Género e violência conjugal: Uma relação cultural
DO BIOLOGISMO EXPLICATIVO DO "SEXO" À EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE
"GÉNERO"
Desde a Antiguidade que se faz sentir a desigualdade entre os sexos - no
pensamento Grego, a ordem e a razão são associadas ao homem e a desordem e a
irracionalidade à mulher (Nogueira, 2001). Esta desigualdade, baseada nas
diferenças biológicas, que atribui características negativas à mulher e
sustenta a sua inferioridade, manteve-se ao longo do tempo até ao Iluminismo.
Mesmo com a emergência deste - com um discurso dirigido a todos os
"homens" e de cariz universal - a desigualdade persiste.
Segundo Farge e Davis (1991), a mulher surge como a metade dos
"homens" mas é definida em função do masculino e não como seu par.
Além disto, a mulher permanece associada aos sentidos, à procriação e à
sexualidade, sendo a sua inferioridade legitimada pelo discurso acerca das suas
diferenças sexuais e intelectuais (Héritier, 1996). O próprio discurso
científico da época, com base no determinismo natural, reduzia a mulher aos
papéis de mãe e esposa e traduzia um pensamento dualista acerca do masculino e
do feminino - racionalidade versusinstintos, paixão versusintelecto e
cultura versusnatureza, respectivamente (Amâncio, 1998; Héritier, 1996).
Esta desigualdade marca também as ciências humanas e sociais que emergem no
século XIX, entre as quais a psicologia (Amâncio, 1998; Nogueira, 2001;
Héritier, 1996). Bem (1993) identifica três crenças associadas ao homem e à
mulher que persistiram na ciência: (i) que possuem naturezas sexuais e
psicológicas diferentes, (ii) que a superioridade e a dominância são
características inerentes ao homem e (iii) que a superioridade masculina e
inferioridade feminina são naturais. Subjacentes a estas crenças estão o que
Bem (1993) designa de "lentes de género", noções implícitas enrai-
zadas nos discursos culturais que reproduzem o poder masculino ao longo do
tempo. Assim, Bem refere três lentes de género: o androcentrismo (crença na
superioridade masculina e noção de que o masculino é a norma e o feminino o
desvio), a polarização de género (a percepção que homens e mulheres são
diferentes e o uso desta noção como base para a organi-zação da vida social e
cultural) e o essencialismo biológico (que sustenta as anteriores,
conceptualizando-as como resultado das naturezas biológicas do homem e da
mulher).
Assim, até recentemente, o conhecimento científico postulava a existência de
diferenças biológicas que justificavam a inferioridade psicológica e social da
mulher, legitimando a ordem e estrutura social que, deste modo, surgiam como
algo natural e não constituíam por si só objecto de análise (Amâncio, 1998).
Por exemplo, o volume do cérebro, a hipótese da variabilidade do sexo masculino
(que, a partir de comparações entre os dois sexos, postulava que as mulheres
não se encontravam entre os génios nem se destacavam na sociedade e apontava
para a variabilidade do sexo masculino e limitação do sexo feminino) e a
psicometria fundamentavam a inferioridade intelectual da mulher; as diferenças
hormonais justificavam a instabilidade emocional feminina e a agressividade
masculina; a programação biológica e comportamental da maternidade, sustentada
na crença dos instintos (principalmente o instinto maternal), explicava a
afectividade e passividade associadas à mulher; os papéis tradicionais do homem
e da mulher na sociedade eram sustentados pelos exemplos de diferenças
comportamentais dos machos e das fêmeas de outras espécies (idem).
Amâncio (1998) refere que, mesmo no século XX, a comunidade científica
contribuiu para a "criação de uma mística que visava empurrar as mulheres
para casa" (p. 22), salientando a teoria de Parsons (1956a,b) no campo da
sociologia, a psicanálise na psicologia clínica (ambas sustentam o desempenho
do papel tradicional da mulher, pela manutenção da estrutura familiar
equilibrada e da própria sociedade no caso da primeira e pela saúde mental no
caso da segunda) e Spock (1946) no campo da medicina (que destaca a necessidade
dos cuidados maternos, sem qualquer referência ao pai). Assim, a ideia de que o
papel da mulher se restringia à esfera doméstica e materna, ou pelo menos que
era esse o seu desempenho fundamental, acabava por ser
"fundamentada" por várias áreas científicas.
A partir dos anos 60, assistiu-se na psicologia social americana à proliferação
da investigação sobre as diferenças entre os sexos. Maccoby e Jacklin (1974)
procederam a uma análise de um vasto número de estudos acerca das diferenças
intelectuais, "temperamentais" e de desempenho entre homens e
mulheres, verificando a inconsistência dos resultados, a ambiguidade na
definição de alguns conceitos avaliados (e.g., agressividade) e os
enviesamentos metodológicos, concluindo que as explicações biológicas não se
encontram fundamentadas.
Face à ambiguidade dos resultados desta psicologia diferencial dos sexos
(Amâncio, 1998), e com as críticas tecidas ao determinismo biológico subjacente
às ciências sociais e as críticas feministas da segunda vaga (Nogueira, 2001),
a associação entre o sexo biológico e o sexo psicológico foi posta em causa,
emergindo nos anos 70 o conceito de género. Na Psicologia, o conceito de sexo
foi substituído por este novo conceito, o que implica uma transformação
importante na conceptualização da diferença - ao deixar de ser
determinada biologicamente, deixa de ser vista como algo estático, natural e
imutável (Hollway, 1994).
