres" (Pitta, 2010). Discordamos, porque a leitura urbana de Lourenço Marques, de estrutura antagónica como todas as metrópoles coloniais, desafia o eurocentrismo da própria memória da Grande Cidade (cf. Brugioni, 2012: 395), propondo ao leitor uma deslocação e um reposicionamento que terão dinâmicas diferentes conforme a sua própria perspetiva e identidade, europeia ou africana. Quanto à europeia, o perfil do leitor implícito é prefigurado pelo percurso e pela ambiguidade identitária das personagens que abandonam a Europa porque foram chamadas para mergulhar no espaço africano. Os seus caminhos entrecruzam-se em Lourenço Marques. Neste sentido, Hans Mahrenholz cumpre um papel duplamente privilegiado, como protagonista e narrador / personagem- refletor, contracenando com personagens que, não sendo menos ambíguas na sua definição, representam a identidade moçambicana, tal como Rapsides e João Albasini, este último caraterizado pela condição de assimilado.[2] A certa altura, Hans interroga-se: "Finalmente, não será até a sua raça nem branco nem preto ela própria uma ambiguidade?" (Borges Coelho, 2010: 383).

No perfil de Hans ecoa a sobreposição de dois projetos, da flânerie e da arqueologia[3], que encontramos em Benjamin e que revela precisamente a problemática do lugar da aprendizagem, paisagem urbana real ou memória:

No âmbito dos conceitos do flâneur como mnemotécnico, a arqueologia serve de metáfora para caracterizar o trabalho do flâneur que se refere ao passado. No entanto, esta metáfora revela também o dilema que caracteriza estes conceitos, porque ao contrário do arqueólogo, o flâneur encontra em casos raríssimos o passado nos vestígios materiais.[4]

Em Berliner Kindheit um 1900, os lugares indicados nos títulos dos breves capítulos emergem do campo da memória e não da paisagem urbana experimentada na flânerie (Neumeyer, 1999: 377-78). No romance de Borges Coelho, surge uma sobreposição mais complexa e até antagónica entre (1) a focalização em Hans, um alemão disfarçado de inglês vagueando por um Lourenço Marques para ele desconhecido e evocando as suas memórias, e (2) o narrador extradiegético, não portador discreto do presente vivido desta cidade do pós-guerra 14-18, "quase totalmente rasurado do espaço urbano contemporâneo" (Brugioni, 2012: 395), mas também fonte do saber capaz de articular esta memória com história e ficção, re-funcionalizando de forma criativa este arquivo menor, além do effet de réel.

Basta citar o parêntesis inicial que refere "Fernando Pessoa () de regresso a uma pátria desconhecida" (Borges Coelho, 2010: 15) e, numa espécie de complemento final, o letreiro "A. O. Salazar, Contabilista, Espírito de missão, ()." (Idem, 438). No entanto, o encontro de Hans com aquele contabilista de "nariz aquilino" e "voz afeminada" (Idem, 439) faz parte da sua visita a um prédio "que não se lembra ter visto antes" (Idem, 436). repara na sua frontaria fantasiosa, bem ao estilo das Cidades Invisíveis de Calvino, quando sentado na cadeira cromada da Barbearia e olhando "o espelho que tem na frente" (Ibidem). A sua errância, caraterizada ao longo do romance pela interação entre o real e o imaginário, nem sempre com delimitações unívocas, acaba significativamente no esquecimento, na incapacidade de nem sequer se lembrar mais "de uma certa praça de Hamburgo, fustigada por uma chuva inclemente" (Idem, 439).

Portanto, em vez de o discurso narrativo afirmar uma ilusão referencial consistente, o leitor está confrontado com o problema de filtrar os signos espalhados pelas ruas e praças e atribuir-lhes significado, participando assim na própria construção discursiva da realidade e, consequentemente, da História.

