Nota de Abertura
Nota de Abertura
A concepção deste número deAnálise Psicológicasurgiu quando da realização no
ISPA do XI Colóquio de Psicologia e Educaçãointitulado“Experiência Social,
Educação e Desenvolvimento” que, embora inserido no âmbito das comemorações dos
40 anos do Instituto, foi organizado pelo Departamento de Psicologia
Educacional e pela UIPCDE, já sendo considerado um tradicional espaço de
partilha e debate de trabalhos, ideias e preocupações ligadas à educação.
Este encontro científico contou com a colaboração de 75 oradores nacionais e
estrangeiros e cerca de 600 participantes oriundos de todo o país e com
diferentes tipos de formação e de actividade profissional, aderência reveladora
do impacto desta iniciativa.
Dentro dos especialistas que apresentaram comunicações alguns disponibilizaram-
se a publicar os seus trabalhos e conseguimos 24 artigos que vos damos a
conhecer.
Nos últimos anos o papel da Experiência Social na Educação e Desenvolvimento
tem sido alvo de inúmeros trabalhos empíricos e reflexões, sendo evidente a
inspiração em Vygotsky e nas ideias base da sua teoria. Dentro da complexidade
da teoria sublinhamos a componenteSócio-cultural: a actividade intelectual
complexa não é resultante de capacidades naturais internas, mas da história
cultural da sociedade. A componenteSocial: é pela participação activa em
situações sociais com membros mais competentes da sua comunidade, que a criança
se apropria dos instrumentos culturais. E a componenteSemiótica: as relações
sociais são mediadas por instrumentos semióticos, cuja apropriação e domínio
conduz à reorganização da actividade individual.
A actividade psicológica complexa não é inata, mas um produto histórico
resultante da história natural e da história sócio-cultural e o pensamento é
resultante do controlo exercido pelas práticas sócio-culturais sobre as
capacidades naturais, a socialização do cérebro e do corpo por meios culturais
historicamente construídos - os sistemas de signos.
Sabendo que a apropriação de produtos culturais e a sua integração na
actividade psicológica individual vai alargar a capacidade da acção humana, o
campo de estudos da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia Educacional
aparece intrincado:Como é que o indivíduo se vai apropriando progressivamente
dos instrumentos historicamente construídos, como é que o uso destes
instrumentos vai permitindo uma evolução e transformação e em que situações e
como ocorre esta transmissão, apropriação e actualização de saberes culturais.
Estes objectivos tem sido explorados, ao longo de 20 anos de trabalho empírico
por Barbara Rogoff, entrevistada por Zilda Fidalgo e a autora do nosso primeiro
artigo, que com um enfoque particular na observação etnográfica e em
metodologias qualitativas, aprofunda processos de desenvolvimento e
aprendizagem por diferentes formas de participação guiada em contextos de
actividade social, reconhecendo a complexidade da unidade entre as pessoas e o
seus contextos sócio-culturais.
As teses sócio-culturais evitam reduzir o homem a uma história natural do seu
cérebro situando a actividade mental em contextos histórico-culturais que as
determinam e lhes dão forma. Esta preocupação aparece latente no artigo de
Gomes Pedro quando se interrogaO que é ser criança, afinal, quando
perspectivamos a viagem da genética ao comportamento?
E nos diz:
É a dinâmica das relações entre factores nomeadamente mediados por diferentes
genomas e os infinitos condicionantes do ambiente, sobretudo proporcionados
pelos laços afectivos e morais, o que determina o comportamento e, com ele, o
modo de viver, de ser e de estar.
Os contextos e programas de intervenção precoce são o tema dos artigos de Júlia
Pimentel, Teresa Brandão Coutinho e Isabel Chaves de Almeida. Nestes artigos
existem pelo menos três ideias comuns: a importância do envolvimento das
famílias nos programas desenvolvidos no âmbito dos projectos integrados de
Intervenção Precoce; a preocupação em aumentar os níveis de informação e as
competências educativas parentais e não esquecer que criança e família estão
integradas na comunidade.
