Qualidade da vinculação ao pai e à mãe e o desenvolvimento da amizade recíproca
em crianças de idade pré-escolar
A maioria das crianças na sociedade urbana actual toma contacto com uma rede
alargada de relacionamentos, fora da família nuclear e da supervisão dos pais,
durante o chamado período pré-escolar, ou seja sensivelmente entre os 2-3 e os
5-6 anos de idade. As crianças inseridas em contextos educativos e de cuidados
pré-escolares estabelecem relacionamentos cada vez mais numerosos e
qualitativamente diferenciados, configurando uma rede social afiliativa
complexa (Hay, Payne, & Chadwick, 2004; Howes et al., 1998; Strayer &
Santos, 1996). Esta rede afiliativa normalmente inclui o contacto frequente com
crianças desconhecidas, interacções mais ou menos esporádicas com crianças
familiares, mas também relacionamentos preferenciais e estáveis que podem
configurar as chamadas amizades (Howes, 1983).
De facto, parece existir um aumento linear no tamanho dos grupos afiliativos da
criança à medida que a idade avança e o desenvolvimento ocorre. Se já é
possível observar relações diádicas coesas em crianças com cerca de dois anos
de idade, cerca dos três anos os laços diádicos parecem ser aspectos nascentes
de organização grupal mais vasta e mais complexa (Strayer & Santos, 1996;
Hay et al., 2004). O contacto com uma nova rede social de adultos e outras
crianças é uma oportunidade para o desenvolvimento socio-emocional ao mesmo
tempo que representa um desafio às capacidades de adaptação da criança num
ambiente social complexo (Hay et al., 2004; Waters & Sroufe, 1983).
O estabelecimento, manutenção e estabilidade de relações positivas de amizade
parece conduzir ao desenvolvimento de repertórios de competências sociais
mutuamente aprendidas, que se tornam cada vez mais sofisticados (Howes, 1983) e
estes são considerados factores importantes para uma melhor adaptação ao
jardim-escola (Ladd & Price, 1987; Rubin & Coplan, 1998), bem como para
o ajustamento psicológico, bem-estar e relação social ao longo da vida (e.g.
Szewczyk-Sokolwski et al., 2005).
Trabalhos empíricos têm mostrado a influência decisiva da interacção com os
pares e da amizade na socialização dos impulsos agressivos, na cognição e
cognição social, nas competências linguísticas, e no desenvolvimento moral da
criança, bem como no ajustamento posterior em pelo menos três domínios:
abandono escolar, criminalidade juvenil e adulta e psicopatologia (Coie et al.,
1992; Parker & Asher, 1987; Szewczyk-Sokolwski et al., 2005). Segundo
alguns autores a influência dos pares no comportamento da criança pode igualar
ou mesmo ultrapassar a influência dos pais em domínios como o brincar, a
agressividade e a justiça (Vaughn et al., 2000). Por outro lado a existência de
amigos na infância aumenta a probabilidade de acesso a suporte social quando a
criança dele necessita (Ladd & Kochenderfer, 1996).
Assim, a qualidade da adaptação à rede social da criança pré-escolar, tanto
dentro da família como fora dela, pode determinar em grande parte o
desenvolvimento social nesta faixa etária, bem como ter importantes implicações
para o ajustamento psicossocial durante o resto da vida (Hawley, 2002; Santos
& Winegar, 1999; Wood et al., 2004).
DIFERENÇAS INDIVIDUAIS NA INTERACÇÃO COM OS PARES
É possível observar desde cedo na infância assinaláveis diferenças individuais
no estilo de interacção da criança com as outras crianças: se por um lado
algumas desfrutam de muitas amizades e são bem aceites socialmente, no outro
extremo algumas crianças são quase totalmente rejeitadas e não tem amigos (Hay
et al., 2004; Parker & Asher, 1987).
Apesar de não existir uma sobreposição total entre determinados comportamentos
(ex., agressividade, empatia, etc.) e a afiliação da criança, as crianças
emocionalmente perturbadas demonstram agressividade e antagonismo com os pares,
e parecem formar afiliações instáveis (Strayer, 1979). Com base numa meta-
análise, Newcomb e Bagwell (1996) concluíram que ter amigos é um indicador de
competências interpessoais específicas.