Hans vagueia pelos "labirintos de uma cidade de espelhos onde os acontecimentos que pareciam definitivos não passam afinal de um mero reflexo de verdades sempre novas, escondidas dentro dele" (Idem, 291). Fiel a esta imagem, que mais uma vez lembra Calvino, estabelece-se uma articulação, de contiguidade e analogia, entre a flânerie e a atividade de detetive ou arqueólogo: em vez de afirmar o percurso unívoco e sintético da História (history as written), o leitor está confrontado com a ambiguidade e a desordem. Terá que lidar com a pluralidade de nomes achando-se perdido, tal como Hans, na "maré das interrogações" (Idem, 356) sobre o passado (past as lived)[5]; passado esse que abrange o leque de ações, decisões e oportunidades que ficaram na sombra daquele que é sintetizado na grande narrativa da História. A crise de interpretação que carateriza a flânerie e a investigação de Hans prolonga-se até na reduplicação do objeto cobiçado o diamante: o Olho de Hertzog representa a oportunidade de alterar o rumo da História. No entanto, ela é desaproveitada no meio dos acasos, encontros e eventos revelados ao longo das diversas estórias que Hans escuta, compreendendo aos poucos a sua articulação um detetive inexperiente, um leitor ignorante do passado.

Por exemplo, ele confessa que não sabe quem é o general Koos de la Rey, levando Natalie Korenico, de proveniência inglesa, a contar "a saga do general tal como os africânderes a contam" (Idem, 232): "Montado no seu cavalo branco, De la Rey escapou a todas as armadilhas, surgiu sempre onde menos o esperavam" (Ibidem).

Contrasta com este heroísmo idealizado a guerra total e destrutiva dos invasores ingleses, não poupando a população civil e levando-a a campos de concentração. É Natalie que lhe tem que contar o que ele deveria saber: o general De la Rey é obrigado a assinar, a 31 de maio de 1902, o Tratado de Vereeniging, entre o Reino Unido e as repúblicas do Transvaal e do Estado Livre de Orange, ficando, a partir daquela data, todo o território sob domínio dos vencedores, sendo denominado União Sul-Africana.

Longe de ficar pelos factos, esta revisitação do passado, aparentemente ingénua, procura as possibilidades alternativas, introduzindo assim uma paradoxal dimensão messiânica, correspondendo à contradição inerente da "history as prophecy" (Wesseling, 1991) que carateriza o romance histórico autorreflexivo. Contudo, também esta dimensão messiânica não é afirmativa nem unívoca, porque surge não como uma pluralidade de projeções sobre o futuro (para o leitor implícito: o passado) mas também como a possibilidade de uma leitura irónica. Por exemplo, basta pensar no encontro final de Hans com aquele contabilista de nome Salazar, cujo letreiro promete "Projecto de futuro alicerçado em sólidos valores. Ordem e Progresso" (Idem, 438). Hans este letreiro numa "última porta, mais austera, sem os arabescos que ornamentam as restantes. Uma porta incongruente num prédio como aquele, e todavia de algum modo cheirando a futuro" (Ibidem).

Dissemos que aquele prédio que Hans não se lembra ter visto antes, faz lembrar as Cidades Invisíveis de Calvino. No entanto, o leitor também se deve lembrar daquela outra cidade que Hans tinha sonhado numa ocasião prévia:

Entrávamos por uma cidade quase europeia, não fosse a cor da sua miséria. Na frente, o kommandant montado num cavalo branco e envergando o uniforme de gala, comigo por perto nas minhas nóveis funções de adjudante-de-campo. (Idem, 271)

Este devaneio da entrada triunfal do general Lettow-Vorbeck, com "as companhias de askaris alemães, impecavelmente uniformizadas e alinhadas, de espingarda ao ombro" (Ibidem), é facilmente reconhecível como aquela verídica, em 2 de março de 1919, na capital derrotada do antigo Império Alemão, cidade a mergulhar numa miséria quase não-europeia sob as severas sanções impostas pelo Tratado de Versalhes. Tal como o general Koos de la Rey, imbatível na sua campanha contra os ingleses, Lettow-Vorbeck, ele também montado num cavalo branco, será arauto de outro salvador messiânico. Entende-se a dupla ironia de Berlim como "cidade quase europeia", na qual entram os "askaris alemães": uma inversão que deve ser vista no âmbito deste projeto narrativo que empreende um reposicionamento de África, e em concreto da História de Moçambique e de Lourenço Marques, perante a Primeira Guerra Mundial, habitualmente narrada numa perspetiva eurocêntrica.