Todo o indivíduo é construção da sua experiência hereditária e pessoal
resultante da relação como seu eco-sistema e da experiência sócio-histórica.
Interrogando-se sobre a forma como a criança, no âmbito da sua experiência
social, se apropria de instrumentos culturais pelo seu uso na actividade
quotidiana com parceiros sociais, Isabel Matta explora a apropriação de
estruturas esquemáticas, nomeadamente a narrativa.
As preocupações com a qualidade dos ambientes de ensino-aprendizagem estão
patentes no artigo de Júlia Formosinho e Sara Barros Araújo onde o envolvimento
é o conceito explorado para aprofundar a qualidade educativa e, segundo as
autoras:... o envolvimento não ocorre quando as actividades são demasiado
fáceis ou demasiado exigentes. Para haver envolvimento, a criança tem de
funcionar no limite das suas capacidades, ou seja, na zona de desenvolvimento
próximo...
A aprendizagem é um processo essencialmente social e o conceito de ZPD aplica-
se ao estudo de processos de transmissão - apropriação cultural formais e
informais. São inúmeros os trabalhos que têm estudado as interacções adulto-
criança no contexto escolar e fora deste, e em todos os casos se tem revelado
que a auto-regulação resulta da participação activa do aprendiz em situações
inicialmente reguladas pelo outro. O aprendiz participa na co-construção do seu
próprio desenvolvimento pela sua (individual e ao seu nível) apropriação de
meios, objectivos e instrumentos que os mais competentes lhe fornecem e as
reais implicações educativas vêm pelo transferência deste conhecimento a outras
situações da vida social.
No período pré-escolar a criança vai sobretudo aprender em situações marcadas
por uma certa informalidade e vai sobretudo apropriar-se de conhecimentos no
âmbito da linguagem e das regras de convivência social.
O artigo de Lourdes Mata mostra como práticas quotidianas de literacia familiar
(ex. ler um livro de histórias, escrever uma carta, ou fazer uma lista de
compras) realizadas pelos elementos da família são tão importantes no
desenvolvimento de atitudes positivas face à aprendizagem da linguagem escrita
assim como, na facilitação do processo de descoberta e apreensão dos aspectos
funcionais, convencionais e conceptuais característicos da linguagem escrita.
A adaptação psico-social no Jardim de Infância, resultante da apropriação de
regras de convivência social e de negociação com o pares e adultos, é o tema do
trabalho de Raquel Silva, Manuela Veríssimo e António José dos Santos. Os
resultados por um lado, evidenciam a importância do desenvolvimento da
linguagem e da construção das relações nos grupos nas mudanças evolutivas de
alguns comportamentos, e por outro, diferentes perfis comportamentais com
consequências ao nível da adaptação e inserção no grupo. Os autores sublinham a
necessidade de criar planos de intervenção em contextos de inadaptação social
precoce.
As dificuldades encontradas pelas nossas crianças na apropriação da sequência
numérica é o assunto do trabalho apresentado por Filomena Gaspar.
O computador enquanto instrumento mediador das interacções sociais em torno da
aprendizagem de regras da linguagem escrita é detalhadamente estudado por Lúcia
Amante.
Isabel Matta, Sally Rebelo e Cátia Martins estudam o papel mediador da
linguagem e do formato discursivo na retenção e recordação de informação de
crianças de pré-escolar e 1.º ciclo, a propósito de uma pintura de Picasso e de
uma visita ao Oceanário de Lisboa.
O ensino precoce da ciência, contribuindo paraa aquisição de ideias e conceitos
de ciência, atitudes científicas, capacidades manipulativas e de comunicação, o
sentido da precisão e rigor e sobretudo para satisfazer e estimular a
curiosidade da criança de modo a criar o gosto por aprender e compreender o
mundo que a rodeia, é o assunto explorado no artigo de Paulina Mata, Conceição
Bettencourt, Maria José Lino e Marília Paiva.