A NECESSIDADE DE RECONCEPTUALIZAR A NOÇÃO DE GÉNERO
Da perspectiva essencialista ao construcionismo social
Ao contrário do termo "sexo", o "género" faz referência
às noções de construção e de significado, ou seja, refere-se a uma
classificação construída pelas sociedades que postulam diferentes significados
sociais e culturais associados à categoria homem e à categoria mulher (Denzin,
1995). O sexo refere-se à identidade biológica, ao facto de se caracterizar
biologicamente uma pessoa como sendo macho ou fêmea (Andersen, 1997), enquanto
o género se refere às expectativas e comportamentos socialmente aprendidos que
se associam a cada um dos sexos, remetendo para a dimensão cultural e não
biológica (idem).
O conceito de género vem assim proceder à subjectivação do sexo biológico,
expressando uma mudança conceptual da explicação biológica para a psicossocial.
Segundo Deaux (1984), a noção de género faz referência às características
psicológicas, sociais e culturais que estão associadas àquelas categorias. No
entanto, esta mudança não reflecte, segundo alguns críticos (e.g., Crawford,
1995; Skevington & Baker, 1989; Stockard & Johnson, 1992), uma
verdadeira transformação, dado que as diferenças continuam a ser consideradas
como um dado adquirido e objectivo e as explicações muitas vezes continuam a
ser procuradas ao nível do indivíduo - a explicação biológica das
diferenças acabou por ser substituída pela explicação psicológica, associando-
se a personalidade ao sexo (Nogueira, 2001). Segundo Amâncio (1998), o conceito
de sexo foi substituído pelo do género mas, na verdade, não se verificou uma
verdadeira mudança no modelo de análise - continuou a prevalecer o
paradigma dualista e o psicologismo das explicações.
O modelo de Deaux (1984) acerca das expectativas de género constitui um exemplo
desta análise dualista e psicologista. Apesar de estabelecer a distinção entre
o sexo e o sistema de crenças associado ao género (associando ao género os
estereótipos e representações sobre os papéis e as características dos homens e
das mulheres), postula a existência da identidade de género - que decorre
da internalização das normas e expectativas sociais face a casa um dos géneros
- como base para a diferença entre os sexos. Amâncio (1998) assume uma
visão crítica face à noção de identidade de género, indicando que esta é
tratada como algo objectivo, negligenciando-se o sistema social que produz os
conteúdos simbólicos associados ao sexo. Como afirma Amâncio (1998), estes
conteúdos "não se limitam a ser diferentes, mas também são
valorativamente desiguais" (p. 27). A diferenciação entre os sexos não é
neutra, tem consequências diferentes para os homens e para as mulheres e
sustenta a desigualdade social.
Nogueira (2001) chama também a atenção para o essencialismo subjacente à noção
de género, visível na abordagem das diferenças sexuais. O género, sob esta
perspectiva, é conceptualizado como um conjunto de atributos fundamentais ou
qualidades inerentes, como algo que mulheres e homens possuem (Crawford, 1995).
Segundo Crawford (1995), a distinção entre os conceitos "sexo" e
"género" foi uma tentativa significativa de distinguir o biológico
do social, no sentido de permitir uma análise crítica das diferenças entre o
homem e a mulher. No entanto, a perspectiva essencialista permaneceu, acabando
por reforçar esta diferenciação de género: o género é visto em termos de
atributos internos (competências cognitivas, emoções) que surgem separados da
interacção com os vários contextos. Assistiu-se à emergência de novas
diferenças sexuais sob a etiqueta de diferenças de género mas que, na verdade,
são idênticas às anteriores, continuando a situar-se dentro do indivíduo,
descontextualizadas socialmente, e biologizadas (idem).
Esta concepção essencialista do género nas ciências sociais reflecte também a
resistência da abordagem positivista, com a sua procura de verdades universais
e absolutas. Segundo Morawski (1990), a ciência tem sustentado as relações
sociais existentes, fazendo uso do conceito de género sob uma leitura
individualista, categorial e dualista. No contexto do pós-modernismo e das
críticas à ciência, emergem, contudo, visões alternativas à abordagem
tradicional do género, nomeadamente através das propostas do construcionismo
social. Nesta leitura, o género passa a ser conceptualizado como uma construção
social, como um sistema de significados que se constrói e organiza através das
interacções e que tem repercussões nas práticas sociais (Burr, 1995), como o
acesso ao poder e aos recursos (Crawford, 1995).
Desta forma, as diferenças de género são entendidas como descrições modeladas
pelos padrões culturais, pelo que não devem ser aceites como naturais e devem
ser alvo de uma análise crítica. Como Nogueira refere (2001), muitas categorias
reflectem ideias acerca da experiência em função do masculino, ou seja,
favorecem determinados modos de ser e de conduta associadas ao homem ou
valorizam aspectos da vida da mulher que beneficiam o homem. Por exemplo,
enquanto ao homem se associam competências ligadas ao mundo do trabalho, à
autoridade e ao controlo dos outros e das situações, à mulher associam-se
competências relacionais, como a emotividade, a sensibilidade ou o cuidado dos
outros. Tais atribuições conferem ao masculino uma posição dominante,
remetendo-o para contextos onde adquire um estatuto mais elevado, recursos e
poder. Por seu turno, à mulher é atribuída responsabilidade social, enquanto
mãe e esposa, remetendo para a esfera doméstica a sua realização e estatuto
(Amâncio, 1998).