Este projeto implica também uma abordagem das consequências da Segunda Guerra dos Bóeres, tal como a analogia entre Koos de la Rey e Lettow-Vorbeck insinua.

2. Entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra dos Bóeres uma perspetiva ex-cêntrica Uma parte da ação centra-se nos acontecimentos relacionados com um marco emblemático da grande narrativa civilizacional europeia: a Primeira Guerra Mundial. Hans Mahrenholz apresenta os combates travados pela Schutztruppe[6] no território africano, onde se encontra com LettowVorbeck e posteriormente Sebastian Glück, personagem que acabará por definir o desenrolar dos acontecimentos.

O que a grande narrativa marginaliza é o facto de a Primeira Guerra Mundial também ter marcado "uma viragem social e económica mas sobretudo política em África" (M’Bokolo, 2007: 385). Borges Coelho faz uma crítica à perspetiva eurocêntrica tradicional, resgatando ao mesmo tempo uma História de Moçambique.

A historiografia ocidental (europeia e norte-americana) recentemente tem abandonado a visão periférica de África neste conflito, considerando o seu próprio "maelstrom":

Indeed Britain and Germany did not formally agree to cease hostilities in East Africa until two weeks after the Armistice was signed in Europe in November 1918; and in the intervening four years Britain, India, South Africa, Belgium, Portugal and Germany were sucked into a maelstrom which radically altered the lives of millions of Africans and would result in a complete redrawing of the map of colonial Africa. (Paice, 2010: 21)

Este romance histórico autorreflexivo procura trazer para o domínio público a importância que "a luta entre as potências europeias" assumiu no território africano, pondo em causa "a suposta primazia do homem branco e, logo, um dos alicerces da própria colonização" (M’Bokolo, 2007: 385). Conforme Brugioni (2012: 399), "Borges Coelho situa a narração do conflito a partir de um espaço / tempo ex-cêntrico, baseando a sua afirmação em Bhabha (1995) e, no que diz respeito "à especificidade do conflicto mundial no território africano", em M’Bokolo (2007).[7] Propomo-nos articular esta abordagem com o conceito de uma perspetiva "ex-cêntrica" contra o poder autoritário do discurso único (Hutcheon, 1988: 12) e com a organização dialógica ou polifónica do romance (Bakhtin, 1981).

Explorando-se um pouco mais esta ideia, pode-se verificar que, ao longo da narrativa, surgem várias versões que vão sendo contadas acerca do mesmo facto.

Atente-se, a título de exemplo na misteriosa personagem de Sebastian Glück.

Quando o coronel aparece junto ao exército alemão, surge como alguém enigmático, de identidade ambígua. Assim, Hans fica curioso relativamente ao passado e começa a relatar supostas aventuras vividas pelo oficial, reveladas pelos seus companheiros. O médico Gasparini, o major Matthaus, o ajudante de cozinheiro Santana, entre outros, contam extraordinárias e fantasiosas histórias sobre o misterioso coronel, que parece ser ora uma figura quase mítica ora um criminoso psicopata.

Além deste exemplo, podem-se também referir o testemunho do padre Sacramento da vida de Rapsides, as histórias de amor e intriga misturadas com as críticas à injustiça social do jornalista Albasini, entre outras. Esta combinação de vozes, que contam estórias e não escrevem a História, poderia sugerir a ligação do romance com a tradição oral da literatura africana, se não fossem sobretudo as personagens femininas vindas da Europa e da África do Sul as contadoras mais ativas: Florence, Natalie e Wally. Esta polifonia fica associada a uma revisitação do passado que explora as possibilidades que ficaram na sombra da grande narrativa, introduzindo assim uma paradoxal dimensão messiânica. Esta não se afirma de forma unívoca e até às vezes parece ironizada, tal como acontece no referido devaneio da entrada triunfal do general Lettow-Vorbeck, parodiada por outras versões:

Klopper talvez se visse a si próprio montado no cavalo branco de Lettow, respondendo aos acenos da multidão com uma mão, com a outra consultando o seu relógio, seguido do seu ajudante-de-campo, o reverendo corcunda Jozua Naudé, de manto escuro drapeando ao vento; (). (Idem, 271-72)

Estas fantasias surgem na sequência de um plano de mudar o rumo da História, conferindo um novo sentido à fuga das tropas de LettowVorbeck, uma vez que a guerra estava praticamente decidida em território europeu: "Lettow marcharia com a sua força sobre Joanesburgo!" (Idem, 265). O artífice é Sebastian Glück que ainda fala da hipótese remota de a presença alemã na África Austral "ditar o curso dos acontecimentos na Europa" (Ibidem). O plano do misterioso Glück (em alemão: sorte) previa uma audaz confluência de diversas visões messiânicas, nacionais no sentido lato, contra o poder opressor do Reino Unido. Este D.

Sebastião não queria juntar a Jong Zuid Afrika que apoiava o general Hertzog, "o único político com coragem e valores para se bater pela causa do seu verdadeiro povo" (Idem, 270), mas também os africanos que sonhavam de recuperar o antigo império de Macombe: Glück reuniu-se com um dos herdeiros, Nongwe-Nongwe, acompanhado por Mbuya, "uma feiticeira muito jovem, encarregado de receber de Kabudu Kagoro, o grande Deus local, as mensagens que transmitia aos combatentes" (Idem, 262): "() nessa noite tivera um sonho, um sonho em que vinham de longe grandes guerreiros para os ajudar a vencer o Diabo" (Ibidem).

Embora todo este plano que tem movimentações historicamente documentadas como base tenha ficado reduzido a uma construção geopolítica imaginária perante o Não categórico de Lettow-Vorbeck que não se deixa manipular por Glück, o seu valor para uma historiografia alternativa, aberta às oportunidades desaproveitadas é inegável. O general alemão, focado na Europa, nega a possibilidade de uma união entre os Bóer dissidentes da União, os askaris alemães e os povos da Zambézia contra a hegemonia britânica, o que teria tido como consequência um reposicionamento de Moçambique para uma maior centralidade, entre Europa e África do Sul. É uma alternativa aliciante perante a História colonial portuguesa que, no outono de 1917, declara concluída "a pacificação da Zambézia, desta vez de forma definitiva até à moderna guerra pela independência" (Alexandre, 1998: 190).

É nesta encruzilhada da História entre a pluralidade dos poderes e a consolidação da hegemonia britânica que a reduplicação do objeto cobiçado o Olho de Hertzog adquire significado político por representar a esperança de alterar o rumo. No entanto, é a noite "daquele fatídico 16 de Setembro" (Borges Coelho, 2010: 234) que deita as ilusões por terra. Por um acaso ou pelo destino [8], mais uma questão de interpretação, acontece um singular cruzamento entre a trajetória final de um gang de ladrões que se tornou famoso na África do Sul e a movimentação de militares da nação africânder, contrária à grande narrativa da União Sul-Africana. O general Koos de la Rey, talvez no caminho de se juntar à revolta contra a União (Idem, 288), procurando a aliança com as forças alemãs em vez de entrar ao lado dos britânicos no Sudoeste Africano Alemão, e o bandido Bill Foster com os seus companheiros, após o cerco policial finalmente acurralados dentro de uma gruta em Joanesburgo, morrem na mesma noite de 15 para 16 de setembro de 1914. "Os dois enterros ocorreram no mesmo dia, quase em simultâneo. Um envolto em pompa e circunstância, o outro mais modesto, assistido apenas pela família Korenico" (Idem, 289).