Segundo o modelo de desenvolvimento sócio-emocional proposto por Waters e
Sroufe (1983) as vicissitudes da adaptação da criança a novas situações sociais
dependem 1) dos recursos materiais e sociais disponíveis no ambiente externo e
2) dos recursos pessoais da criança, nomeadamente ao nível das competências
sociais para estabelecer relacionamentos e interacções positivas e para
explorar o ambiente de forma adequada.
Ao nível dos recursos pessoais da criança pré-escolar, o estabelecimento de
amizades está dependente de competências para a troca de acções prosociais
recíprocas entre indivíduos tais como o brincar em cooperação, partilhar,
ajudar, confortar, etc. (Hay et al., 2004; Hinde, 1979; Parker & Asher,
1987; Ross, Cheyne, & Lollis, 1988; Youniss, 1986), bem como da expressão e
controlo da agressividade, da tomada de perspectiva, e da reciprocidade de
afecto positivo (Hay et al., 2004; Howes, 1983, Kramer & Gottman, 1992).
Apesar do relacionamento com os pares constituir uma tarefa desenvolvimental
muito saliente e importante nesta idade, não é no entanto o único factor de
desenvolvimento social. É comummente aceite que a relação primária com os pais
durante os primeiros anos de vida fornece à criança as fundações da capacidade
ou incapacidade de desenvolver relações sociais em geral e relações íntimas em
particular (e.g. Schneider et al., 2001). Assim, é importante compreender o
intercâmbio entre diferentes tipos de relacionamentos na rede social das
crianças (Hay et al., 2004). Por exemplo, de acordo com o modelo sinergético de
Hartup (1983), os relacionamentos com os pares e com as figuras parentais
contribuem de forma complementar para o desenvolvimento social. Segundo
McElwain e Volling (2004), e em concordância com Waters e Sroufe (1983),
estabelecer uma relação de vinculação segura aos pais assume a maior relevância
na primeira infância e providencia as fundações para um bom desempenho da
criança nas tarefas desenvolvimentais posteriores, especialmente as
relacionadas com as relações entre pares (Waters & Sroufe, 1983).
RELAÇÕES DE AMIZADE E VINCULAÇÃO AOS PAIS
A teoria da vinculação, originalmente proposta por John Bowlby, propõe que a
qualidade da vinculação da criança com os pais vai influenciar a qualidade da
interacção nas relações com os pares (Ainsworth et al., 1978; Bowlby, 1973,
1980, 1982; Park & Waters, 1989; Verissimo et al., 2003; Waters &
Sroufe, 1983). O estudo das relações com os pares na idade pré-escolar é de
particular interesse na perspectiva da teoria da vinculação, uma vez que nesta
idade costuma ocorrer o já referido alargamento significativo da rede social da
criança, e assim os efeitos da relação primária com os pais nos padrões de
relacionamento com outros parceiros se devem fazer sentir mais claramente
(Weinfield et al., 1997; Clark & Ladd, 2000).
PROCESSOS COMUNS À VINCULAÇÃO AOS PAIS E AO ESTABELECIMENTO DE AMIZADES
Existem várias razões teóricas para esperar uma associação entre a segurança da
vinculação com os cuidadores primários e a qualidade das relações da criança
com outras pessoas nomeadamente através da construção de modelos internos
dinâmicos (Ainsworth et al., 1978; Bowlby, 1973; Kerns, 2000; Wood et al.,
2004). Crianças com vinculação segura podem construir modelos internos
dinâmicos caracterizados por expectativas sociais positivas para as relações
(Bretherton, 1990; Booth et al., 1998; Weinfield et al., 1997; Wood et al.,
2004). Simultaneamente o fenómeno da "base segura" (Ainsworth et
al., 1978; Waters & Cummings, 2000) pode promover a exploração do meio e as
interacções com novas crianças, representando oportunidades para exercer e
desenvolver competências sociais gerais (Booth et al., 1998). Uma vinculação
segura pode determinar uma boa auto-estima e sentimentos de eficácia, o que
combinado com a aprendizagem de interacções recíprocas satisfatórias nas
relações precoces pode resultar numa tendência a obter respostas positivas dos
pares e a formar laços de amizade (Booth et al., 1998; Wood et al., 2004).