Deste modo, as diferenças entre o homem e a mulher não existem em si mesmas,
tratam-se de produtos culturais e relacionais (Hare-Mustin & Marecek,
1994). O género não está na pessoa, no homem e na mulher, mas na interacção,
nas relações sociais (Burr, 1995). Por outro lado ainda, o masculino e o
feminino são conceitos que ganham o seu significado não apenas nos padrões
conversacionais e discursivos, mas também no seu contexto mais amplo
(histórico, social e cultural). Atendendo a que a linguagem, na concepção
construcionista, não é um espelho da vida, mas antes a construção da própria
vida (Gergen, 2001), tendo um carácter de performance, a linguagem utilizada
nos discursos que operam a construção social do género deve ser foco de
análise, procurando-se analisar o modo como este discurso do género foi sendo
cons-truído e como contribui para a manutenção de uma determinada ordem social
(Nogueira, 2001).
O objecto de análise deve deslocar-se das diferenças entre os homens e as
mulheres para a análise do pensamento social sobre a diferenciação entre o
masculino e o feminino. A conceptualização do sexo enquanto categoria social
não significa, pois, simplesmente passar de uma explicação em termos de
diferença biológica para um explicação em termos de diferença psicológica
(Amâncio, 1998) - o próprio conceito de género e as noções associadas ao
feminino e ao masculino devem ser alvo de uma análise crítica.
Da construção social do género ao enquadramento cultural
Na sequência das críticas expostas, entendemos que há a necessidade de adoptar
uma perspectiva verdadeiramente cultural na análise do género. Giddens (1997),
na caracterização da abordagem sócio-cultural ao género, enfatiza as suas
raízes institucionais e estruturais, referindo que o género é criado na
estrutura e práticas das principais instituições sociais (educativas,
económicas, políticas, religiosas), além de nas relações familiares e
interpessoais. Na mesma linha, Mota-Ribeiro (2005) engloba na abordagem sócio-
cultural as teorias que procuraram explicar a "formação do género e a
construção social da identidade sexual" (p.19). No âmbito da psicologia,
destaca a teoria da identificação e a teoria da aprendizagem social, e na
sociologia destaca as perspectivas que se centram na socialização e na
construção social das identidades (como Durkheim e Parsons), dando especial
relevo às perspectivas interaccionistas, que abordam a socialização como
construção social da realidade baseada na interacção e na troca de significados
simbólicos.
Do nosso ponto de vista, estas abordagens sócio-culturais, embora façam
referência à questão cultural, acabam por se centrar mais na dimensão social e
psicológica, nomeadamente na análise dos processos sociais que constrangem as
identidades e comportamentos dos indivíduos (homens e mulheres).
Além disto, verificamos a tendência para estabelecer uma relação causal, mesmo
dentro das abordagens que seguem a linha construcionista social. Por um lado,
as abordagens "sócio-culturais" acima referidas enfatizam a
influência dos processos e estruturas sociais na construção do género e, por
outro, a abordagem construcionista social do género (Nogueira, 2001) acaba por
estabelecer de algum modo a relação inversa - por exemplo, Crawford
(1995) refere que os processos relacionados com o género influenciam o
comportamento, os pensamentos e os sentimentos dos sujeitos, afectam as
interacções sociais e determinam a estrutura das instituições sociais. O que
pretendemos salientar é a necessidade de enfatizar não a influência dos
processos sociais no género ou vice-versa, mas a sua co-construção numa relação
interactiva. Trata-se de um processo de influência mútua: o género é construído
nas interacções sociais (Burr, 1995) que não ocorrem num vazio contextual
(encontram-se estruturadas e organizadas numa determinada ordem ou sentido
social) (Nogueira, 2001) e, por outro, os discursos acerca do género implicam
determinados padrões de acção e contribuem para a sustentação da estrutura e
organização sociais.
Há que salientar que, quando falamos da necessidade de compreender o género
dentro de uma perspectiva cultural, incluímos aqui não só as normas e valores
culturais associados a cada um dos sexos no contexto cultural alargado, mas
também a sua intersecção com a classe social, a etnia e mesmo a idade. Alguns
autores referem que a feminilidade é heterogénea, que é vivida de maneiras
diferentes nos diferentes grupos de mulheres (Mota-Ribeiro, 2005; Nogueira,
2001) e que se deveria antes falar de "feminilidades" (Betterton,
1987). Na nossa perspectiva, não se trata apenas de uma heterogeneidade,
parcialmente determinada pela classe ou pela etnia (o que remeteria para uma
análise grupal e não cultural), mas também da multiplicidade e diversidade de
discursos culturais que coexistem na actualidade, muitas vezes ambíguos e
contraditórios relativamente à mulher. À noção de heterogeneidade subjaz, no
nosso entender, uma concepção limitada e reificada da cultura -
sustentada por construtos como grupos sociais, classe social, etnias - e
a confusão entre especificidade cultural e diferenças grupais. Não pretendemos,
com este argumento, negar a importância das questões estruturais ou estabelecer
uma cisão entre a estrutura social e a cultura. Na nossa perspectiva, estão
inerentemente interrelacionadas, não podendo separar-se a dimensão cultural da
estrutura social e vice-versa. No entanto, não sendo universos separados, a
perspectiva cultural do género não se limita e não deve ser confundida com a
mera análise da estrutura social subjacente.