Este cruzamento revela-se como um dos maiores nós na teia das biografias, todas elas caraterizadas por um milagre, um renascimento ou uma segunda vida que se acrescenta a identidades historicamente documentadas. Portanto, uma componente de missão ou predestinação perpassa todas as narrativas. Por um motivo ou outro, todos eles recebem a chamada de se encontrar em Lourenço Marques, neste centro periférico (cf. Brugioni, 2012: 392) no eixo entre Europa e África do Sul, tornando-se "uma cidade de espelhos onde os acontecimentos que pareciam definitivos não passam afinal de um mero reflexo de verdades sempre novas, escondidas dentro dele" (Idem, 291).

Natalie é quem melhor encarna o renascimento que o romance confere a algumas das personagens. Nascida como Martina Korenico em Brighton, apaixona-se na sua juventude por William Foster, futuro líder de um gang de ladrões. Juntamente com John Maxim e Carl Mezar leva a cabo um conjunto de assaltos que acabariam por ditar o seu fim dentro da mencionada gruta em Joanesburgo. Decidem então pôr fim à sua vida. Não sem antes Bill pedir para ver uma última vez a sua esposa, agora Peggy Foster. É então que se ouvem fora da gruta três tiros e, após entrarem, os polícias encontram os corpos de Foster, Maxim, Peggy e Carl que foi o primeiro a ser alvejado por Maxim, a seu pedido. Os pais de Peggy, ao saberem do sucedido, pedem ao detetive para levarem o corpo da filha de volta para casa, para poder ser sepultada. O detetive acede e na viagem para casa dos Korenico descobrem que Peggy afinal estava viva. É aqui que a narrativa lhe confere a tal segunda vida, pois nos relatos oficiais (vd. Davie, 2003) esta tinha realmente falecido conjuntamente com todos os outros membros do Foster Gang, como ficou conhecido em Joanesburgo. Após o sucedido, nasce a nova identidade de Natalie Korenico que acaba por viajar para Lourenço Marques, tal como o seu amante sempre tinha desejado.

Este exemplo mostra como o romance questiona, de forma criativa, a relação entre a representação e os factos. Tudo isto vai de encontro ao que Hayden White refere na sua obra Metahistory (White, 1973). A sua conceção de obras históricas como narrativas literárias, sem serem declaradas como tal, funde a distinção entre História e estória, pois enquanto as narrativas históricas são construídas a partir de factos reconhecidos, precisa-se necessariamente de se recorrer à imaginação para organizar esses mesmos factos numa história coerente, sempre tendo em conta as estratégicas metafóricas e ideológicas utilizadas para explicar o passado (Munslow, 1997: 9). Daí White referir que a ciência histórica falha quando o seu objetivo é a reconstrução objetiva do passado. Com a estratégia narrativa de um cruzamento entre a História e biografias parcialmente inventadas, o Olho de Hertzog aproxima-se também do conceito de "metaficção historiográfica" apresentado por Linda Hutcheon (1988: 97).

O romance procura passar a ideia de que a História não pode ser vista nem construída de uma forma tão unívoca e linear, e ao extrapolar todas as narrativas, quer com pessoas, quer com acontecimentos, O Olho de Hertzog redefine o lugar de Moçambique na História. No seguimento desta ideia, é oportuno referir a introdução intertextual de narrativas que vão fornecendo informações que se assumem como fundamentais para a construção do romance, como se os testemunhos, conforme apresentado por Beatriz Sarlo (2005), se provassem fundamentais para a construção das chamadas narrativas dominantes. É o caso das memórias do general Lettow-Vorbeck[9] que se tornaram populares sob a versão encurtada Heia Safari! Deutschlands Kampf in Ostafrika (1920). Sob a perspetiva que aqui desenvolvemos, a nota prévia das memórias é elucidativa:

Os meus próprios apontamentos perderam-se em grande parte, e faltou- me tempo livre () para debruçar-me em pormenor sobre a campanha em África Oriental. Assim posso fornecer indicações incompletas. No essencial, tenho que confiar na minha memória e no que eu próprio vivi. Alguns erros são inevitáveis." (Lettow-Vorbeck, 1920: VI)

Nos anos trinta, proliferam ficções historiográficas em torno das lutas dos alemães na África Oriental, nomeadamente do escritor popular Friedrich Wilhelm Mader.[10] Nas memórias de Lettow-Vorbeck não aparecem nem Sebastian Glück nem Hans Mahrenholz. Desconhecemos se o fazem num destes romances.