Em contraste, os padrões precoces insegurosde vinculação parental, pela
ausência dos referidos recursos pessoais e pelo afecto negativo resultante
dessa mesma vinculação insegura (Wood et al., 2004), podem resultar em
relacionamentos pobres com outras crianças e rejeição pelos pares. Crianças com
uma vinculação insegura podem tornar-se mais sensíveis a comportamentos
percepcionados como rejeição e hostilidade e dar origem respostas típicas tais
como evitamento ou agressão (e.g. Weinfield et al., 1997). Assim estas
crianças, podem tender a esperar dos outros hostilidade e relacionar-se com
pares com base nessa expectativa (Troy & Sroufe, 1987).
A influência da vinculação parental pode ser considerada de uma forma mais
global, ou seja explicando todos ou quase todos os aspectos do desenvolvimento
social da criança, ou pode ser tomada de uma forma mais restrita, ou seja
prevendo apenas a qualidade das relações próximas, íntimas, da criança com os
seus amigos (Schneider et al., 2001). Assim, segundo Howes (1983), enquanto o
pequeno número de relações diádicas de crianças mais novas pode servir a
necessidade de segurança da criança face à ausência das figuras parentais, por
outro lado as crianças do pré-escolar parecem explorar um número maior de
relações mais esporádicas e menos estáveis, o que pode implicar diferentes
tipos de competências sociais.
Desta forma, vários podem ser os processos que podem ligar causalmente os
fenómenos de vinculação aos pais e a relação da criança com as outras crianças;
estes processos podem ocorrer em vários níveis e ter várias ordens de
interacção entre eles. Na literatura são referidos quatro grandes tipos de
processos: 1) modelos internos dinâmicos, 2) imagem de si e auto-estima, 3)
emocionalidade de base e regulação emocional, 4) competências sociais
específicas para interacções sociais, pró-sociais e cooperativas.
MODELO INTERNO DINÂMICO
O modelo interno dinâmico de vinculação pode guiar o comportamento e a cognição
do sujeito de uma forma generalizada face a outros relacionamentos fora da
esfera familiar nuclear e em particular na relação com os pares (Park &
Waters, 1989; Weinfeild et al., 1997; Wood et al., 2004). Os esquemas
cognitivos e afectivos tais como expectativas, crençase atitudessobre as
relações humanas são considerados pela teoria como sendo partes operantes deste
modelo interno (e.g. Monteiro et al., 2008). Assim, crianças com vinculação do
tipo seguro podem ter expectativas sociais positivas que levam a uma
interpretação geralmente benévola dos comportamentos dos outros, e a respostas
pró-sociais (Weinfield et al., 1997). A exploração activa de um meio novo é
favorecido pelo fenómeno de "base segura", aumentando as
oportunidades para interacção positiva e relações satisfatórias (Booth et al.,
1998). Por outro lado, as crianças inseguramente vinculadas estão geralmente
mais predispostas a dar atenção, a interpretar e a responder a comportamentos
de rejeição e hostilidade, podendo levar a respostas contingentes de
afastamento e agressividade (Wood et al., 2004).
COMPETÊNCIAS SOCIAIS ESPECÍFICAS
As competências sociais específicas necessárias para a integração sequencial de
comportamentos, de modo a ser capaz de realizar interacções recíprocas com
outras pessoas, parecem ser aprendidas nas primeiras relações com as figuras
parentais (Weinfield et al., 1997). O mesmo sucede com a capacidade de tomada
de perspectiva social e comportamentos pró-sociais de aproximação (Wood et al.,
2004). Estudos empíricos têm revelado associações entre o relacionamento
positivo com os pais (em particular o suporte emocional), e competências
altruístas e de redução da agressividade na criança. Estes estudos, revelaram
por seu lado que o controlo excessivo e a intrusividade parental estão
associados a um baixo estatuto da criança entre os seus pares (Clark &
Ladd, 2000). As crianças de idade pré-escolar com uma vinculação segura, têm
mostrado ser mais empáticas e competentes com os seus pares e simultaneamente
terem melhores desempenhos nas medidas sociométricas de popularidade, bem como
uma melhor qualidade de interacção com os amigos pré-escolares do que as
crianças com vinculação insegura (Troy & Sroufe, 1987; Park & Waters,
1989). Num estudo com 192 crianças de 5 anos, Clark e Ladd (2000) definiram um
constructo de "orientação pró-social" composto por um conjunto de
capacidades da criança para empatizar com as emoções das outras crianças;
verificaram que a relação de suporte emocional com os pais determinava esta
orientação pró-social da criança; por sua vez a orientação pró-social da
criança estava significativamente relacionada com a) aceitação pelos pares, b)
número de amizades (mútuas), c) harmonia da amizade, e d) redução de conflito
nas interacções.