O género, o ser homem ou mulher, é um processo de construção não só social mas
predo-minantemente cultural. As normas e valores culturais variam de cultura
para cultura, dependem do seu contexto sócio-cultural e histórico e, mesmo
dentro da mesma cultura e sociedade, encontramos diversidade entre diferentes
grupos (Levesque, 2001). Assim, partindo da noção de que o género é uma
construção sócio-cultural, os significados associados ao feminino e ao
masculino, ao que é ser homem e mulher, também diferem consoante o contexto
cultural, conforme vários estudos interculturais e antropológicos confirmam
(e.g., Dawla, 2000; Horne, 1999; Kozu, 1999).
Não obstante tais variações, é importante destacar que o género é uma categoria
central que organiza as relações em todas as culturas e sociedade, apesar das
diferenças ou variações culturais específicas (Andersen, 1997). O género surge
como a categoria que mais fortemente determina e influencia o comportamento e o
modo de vida dos indivíduos e as interacções que estabelecem, sendo os padrões
comportamentais e papéis atribuídos ao homem e à mulher vistos quase como
naturais, sendo apreendidos e interiorizados no processo de socialização
(Andersen, 1997; Mota-Ribeiro, 2005) e reforçados no decurso das interacções e
discursos sociais (Nogueira, 2001).
Em segundo lugar, apesar de todos os estudos indicarem que as normas de conduta
e as expectativas são diferentes para o homem e para a mulher, há uma
diversidade de normas e práticas associadas a cada um dos géneros, que diferem
de cultura para cultura. Por exemplo, nas sociedades árabes e africanas a
virgindade é um valor sagrado, significando a integridade da mulher e a honra
para o homem. Nestas sociedades, o ter vários relacionamentos é sinal de
masculinidade para o homem, enquanto tal hipótese nem se coloca à mulher. Nas
sociedades ocidentais, ainda que a virgindade feminina possa ser valorizada, a
sua significação não toma tais proporções. Sabe-se também que em algumas
culturas é esperada a obediência total da mulher e a sua restrição ao espaço
doméstico (e.g., África do Sul), enquanto noutras começam a operar-se mudanças
devido às dificuldades económicas, sendo esperado que a mulher também contribua
para o sustento da casa (e.g., Rússia, Ghana). Mesmo dentro de uma mesma
cultura, é possível identificar diferentes construções de género. Um estudo
desenvolvido por Williams (1996 cit. in Williams, 2002) em duas comunidades
(Greenville e Rolling Rock), nos Estados Unidos, com raparigas adolescentes
identificou claramente diferenças no processo de construção do género feminino
relacionadas com as características sócio-culturais específicas daquelas
comunidades.
No entanto, apesar da diversidade de normas e práticas associadas a cada um dos
géneros, verifica-se uma assimetria de género sistemática no sentido da
superioridade e dominância do masculino face ao feminino (De Welde, 2003;
Stockard & Johnson, 1992). Esta assimetria de género está presente na
própria diferenciação do corpo feminino, sendo percepcionado como violável e
fraco (Cahill, 2000, cit. in De Welde, 2003), socialmente e sexualmente
vulnerável. Segundo De Welde (2003), a ideologia de género dominante aprisiona
a mulher em ciclos de vitimação e na auto-percepção de fraqueza, havendo uma
perspectiva essencialista que reifica a mulher como subordinada e mais fraca.
As instruções de feminilidade perpetuam o dualismo homem/masculino e mulher/
feminino, em que o masculino é visto como sendo mais físico e mais forte
comparativamente ao feminino (idem).
GÉNERO E VIOLÊNCIA CONJUGAL - QUE RELAÇÃO?
A controvérsia acerca da simetria versus assimetria de género na violência
conjugal
A revisão de vários estudos interculturais e antropológicos aponta que a
violência conjugal é indissociável da questão do género (Machado & Dias, no
prelo). A ligação entre o género e a violência conjugal tem gerado, contudo,
bastante discussão e controvérsia (Currie, 1998; Miller & White, 2003)
havendo autores que defendem a neutralidade/simetria de género (e.g., Moffitt,
Krueger, Caspi, & Fagan, 2000; Moffitt, Robins, & Caspi, 2001; Stets
& Straus, 1990; Straus, Gelles, & Steinmetz, 1980) e outros que afirmam
que o género e o poder constituem o processo chave da violência conjugal, não
sendo apenas um mero componente desta (Dobash & Dobash, 1998; Johnson,
1995; Kurz, 1993; Straus, 1993; Yllo, 1993).