3. O jogo das identidades e o reposicionamento De facto, quando se O Olho de Hertzog, as dúvidas são constantes. Quem é Hans Mahrenholz e o que procura? Que segredos esconde Rapsides? De que forma é que as histórias de todas as personagens se interligam entre si e de que modo necessitam umas das outras para fazerem sentido? Veja-se, a título de exemplo, o caso do protagonista e narrador da história: Hans Mahrenholz, antigo oficial alemão, membro da Schutztruppe, surge em Lourenço Marques como Henry Miller. Primeiro, como empresário à procura de oportunidades de negócio e, posteriormente, como jornalista do Rand Daily Mail, com vista a elaboração de uma reportagem sobre as condições de recrutamento dos trabalhadores das minas.

Sabe-se que existiu historicamente um oficial alemão com o nome de Hans Marholz que fez parte da missão do Afrika Luftschiff, sob o comando de Ludwig Bockholt, apesar de ser oriundo de Königsberg e não de Hamburgo. É dois anos mais velho do que o próprio capitão Bockholt, também presente no romance.

O romance confere a esta personagem uma reincarnação sob um nome ligeiramente diferente, uma nova vida, cujo destino é de se integrar numa História alternativa centrada no continente africano. A viagem apócrifa do Afrika Luftschiff é paradigmática no sentido do reposicionamento que o romance empreende e pode ser entendida como narrativa inaugural deste estratégia, depois repetido com outras personagens.

Depois de um primeiro voo de teste, o embarque de Mahrenholz / Marholz ocorre em Jamboli, na Bulgária, "a base alemã mais próxima do continente africano" (Borges Coelho, 2010: 51), em 21 de novembro de 1917, para uma viagem oficialmente sem regresso: "Em África não havia condições de reabastecer o Afrika Luftschiff de combustível e gás para tornar possível a viagem de regresso. [...] O aparelho seria desmantelado à chegada" (Idem, 49).

estas indicações, historicamente documentadas, deixam entrever a intenção de re-funcionalizar um episódio secundário no contexto geral do desastroso desempenho militar dos dirigíveis do Império Alemão que, no início da Grande Guerra, tiveram a fama de arma milagrosa. Tal episódio torna-se ocasião historicamente possível para a iniciação africana de um dos tripulantes: Hans Marholz ficcionalizado em Hans Mahrenholz. O projeto de uma viagem sem regresso para África adquire para o Eu nesta ficção historiográfica uma "natureza mais profunda, ganhando características de verdadeira partida, um definitivo mergulho na escuridão" (Idem, 49). Esta imagem de "mergulho" reaparecerá continuamente ao longo da narrativa da missão historicamente abortada de abastecer as forças dizimadas e exaustas de Lettow-Vorbeck na África Oriental com armamento e medicamentos: "Quanto a mim, o que é também de algum modo estranho, sentia cada vez mais forte a vontade de seguir em frente, de mergulhar" (Idem, 53). Esta vontade entra em conflito com a versão histórica do voo a partir do momento que o rádio recebe do Almirantado o comando de regressar, por não haver condições de realizar a missão de apoio às tropas de Lettow-Vorbeck. Esta mensagem deveria ter chegado antes, porque a decisão foi tomada três horas e meia após a partida do L-59 (assim o nome de fábrica do dirigível). No entanto era impossível transmiti-la a partir de Jamboli, havia necessidade de utilizar a potente estação-rádio de Nauen, perto de Berlim, que na noite do dia 22 para o dia 23, às 0.45 horas, conseguiu transmitir o telegrama.[11] Em vez de obedecer "a voz roufenha de Nauen apelando a que regressássemos a casa" (Idem, 57), conforme a versão histórica, o comandante Bockholt do romance "continuava a pretender levar a missão até ao fim" (Ibidem), mesmo perante a insubordinação de uma parte da tripulação. É neste momento, que surge Mahrenholz ( não idêntico com o Marholz histórico) "ao lado do comandante": "Como disse, muito a minha decisão estava tomada, nada me faria voltar atrás" (Idem, 59). Mahrenholz consegue convencer Bockholt em prosseguir "em direcção ao sul por mais seis horas, após o que eu saltaria com algum equipamento e eles dariam meia volta, de regresso a casa ainda em condições de serem bem-sucedidos" (Idem, 60). Este salto de paraquedas de facto estava previsto no projeto inicial da viagem, a ser executado por outro tripulante, Emil Grussdorf, que se voluntariou para esta missão muito arriscada: uma vez na mata, ele deveria procurar entrar em contacto com as tropas de Lettow-Vorbeck e preparar, junto com os soldados, o local de aterragem. No romance, é Mahrenholz que assume esta "operação estranha" (Idem, 62), disfarçando de heroísmo militar o seu projeto pessoal ainda difuso de ficar em África: "(), e finalmente, com um aceno geral de despedida, mergulhei no espaço" (Ibidem).