ESTUDOS SOBRE A ASSOCIAÇÃO ENTRE VINCULAÇÃO E RELAÇÃO COM PARES
A grande variedade de estudos usando medidas diferentes tanto de vinculação
como de relação com pares e amizade tem demonstrado resultados congruentes e
que revelam uma associação significativa entre segurança da vinculação parental
com a aceitação da criança entre os pares, assim como com o número e a
qualidade das amizades recíprocas da criança (Clark & Ladd, 2000; Schneider
et al., 2001) mas inúmeros aspectos permanecem ainda pouco claros e
insuficientemente estudados.
Numa meta-análise realizada com 65 estudos publicados entre 1970 e 1998,
Schneider et al.(2001) verificaram que o efeito da dimensão (effect size) da
associação entre a vinculação à figura materna e o sucesso das relações com
pares foi de 0.20 (Z=11.91, p<0.001). O grupo de estudos que avaliou
especificamente as amizades próximas revelou um efeito significativamente maior
da vinculação com mãe que o grupo de estudos sobre outro tipo de relação entre
pares. Estudos posteriores têm obtido resultados na mesma linha (e.g. Kerns,
2000; Wood et al., 2004).
Por outro lado, grande parte dos estudos tem-se centrado sobretudo na relação
de vinculação com a mãe, e não é claro qual o papel da vinculação a outras
figuras importantes da rede social da criança, tal como o pai, nestes
processos. Apenas cinco estudos dos 65 analisados por Schneider et al.(2001)
envolveram a avaliação da vinculação ao pai.
O PAPEL DA VINCULAÇÃO AO PAI
Apesar da teoria original de Bowlby (1973, 1980, 1982) propor a existência de
vinculação ao pai e salientar a sua grande importância no desenvolvimento da
criança, sobretudo como um companheiro de brincadeiras, existem muito poucos
estudos empíricos sobre a especificidade do pai na área da vinculação (para uma
revisão ver Monteiro, 2008).
No entanto, resultados contraditórios no que respeita aos factores antecedentes
da vinculação com a figura paterna, e a ausência de correlações da magnitude
esperada entre a vinculação à mãe e a vinculação ao pai (e.g. van IJzendoorf
& de Wolff, 1997), levaram os investigadores a propor que a vinculação às
duas figuras parentais deve ter trajectórias e determinantes específicos e
únicos a cada uma delas (Caldera, 2004; Grossman et al., 2002). Schneider et
al.(2001) referiram a grande importância de continuar a explorar as implicações
entre a vinculação ao pai e as relações de pares da criança.
Alguns estudos utilizando o Attachment Q-Sort(AQS) de Waters e Deane (1985)
encontraram correlações moderadas mas significativas entre a segurança de
vinculação da criança ao pai e à mãe, embora com importantes diferenças em
determinadas facetas da vinculação ao pai e à mãe, tais como a maior
proximidade e o maior contacto físico entre a criança com a mãe (Caldera, 2004;
Monteiro, 2008; Monteiro et al., 2008).