Os que defendem a simetria de género baseiam-se essencialmente em duas linhas
de investigação: (i) os estudos que encontram taxas similares de perpetração da
violência entre os sexos (Stets & Straus, 1990; Straus, Gelles, &
Steinmetz, 1980) e, mais recentemente, os que descrevem que os homens e as
mulheres que fazem uso de violência têm um perfil psicológico idêntico (Moffitt
et al., 2000, 2001).
Esta abordagem iniciou-se em 1977/78 com o estudo "The battered husband
sindrome" (Steinmetz, 1977/78, cit. in Anderson, 2005), cujos resultados
revelavam a existência de uma simetria de género na violência. Posteriormente,
seguiram-se estudos que corroboram esta simetria, ou seja, que indicam que não
há dife-renças entre o homem e a mulher no recurso à violência (Stets &
Straus, 1990; Straus, Gelles, & Steinmetz, 1980). Straus, Gelles, e
Steinmetz (1980) referem alguns inquéritos que confirmam a violência da mulher
contra o homem e Stets e Straus (1990) indicam também que não há diferenças de
género na iniciativa da violência. Estes autores defendem que os estudos que
apontam para diferenças de género no uso da violência têm sérios problemas em
termos de amostragem, sendo maioritariamente conduzidos com amostras clínicas e
não representativas (Stets & Straus, 1990). Assim, assumindo a simetria de
género na violência, sugerem quatro razões pelas quais a mulher pode ser tão
violenta como o homem: (i) As mulheres batidas podem incorporar a violência no
seu repertório comportamental; (ii) Pode existir violência recíproca no casal;
(iii) O uso da violência numa determinada esfera, como a educação dos filhos,
pode generalizar-se ao parceiro; (iv) Existem normas implícitas de que a mulher
pode usar de violência menor, como dar uma bofetada, em determinadas ocasiões
(Stets & Straus, 1990).
Estes resultados foram usados para desafiar as teorias feministas, que defendem
que a violência conjugal é um problema de género e de poder (Anderson, 2005).
No entanto, estes estudos também têm sido alvo de críticas, nomeadamente ao
nível metodológico, dado que a grande maioria se baseia no Conflict Tactics
Scale como instrumento de recolha de dados (Currie, 1998). A discussão tem-se
centrado na validade desta escala, tendo-lhe sido apontadas várias limita-ções,
nomeadamente que, ao basear-se num rankingordenado de tipos de abuso,
negligencia o contexto, a interpretação e o impacto dos actos abusivos. Assim,
a principal crítica reside no facto de o CTSse basear numa abordagem
empiricista que se limita a contabilizar a frequência do abuso, mas que nada
nos refere acerca da etiologia ou natureza da violência conjugal (Currie, 1998;
Anderson, 2005; Miller & White, 2003).
Mais recentemente, têm sido desenvolvidos estudos acerca dos perfis das
mulheres e dos homens agressores que procuram sustentar a simetria de género
(Moffitt et al., 2000, 2001). No entanto, também estes têm sido alvo de
críticas, nomeadamente pelo facto de focarem características psicológicas
individuais e avaliarem o género como um atributo natural, não considerando a
sua construção social e os significados que lhe estão associados (Miller &
White, 2003).
Por outro lado, vários autores (Anderson, 2005; Currie, 1998; Miller &
White, 2003) enfatizam a necessidade de considerar o género para se compreender
o fenómeno da violência conjugal. Miller e White (2003) referem que é no modo
pelo qual o género estrutura as relações - colocando maioritariamente a
mulher numa situação de desvantagem face ao homem - que encontramos a
natureza genderizadada violência conjugal.
Segundo os mesmos autores, ainda que alguns estudos possam indicar taxas
similares de violência ou encontrem perfis psicológicos idênticos entre os
sexos, não se pode concluir pela neutralidade de género na violência conjugal.
Yllo (1993) refere também que a violência conjugal não pode ser entendida sem
se considerar o género e o poder e, face à controvérsia entre a ênfase na
violência como masculina ou a neutralidade de género, afirma que a maioria das
abordagens tem obscurecido a importância do género. Embora exista hoje a
tendência para abandonar a leitura da violência como algo individual ou
psicopatológico (teorias intra-individuais), afirma que também as outras
abordagens teóricas da violência mais conhecidas, como a teoria dos sistemas, a
teoria dos recursos, a teoria da troca e a teoria da sub-cultura da violência,
ignoram o género (idem). Por exemplo, apesar de a teoria dos recursos chamar a
atenção para o facto de o poder se basear nos recursos e de a violência poder
ser vista como um recurso para assegurar determinado estatuto, esta teoria
ignora os limites estruturais de acesso da mulher a alguns recursos-chave e a
ideologia cultural de dominância do marido (Currie, 1998).
De facto, embora Gelles e Straus (1988) reconheçam que o poder e o controlo são
negociados na interacção ente o homem e a mulher até se poder chegar ao uso da
violência, estes elementos acabam por desaparecer na interpretação dos
resultados do CTS. Yllo (1993), pelo contrário, refere que é a coerção e não o
conflito de interesses, que está na base da violência. Esta autora conclui que
um modelo de controlo coercivo acerca da violência conjugal é uma melhor
alternativa ao modelo do conflito de interesses. Identifica a violência como
uma estratégia de controlo e de poder que é genderizada, em vez de ser algo
individual ou inerente às relações íntimas. Assim, a autora desafia os
investigadores a aplicarem esta abordagem para compreenderem o uso da violência
por parte da mulher.