Este voo de seis horas historicamente indocumentado, no entanto imaginável transforma o L-59 numa "espécie de navio fantasma sobrevoando um espaço que não constava nem na geografia nem sequer no tempo" (Idem, 62). A prolongação, contrária da versão oficialmente comprovada (fig.1), possibilita uma articulação do espaço geográfico e do tempo histórico de Moçambique com uma Europa que sente a atração de África como novo centro e como oportunidade de uma segunda vida, como demonstram as biografias inventadas de outras personagens, nomeadamente Valerie "Wally" Neuzil, a primeira modelo e musa de Egon Schiele. À imagem de Hans, também esta pintora austríaca, tradicionalmente vista na sombra de Schiele, teve direito a uma segunda vida, sentindo a chamada de África, no seu caso através de um quadro de Picasso, supostamente influenciado pela arte africana (Idem, 243).

Fonte: http://www.frontflieger.de/fflgfoto/2-l059_afrika.jpg Portanto, esta prolongação do voo inaugura o reposicionamento do qual falámos.

No romance, o regresso do zepelim L-59 que na História militar alemã completa o episódio, tradicionalmente mitificado como façanha em termos tecnológicos e afirmação nacional (vd. Goebel, 1925, entre outros) simplesmente deixa de ter relevância[12], porque o que interessa é o mergulho de Mahrenholz como entrada sem regresso em África. Ao mesmo tempo, isto significa uma articulação ex-cêntrica entre modernidade europeia e mundo africano colonial, não no sentido de Homi Bhabha, mas também de Bakhtin: Mahrenholz pode ser visto como protagonista de uma estória na tradição satírica de Icaromenipo, tal como o Padre Bartolomeu com a sua passarola sobrevoando as obras da construção do Convento de Mafra no romance Memorial do Convento. Tal como no caso do romance de Saramago, interessa como a perspetiva ex-cêntrica é capaz de interrogar a narrativa dominante, reinterpretando-a através da extrapolação do historicamente imaginável: como procurámos comprovar, o voo do zepelim não é simplesmente o elemento fantasioso ou misterioso que complementa, num sentido romântico, o "plano da realidade" (Saraiva, 2010: 237) da guerra na África Oriental, cumpre sim o papel inaugural de um reposicionamento que abrange toda a metafição historiográfica. uma coincidência histórica perfeita: as tropas de LettowVorbeck atravessam o Rowuma na manhã do dia 25 de novembro de 1917 (Lettow-Vorbeck, 1920: 207). A chegada de Hans junto do general imbatível é entendido como "duplo milagre" (Borges Coelho, 2010: 46), abrindo a dimensão messiânica retomada por Sebastian Glück (Idem, 366-67), quando confia ao jornalista Henry Miller a missão da procura do Olho de Hertzog.


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