Verifica-se que desde os primeiros meses de vida, os estilos de interacção, de
comunicação e de actividades lúdicas de pais e de mães apresentam
características distintas: o pai costuma ser mais imprevisível e estimulantes
do ponto de vista físico, e a mãe mais tranquila e usar objectos para mediar as
interacções com a criança (Lewis & Lamb, 2003). É assim bastante provável
que mães e pais desempenhem papéis diferentes na vida dos filhos em geral e no
estabelecimento de relações de vinculação em particular (Lamb, 2005), o que se
pode verificar empiricamente em famílias mais tradicionais (Grossman et al.,
2002; Monteiro, 2008).
Num estudo longitudinal com famílias tradicionais, Grossman et al.(2002)
verificaram que os modelos internos de vinculação segura da criança aos dez e
aos dezasseis anos estavam significativamente relacionados com a sensibilidade
do estilo de brincadeira mais desafiante, anteriormente exercido pelo pai aos
dois anos de idade das crianças. Lamb (1975) propôs a hipótese que a figura
paterna exerce um papel fundamental na socialização da criança, papel esse
qualitativamente diferente do papel desempenhado pela figura materna. Cerca de
trinta anos mais tarde, e depois de uma vasta revisão de estudos sobre o papel
do pai tendo em conta a ecologia da paternidade, Grossman et al.(2002)
concluíram que o pai desempenha um papel muito saliente de suporte nos aspectos
exploratórios do fenómeno de base segura, providenciando segurança psicológica
em momentos de brincadeira e excursões exploratórias, e permitindo que a
criança se sinta segura ao experimentar certas coisas que as mães evitariam por
considerarem perigosas.
Alguns estudos têm sugerido que a análise da rede de relações de vinculação da
criança, que inclui não apenas a mãe mas uma série de figuras incluindo o pai,
podem predizer melhor os resultados das interacções entre a criança e o amigo
do que somente a qualidade da vinculação entre a mãe e a criança (Schneider et
al., 2001; Lamb, 2005). Marcus e Mirle (1990) descobriram que a vinculação ao
pai estava correlacionada com a competência social dos rapazes e Rice,
Cunningham e Young (1997) verificaram que enquanto a vinculação ao pai estava
associada à competência social na universidade a vinculação à mãe não estava.
Assim, a inclusão da díade pai-criança nos estudos sobre as amizades das
crianças no pré-escolar permitirá examinar como é que as relações com a mãe e o
pai contribuem, de forma conjunta e diferenciada, para a interacção criança-
amigo. Segundo Daniels-Beirness, (1989) espera-se que a qualidade da relação de
vinculação entre a criança e pai esteja fortemente relacionada com as relações
sociais da criança, especialmente em rapazes de idade pré-escolar.
AVALIAÇÃO DA AMIZADE NA IDADE PRÉ-ESCOLAR
A definição e operacionalização do conceito de amizade em várias idades e
períodos de desenvolvimento têm sido alvos de consideráveis esforços nas
últimas décadas. A noção mais consensual é de que característica mais central
de amizade é a reciprocidade e intimidade numa série de dimensões do
relacionamento (e.g. Larsen & Hartup, 2002). Muitas crianças de idade pré-
escolar não têm ainda capacidades cognitivas e linguísticas para descrever as
qualidades da amizade e para identificar amigos específicos. No entanto, elas
demonstram no seu comportamento preferências claras e estáveis por determinados
parceiros de brincadeira (Santos, Vaughn, & Bost, 2008; Santos &
Winegar, 1999; Strayer & Santos, 1996). De facto, comportam-se com esses
parceiros preferenciais de uma forma particular, que levam os adultos (pais,
professores, observadores) a descrevê-la como sendo uma relação de
"amizade" (e.g. Howes, 1983; Kerns, 2000; Vaughn & Santos,
2008).
A avaliação por entrevistas sociométricas tem demonstrado fornecer informação
útil e adequada sobre os membros das redes sociais de pares das crianças.