Face a esta controvérsia, Anderson (2005) refere que o debate se tem centrado
exclusivamente na definição e avaliação da violência conjugal, negligenciando
um aspecto central - a conceptualização e avaliação do género. Refere
ainda que a questão central no debate acerca da simetria de género na violência
é teórica e não metodológica. Dada a controvérsia na definição e avaliação da
violência, os investigadores têm esquecido que a mesma controvérsia se pode
aplicar na conceptualização e avaliação do género. Assim, veremos seguidamente
como a relação entre o género e a violência conjugal tem sido abordada do ponto
de vista teórico.
Abordagens teóricas do género no âmbito da violência conjugal
Segundo Risman (1998), no estudo do género e da violência podem identificar-se
três abordagens teóricas diferentes - a individualista, a estruturalista
e a interaccionista.
Abordagem_individualista
A abordagem individualista defende que os indivíduos são seres
"gendered"(Risman, 1998), ou seja, que a masculinidade e a
feminilidade são traços que os homens e as mulheres incorporam na sua
identidade, quer através de uma determinada predisposição biológica para esses
traços quer através dos processos de socialização. Os teóricos individualistas
referem que a propensão para a agressão e a violência é uma característica
masculina (seja inata ou aprendida) (Anderson, 2005).
Se o género for definido como uma propriedade dos indivíduos, a maioria das
evidências empíricas sugerem, como vimos atrás, que não há relação entre o
género e a violência conjugal - relembramos que os estudos que
conceptualizam o género como autorelato de masculinidade ou de feminilidade
falham muitas vezes em encontrar relação entre o género e a perpetração e a
vitimação (Archer, 2000). Por outro lado, se o género for definido como a
identidade masculina, feminina ou andrógina - como se verifica nas
escalas de género - a relação entre o género e a perpetração de maus-
tratos contradiz a hipótese individualista de que as pessoas masculinas são
mais violentas (Anderson, 2005). Alguns estudos (e.g., Bernard, Bernard, &
Bernard, 1985; Burke, Stets, & Pirog-Good, 1988; Sugerman & Frankel,
1996) indicam não encontrar qualquer relação entre a masculinidade do homem e a
violência e não verificam que as mulheres e os homens mais femininos apresentem
maiores índices de vitimação.
Assim, a investigação no âmbito da violência conjugal que se tem desenvolvido
sob uma abordagem individualista do género indica que este não constitui um
preditor importante da violência conjugal (Anderson, 2005), sendo os seus
resultados utilizados por alguns autores (e.g., Dutton, 1994; Felson, 2002;
Straus, 1999) para sugerir que a violência conjugal não é um fenómeno de
género. No entanto, têm sido apontadas sérias limitações à abordagem
individualista (Anderson, 2005; Archer, 2000; Risman, 1998), entre as quais
destacamos:
- Esta abordagem reduz o género ao comportamento individual do homem e da
mulher; assume que se o homem e a mulher são igualmente violentos dentro da
relação conjugal, a violência não é um fenómeno de género (Anderson, 2005),
quando é fácil compreender que actos análogos podem comportar motivos,
intenções e significações e consequências distintas;
- Quando os estudos encontram diferenças estatisticamente significativas,
não explicam porque é que as diferenças entre os sexos existem. Por exemplo, o
facto de os homens revelarem níveis mais elevados de violência do que a mulher
tem sido interpretado de formas contraditórias (Archer, 2000);
- Esta abordagem não consegue explicar as diferenças dentro do grupo das
mulheres e dos homens, ou seja, não explica porque é que só alguns homens e
algumas mulheres são agressores conjugais, visto estes homens e estas mulheres
serem biologicamente similares e sujeitos aos mesmos processos de socialização
do que os outros elementos do seu género (Archer, 2000);
- Os investigadores que conceptualizam o género sob a perspectiva
individualista e usam estudos com casais homossexuais (que apontam para taxas
de violência similares às dos casais heterossexuais) para sustentar a ideia de
que o género não está relacionado com a violência conjugal (Felson, 2002),
ignoram a questão de como o género interage com o sexismo dentro da sociedade e
pode influenciar as dinâmicas de violência quer nas relações homossexuais quer
nas heterossexuais (Anderson, 2005). Segundo Anderson (2005), os casais
homossexuais têm de negociar com um mundo em que a sua masculinidade ou
feminilidade é colocada em questão, pelo que estas abordagens ignoram a
interligação do género com as restantes interacções sociais.
Perspectiva_estruturalista
A abordagem estruturalista enfatiza que o género é uma estrutura social que
organiza as instituições sociais, assim como as identidades, atitudes e
interacções. Os estruturalistas defen-dem que o género é um sistema de
estratificação que coloca a mulher e o homem em categorias, papéis e ocupações
desiguais (Risman, 1998). Segundo esta perspectiva, o género existe como uma
força social que opera independentemente dos desejos dos indivíduos - o
homem e a mulher são constrangidos pelos significados associados ao seu género,
mesmo quando não desejam seguir orientações de vida baseadas no género (idem).