No período escolar a criança vai apropriar-se de saberes formais (linguagem
escrita, conceitos científicos, sistemas de cálculo, etc.) no quadro da
instituição escola regida por múltiplas regras, evoluindo no sentido do
domínio, do voluntário e consciente.
Um olhar crítico sobre a interpretação das dificuldades encontradas pelas
crianças na apropriação da linguagem escrita é apresentado por Serge Regane.
Uma reflexão sobre a descoberta de regras essenciais à apropriação da linguagem
escrita é desenvolvida por Cristina Silva. Já Fátima Valente e Margarida Alves
Martins comparam os resultados de duas metodologias de ensino no
desenvolvimento e utilização de competências de leitura. Ainda dentro da
temática do ensino-aprendizagem da linguagem escrita, um outro artigo, assinado
por Inês Horta e Margarida Alves Martins, explora o longo caminho da
consciência das regras e do seu uso voluntário, pela análise crítica do erro.
A análise de dinâmicas interactivas potencializadoras de desenvolvimento e
aprendizagem em crianças com deficiência mental é o tema do trabalho empírico
apresentado por Cláudia Martinho.
Os resultados do trabalho de Francisco Peixoto, sobre percepção das relações
familiares, auto-conceito, auto-estima e resultados escolares, apesar de
algumas especificidades ligadas às idades estudadas, estão na generalidade, de
acordo com diversos estudos, revelando que a qualidade das relações
estabelecidas na família não só se relaciona com um auto-conceito positivo,
como torna ainda possível a construção de sentimentos de competência e valor
que contribuem para o desenvolvimento de uma auto-estima positiva.
Os saberes e conhecimentos são produtos culturais de determinada sociedade cuja
apropriação e domínio vai depender de múltiplas variáveis, do enquadramento
institucional, das relações sociais estabelecidas, dos agentes sociais
transmissores, da forma de transmissão, dos contextos de apropriação, dos meios
interpretativos do sujeito, etc. Como referiu Rogoffa direcção do
desenvolvimento varia localmente de acordo com os valores culturais, as
necessidades interpessoais e as circunstâncias específicas. Ora para além da
apropriação dos saberes, uma das grandes questões da psicologia da educação e
do desenvolvimento actual é, sem dúvida, a actualização distanciada e
reconstruída destes saberes por indivíduos específicos em circunstâncias
concretas, uma participação regida pela autonomia, o espírito crítico e o
controlo estratégico da sua própria acção.
Uma proposta actual de Educação para a Paz e Cidadania assente em princípios
democráticos, baseada na enfatização do valor da vida humana e da cultura da
não violência, fomentando o compromisso com a procura da verdade e
sensibilizando para o valor da justiça em detrimento da vingança e do ódio é
desenvolvida por Xesús Jares.
Uma análise da qualidade do ambiente educativo a partir dos conflitos da sala
de aula e de estratégias mobilizadas para os resolver é levada a cabo por Ana
Carita.
Uma reflexão sobre os domínios e actores da Prevenção Primária é desenvolvida
por Rui Pedro Silva sublinhando que...as intervenções em prevenção devem ser
precoces, continuadas no tempo, envolvendo o maior número possível de actores
sociais trabalhando articulada e complementarmente, e baseadas numa relação de
conhecimento e confiança entre as pessoas. E que...É este jogo subtil entre a
autonomia e a dependência que torna as decisões tão difíceis e o trabalho em
prevenção tão criativo, aliciante e enriquecedor.
Terminamos este número temático com uma reflexão sobre a descentralização
educativa, a partir de um trabalho empírico desenvolvido por Paulo Louro e
Pedro Ayres Fernandes, junto de um Município ao nível da definição e
implementação de uma política de intervenção no campo educativo.
Cientes de que é na partilha, no debate de ideias, no confronto de pontos de
vista que se avança no conhecimento, esperamos que este número de Análise
Psicológica, represente um passo em frente na nossa reflexão e intervenção em
Psicologia do Desenvolvimento e Educação.
ISABEL MATTA