Pesquisas recentes sugerem que a sociometria de crianças a partir dos quatro
anos fornece dados válidos e fiáveis sobre as amizades (Vaughn et al., 2000,
2001). É possível abordar as escolhas sociométricas (ou seja as preferências
sociais), focando não apenas o estatuto de aceitação social do indivíduo em
relação ao seu grupo de pares através do número de nomeações sociométricas que
recebe e envia, mas focando também as relações diádicas existentes entre os
elementos do grupo, ou seja, a existência de bilateralidade ou reciprocidade
entre quem escolhe e quem foi escolhido (e.g., Santos, Vaughn, & Bonnet,
2000). De facto, alguns autores sugeriram que a inclusão de escolhas
sociométricas recíprocas e não recíprocas indistintamente na mesma categoria de
"amizade" acaba por negligenciar as diferenças entre amizades
próximas e ligações superficiais que podem ser unilaterais; desta forma
obscurece-se o aspecto diádico, mútuo e recíproco das amizades (Hartup, 1996;
Newcomb & Bagwell, 1995). Assim, analisámos separadamente escolhas
sociométricas de amizade recíprocas (ou mútuas) e escolhas não-recíprocas (ou
unilaterais), determinada pelas entrevistas sociométricas de cada criança,
seguindo a proposta de Vaughn et al.(2001).
O presente estudo tem por objectivo esclarecer de que forma a qualidade da
vinculação na rede familiar nuclear, (na perspectiva da qualidade da vinculação
da criança ao pai e à mãe) está relacionada com a adaptação posterior à rede de
pares, em particular na formação de amizades diádicas recíprocas com outras
crianças da mesma idade.
MÉTODO
Participantes
Os participantes neste estudo foram contactados no âmbito do projecto (PTDC/
PSI/66172/2006 e PTDC/PSI/64149/2006). Consistem em 35 díades mãe-criança e 35
díades pai-criança oriundos de 35 famílias. Todas as famílias são bi-parentais.
A idade das crianças na altura da primeira avaliação variava e ntre os 29 e os
38 meses (M=31.75; DP=2.56). Do total de 35 crianças, 23 raparigas e 12 eram
rapazes. 24 das crianças eram primogénitos, e 31 tinham irmãos. A Idade das
mães na altura da primeira avaliação variava entre os 26-48 anos (M=34.95;
DP=4.33) e a Idade dos pais entre 28-63 anos (M=37.48; DP=6.08). O Nível
educativo das mães entre variava entre 7-23 anos de escolaridade (M=15.46;
DP=3.34) e o Nível educativo dos pais entre 7-23 anos de escolaridade (M=14.77;
DP=3.17). Ambos os progenitores trabalhavam fora de casa e as famílias
pertenciam a um nível socio-económico médio.
Instrumentos
Attachment Behavior Q-Set (AQS)
O AQS (Waters, 1995) mede a organização da base-segura pela criança (i.e.,
equilíbrio entre comportamentos de manutenção da proximidade e de exploração do
ambiente), na presença de figuras de vinculação (mãe, pai e outras) em
contextos ecologicamente válidos. Trata-se de um Q-sort com noventa itens,
usados para descrever comportamentos relevantes em que a criança usa os
progenitores como base-segura. Estudos prévios demonstraram suporte para a
validade e adequação do AQS na cultura Portuguesa (Veríssimo et al., 2005;
Veríssimo et al., 2006).
Entrevistas Sociométricas
Foram usadas duas técnicas sociométricas.
1) Método_das_Nomeações: uma medida standard composta de nomeações de pares com
atribuições positivas e com atribuições negativas (McCandless & Marshall,
1957).
2) Escala_de_Apreciação: uma medida da apreciação dos colegas de aula através
de uma escala de 3 pontos (Asher, Singleton, Tinsley & Hymel, 1979).
Apesar de existirem ainda muito poucos estudos em crianças do pré-escolar sobre
a coerência de diferentes medidas sociométricas, tais como o método das
nomeações e as escalas de apreciação, os resultados apontam para uma associação
significativa entre eles (Wasik, 1987; ver o artigo de Inês Peceguina et
al.neste número, para uma revisão detalhada).
Procedimentos
Visitas ao lar e aplicação do AQS
As díades mãe-criança e pai-criança foram observadas em visitas separadas, cada
uma com a duração entre duas a três horas, efectuadas por duas equipas
diferentes de investigadores treinados para o efeito, e foram contrabalançadas.
Os observadores ordenaram os itens num contínuo de nove categorias desde
"extremamente incaracterístico" até "extremamente
característico" da criança. As visitas foram realizadas aos 2,5 anos de
idade (aproximadamente aos trinta meses; M=31.75; DP=2.56) da criança.