Segundo Messerschmidt (1996, cit. in Brown, 1998) os rapazes e as raparigas
tendem a espelhar e recriar, no seio do grupo, as relações de trabalho e poder
existentes na sociedade. Um estudo etnográfico de Campbell (1984, cit. in
Brown, 1998) com grupos de jovens nova-iorquinos, pertencentes a minorias
étnicas e com menos recursos económicos, revelou que as divisões de poder e de
trabalho que existem na sociedade são reproduzidas no seio destes grupos: o
grupo é um contexto de dominância masculina, reflectindo as estruturas e
práticas existentes na sociedade, em que os rapazes assumem as posições
centrais, enquanto que as raparigas são tidas como fonte de apoio, suporte e
cuidado daqueles.
De acordo com Anderson (2005), a perspectiva estruturalista sobre a violência
defende as seguintes assunções:
- Os homens recebem mais instruções para o uso da violência do que a
mulher. O acesso à violência é distribuído de maneira desigual, sendo dadas
maiores oportunidades ao homem para aprender a violência do que a mulher (De
Welde, 2003; Fagot, Hagan, Leinbach, & Kronsberg, 1985). As raparigas são
desencorajadas de usar a violência ao longo do seu processo de socialização,
enquanto os homens são mais incentivados à mesma, por exemplo através dos
desportos e actividades que requerem o uso da força física (Fagot et al., 1985;
Messner, 1998). Existe uma organização de género no treino e uso da violência,
o que tem implicações não só no uso da violência mas também no seu sucesso
(Anderson, 2005; De Welde, 2003). - As consequências da violência
conjugal diferem para o homem e para a mulher, devido ao sistema alargado da
desigualdade de género que coloca a mulher em situações de desvantagem e maior
vulnerabilidade (ao nível dos danos físicos, psicológicos, económicos e
sociais) (Anderson, 2005). - As taxas de violência diferem consoante o
contexto estrutural, o que é visível nas diferenças entre as taxas de violência
no namoro e no casamento - no namoro a mulher tem menos probabilidade de
ser dependente do homem, tem um sistema de suporte mais autónomo e pode
abandonar a relação mais facilmente do que no contexto do casamento (Archer,
2000; Anderson, 2005).
Em suma, a perspectiva estruturalista propõe que os homens e as mulheres
experimentam a violência de maneira diferente porque estão situados dentro de
uma sociedade organizada pela desigualdade de género. Defende que, mesmo que as
taxas de perpetração e vitimação da violência possam não variar consoante o
género, as consequências de vitimação são diferentes para o homem e para a
mulher porque estes grupos enfrentam oportunidades e constrangimentos
estruturais diferentes (Anderson, 2005).
Abordagem_interaccionista
A abordagem interaccionista surge nos anos 80, em parte como crítica às
abordagens individualistas (Anderson, 2005). Nesta perspectiva, o género é
visto como uma característica da interacção social e não com uma característica
de pessoas individuais. Nesta perspectiva, os indivíduos "fazem o
género" nas suas interacções diárias com os outros e têm performances de
"masculinidade" ou de "feminilidade" face às
expectativas sociais (Anderson, 2005; Brown, 1998; West & Zimmerman, 1987).
Assim, o género é considerado como uma consequência das práticas sociais e não
como uma característica individual que prediz o comportamento. A abordagem
interaccionista deixa a questão de como a masculinidade causa a violência para
se perguntar como é que a violência "produz" a masculinidade.
Destacamos duas ideias chave nesta abordagem:
- A violência não é um comportamento "gender-neutral" e o
género pode ser construído através da prática da violência. A prática da
violência é percepcionada como um comportamento masculino, dado que a agressão
é uma componente da imagem cultural de masculinidade e, assim, a violência pode
ser usada para mostrar aos outros que se é "um verdadeiro homem"
(Brown, 1998). A investigação tem mostrado que os homens fazem uso da violência
contra as parceiras quando sentem que a sua posição ou autoridade é desafiada
(Babcock, Waltz, Jacobson, & Gottman, 1993; Dobash & Dobash, 1998;
Totten, 2003), pelo que a violência pode ser um meio pelo qual os homens
demonstram e alcançam a sua masculinidade (Anderson & Umberson, 2001;
Babcock et al., 1993). Brown (1998) refere que o controlo e exploração da
sexualidade feminina por parte dos rapazes é uma forma de construção da
heterossexualidade normativa no seio dos grupos juvenis, tendo subjacente uma
representação da masculinidade caracterizada por um apetite sexual ilimitado, o
que ajuda a reproduzir a subordinação das raparigas e constitui um recurso para
o exercício do poder masculino.
- A violência do homem é avaliada e interpretada de maneira diferente da
violência da mulher (Anderson, 2005; Anderson & Umberson, 2001). O género é
um compromisso ou acordo social que se baseia nas definições e interpretações
dos outros (West & Zimmerman, 1987). Os teóricos interac-cionistas defendem
que as audiências esperam diferentes performancesdos homens e das mulheres e
que o mesmo comportamento será diferentemente avaliado dependendo do género de
quem o pratique e do contexto interactivo (idem). Porque a violência na cultura
popular é definida como "masculina", as audiências esperam,
legitimam e reforçam a violência como sendo um comportamento normal do homem
(Messerschmidt, 1997).