Sociometria
As crianças foram entrevistadas individualmente, durante o segundo semestre do
ano escolar, aos quatro anos de idade.
1) Método_das_Nomeações(McCandless & Marshall, 1957). Pediu-se a cada
criança que escolhesse (a partir das fotografias de rosto dos colegas), as três
crianças com quem mais gosta de brincar(três primeiras escolhas positivas), as
três crianças com quem não gosta de brincar (três escolhas negativas) e, por
fim, que seleccionasse as restantes, uma a uma, pelo critério gosta mais de
brincar. As nomeações positivas basearam-se nas três primeiras escolhas. As
escolhas sociométricas positivas foram depois usadas para identificar díades de
nomeações positivas recíprocas (amigos) e o número de nomeações não-recíprocas.
2) Escala_de_Apreciação(Asher, Singleton, Tinsley, & Hymel, 1979). Pediu-se
a cada criança que classificasse os colegas, numa escala do tipo Likert, que
variava entre "1" (não gosta muito de brincar) e "3"
(gosta muito de brincar). Para facilitar a compreensão da classificação
intermédia (i.e., "2" - gosta mais ou menos de brincar),
utilizaram-se cartões com smiles (cara contente - gosta muito de brincar,
cara triste - não gosta muito de brincare cara séria - gosta mais
ou menos de brincar). O total de aceitação baseou-se na posição relativa de
cada criança no grupo.
RESULTADOS
AQS
Os valores de segurança no AQS com o pai variaram entre -.04 e .79 (M=.41;
SD=0.22). As notas com a mãe foram entre -.12 e .79 (M=.43; SD=0.24). Estes
valores estão no intervalo de valores típicos identificados por van Ijzendoorn
et al.(2004) na sua meta-análise de estudos com o AQS em amostras normais. Uma
ANOVA de medidas repetidas agrupada pelo sexo da criança testou diferenças
entre as notas AQS de pais e mães. Não foram encontradas diferenças
significativas nos efeitos principais referentes aos progenitores (entre
grupos), ao sexo da criança, nem à interacção entre eles.
A correlação entre as notas AQS do pai e da mãe foi positiva e atingiu o nível
de significância estatístico (r[35]=.47, p<.05). Assim, verificou-se uma
consistência significativa nos comportamentos de base-segura da criança com os
dois progenitores, isto é, crianças com resultados mais elevados nos
comportamentos de base segura com um dos progenitores tinham tendência a ter
resultados mais elevados também com o outro progenitor.
Sociometria
A análise da coerência entre as duas medidas sociométricas utilizadas nesta
amostra (ver Peceguina et al.neste número) revelou a existência de uma
correlação significativa entre a quantidade de nomeações positivas e os
resultados da escala de apreciação tanto para rapazes como para raparigas.
Assim, utilizámos apenas uma delas, a medida de nomeações positivas, para
identificar as díades de nomeações recíprocas e o número de nomeações não-
recíprocas de cada criança. Ambos os valores brutos variam entre 0 e 3, e foram
estandardizados dividindo-os pelo número de crianças em cada grupo, de modo a
controlar os efeitos do tamanho do grupo no número de nomeações.
Relação entre AQS e número de Amizades recíprocas e não-recíprocas
Como se pode verificar na Tabela_1, os comportamentos de base segura com o pai
e com a mãe estão ambos positivamente correlacionados com o número de amizades
recíprocas da criança, e ambos estão negativamente correlacionadas com o número
de nomeações não recíprocas da criança (isto é, com nomeações positivas da
criança "não correspondidas" pelos pares).
TABELA_1
Correlações entre segurança no AQS e nomeações positivas na sociometria
__________________________________________________________________________
| | Número de Amizades | Número de Nomeações Nã|
|_____________________|______Recíprocas______|_________Recíprocas________|
|Comportamento de Base| 0.31 | -0.21 |
|Segura_com_a_Mãe____|_______________________|____________________________|
|Comportamento de Base| 0.43* | -0.22 |
|Segura_com_o_Pai_____|_______________________|____________________________|
Legenda: * p<.05
No entanto, apenas a correlação positiva entre comportamentos de base-segura
com o pai e o número de amizades recíprocas atingiu significância estatística.
Este resultado demonstra que as crianças que manifestaram mais segurança na
vinculação com o pai aos 2.5 anos de idade obtiveram significativamente mais
nomeações recíprocas de amizade com os pares do jardim-de-infância aos quatro
anos de idade (r[35]=0.43; p<0.05)
DISCUSSÃO
Os resultados apoiam a ideia de que em geral ambos os pais desta amostra são
capazes de construir relacionamentos de base segura com os seus filhos, isto é,
são sensíveis às características e competências dos filhos e ajustam os seus
comportamentos durante as interacções com eles (Lewis & Lamb, 2003), o que
é demonstrado pelos valores médios do AQS que se encontram dentro do intervalo
normativo (van Ijzendoorn et al., 2004). No presente estudo crianças com uma
vinculação mais segura com a figura paterna tendem a ter mais amizades
recíprocas. Este resultado sugere a existência de efeitos relacionais distintos
que o estilo de interacção com a figura paterna pode ter no posterior
relacionamento da criança com os pares.
De facto, a literatura sugere que a presença de estilos diferentes de
interacção e brincadeira evidenciado pelo pai e pela mãe pode ter impactos
diferentes na trajectória de desenvolvimento. É possível que a interacção com o
pai, por ser tipicamente mais estimulante, imprevisível e desafiante, contribua
para o desenvolvimento de competências que são adequadas num contexto mais
complexo, imprevisível e desafiante para a criança pré-escolar, tal como a
interacção com um grupo de crianças inicialmente desconhecidas num ambiente
externo à família. Neste sentido, Grossman et al.(2002) verificaram que a
sensibilidade do pai nas brincadeiras desafiantes e exploratórias com a criança
aos dois anos era um preditor longitudinal significativo da segurança do modelo
interno da criança aos dez anos. O estilo de interacção específico do pai,
desde que ao mesmo tempo promova uma vinculação segura, pode exercer um efeito
nas capacidades de gerir a agressividade e afectos negativos dos filhos.
Adicionalmente, e tendo em conta uma perspectiva ecológica das redes sociais e
complexidade proposta por Lamb (2005), é possível integrar a noção de relação
triangular, proposta por uma linha psicodinâmica de pensamento, na tentativa de
compreender estes resultados (e.g. Sharpless, 1990). A existência de uma
relação de vinculação segura simultaneamente à mãe e ao pai pode estar
dependente de variados factores inerentes aos três elementos em estudo da
família (criança, mãe e pai), entre as quais a competência social para gerir
uma dinâmica afectiva não apenas diádicamas também triádica, proposta por
exemplo pela noção de Relação de Objecto Triádica (T.O.R.; Sharpless, 1990).
É então possível conceber que o desenvolvimento precoce de competências para
gerir uma relação de nível mais complexo do que a díadica, tanto cognitivamente
como emocionalmente, como é a relação triádica familiar, possa servir como
facilitador para a gestão de tríades de amigos pela criança pequena em
contextos extra-familiares. A capacidade de estabelecer relações transitivas do
tipo triangular pela criança (ou seja, em que "o amigo do meu amigo se
torna também meu amigo") pode certamente aumentar o número de amizades
recíprocas e pode mesmo ser um antecedente da gestão adequada de triângulos de
amigos, os quais, tendendo a agrupar-se em cliques durante o período pré-
escolar, aumentam significativamente o número de amizades da criança.
Sem a existência de vinculação segura aos dois elementos parentais estas
capacidades podem estar menos desenvolvidas e dificultar a aquisição de novos
amigos através do processo de transitividade afiliativa, comum em redes
afiliativas de crianças a partir de tenra idade (e.g. Lamb, 2005; Santos et
al., 2008; Strayer & Santos, 1996; Vaughn & Santos, 2008). Assim, a
vinculação segura ao pai pode ser a condição necessária para o desenvolvimento
de competências específicas na gestão de relacionamentos numa rede social que
tem fenómenos estruturais de complexidade progressivamente crescente