No sentido destes postulados teóricos, vários autores (e.g., Fine, Weis,
Addelston, & Marusza, 1997; Tomsen, 1997; Totten, 2003) destacam a relação
entre a masculinidade e a violência. Por exemplo, Fine e colaboradores (1997)
procuraram analisar porque é que as taxas de violência são mais elevadas entre
as pessoas que vivem uma situação de pobreza e verificaram que, nos Estados
Unidos, o sucesso financeiro é uma das características idealizadas da
masculinidade mas que nem todos os homens o conseguem, pelo que os que estão no
desemprego ou ganham menos podem sentir que a sua masculinidade está ameaçada
porque não são o "sustento" da família. Assim, não tendo sucesso
financeiro que lhes permita exercer controlo sobre o cônjuge através dos
recursos económicos, pode surgir a necessidade de fazê-lo através da violência.
Totten (2003) indica também que, nos jovens rapazes marginalizados e com menos
recursos económicos, uma forma de exercerem e afirmarem a sua masculinidade é
através da violência ou abuso contra as namoradas. Analogamente, Jefferson
(1997) refere que a violência surge como um "recurso simbólico para a
construção de género" entre os sujeitos que não têm acesso a outras
formas de construção da masculinidade, isto é, que possuem menos recursos
económicos ou educacionais ou que se encontram numa posição subordinada na
hierarquia social.
Assim, a perspectiva interaccionista do género propõe que a violência pode ser
um método compensatório de exercer controlo e de construção da masculinidade
entre os homens que sentem que a sua autoridade e masculinidade está posta em
causa.
Dependendo do modo como conceptualizamos o género, a resposta às questões de
"se", "quando" e "como" a violência tem
base no género mudam substancialmente. Por exemplo, as teorias interaccionistas
e estruturalistas entendem o género como sendo muito mais do que os
comportamentos dos homens e das mulheres. Defendem que o género se encontra nas
expectativas e nas exigências que colocamos nas pessoas e no seu desejo de
corroborar ou de subverter estas expectativas (De Welde, 2003; Jefferson, 1997;
Messerschmidt, 1997; West & Zimmerman, 1987). O género existe na forma como
o sexo é usado como base para a divisão de trabalho, na segregação sexual das
actividades e noutras formas de categorização/organização social (Risman,
1998). Assim, se partirmos da concepção interaccionista ou estrutural,
concluiremos que a violência conjugal está estreitamente ligada aos processos
sociais de género. Pelo contrário, se partirmos da noção individualista, o
género pode ser um mero preditor da violência, restringindo-se a sua definição
a traços ou características individuais.
Em termos causais, a perspectiva individualista coloca a violência como uma
consequência do género, ou seja, questiona como é que a masculinidade pode
levar à violência. No outro extremo, a perspectiva interaccionista
conceptualiza o género como o resultado das práticas sociais, invertendo a
questão individualista ao interrogar como é que a violência leva à
masculinidade (Anderson, 2005).
No nosso entender, as várias perspectivas apresentadas possuem, ainda que em
graus distintos, o risco de uma visão essencialista da relação entre o género e
a violência conjugal. Esta é, obviamente, mais evidente nas perspectivas
individualistas, que reduzem o género à categorização sexual, associando-o a
determinadas características psicológicas que podem predizer o comportamento
violento.
Por seu turno, ainda que concordemos com Anderson (2005) quando afirma que a
teoria estruturalista do género é necessária para se entender os modos pelos
quais a mulher e o homem encontram diferentes constrangimentos à perpetração da
violência e as diferentes barreiras para deixar a relação, parece-nos que a
perspectiva estruturalista acaba por reduzir o género às condições sócio-
estruturais existentes, negligenciando os significados culturais associados.
Assim, a nosso ver, apesar de procurar contextualizar o fenómeno da violência
em termos da sua construção sócio-cultural, trata-se de uma contextualização
focada na "forma" das condições sociais e culturais, negligenciando
o conteúdo, ou seja, os discursos culturais subjacentes.
Para explicitar a nossa crítica, citemos como exemplo um estudo de Hollander
(2001), no qual se procurou identificar a relação entre a construção discursiva
do género e a violência. Partindo da ideia de que, através dos discursos que
ocorrem nas conversações quotidianas, as pessoas constroem e transmitem modos
particulares de entender os fenómenos sociais, a autora usou dados de 13 focus
group, evidenciando que as construções de género dominantes no discurso dos
participantes sobre a violência se referiam à mulher como vulnerável e não
perigosa e ao homem como invulnerável, protector mas também potencialmente
perigoso. Em alguns casos, a perigosidade é identificada também com outras
características sociais (raça negra, classes desfavorecidas, idade) mas, na sua
maioria, basta ser homem para ser visto como potencialmente perigoso. Mesmo
quando a vitimação do homem é discutida, a vulnerabilidade feminina e
invulnerabilidade masculina persistem.
Hollander (2001) verificou também que estas percepções de vulnerabilidade e
perigosidade tinham consequências práticas: as mulheres entrevistadas
monitorizavam constantemente sinais de alerta no seu ambiente, evitavam sair à
noite sozinhas ou mesmo na companhia de outras mulheres, procuravam familiares
do sexo masculino para as proteger, modificavam o seu modo de vestir e outros
aspectos na sua aparência e restringiam as suas actividades para reduzir o
risco de violência, limitando assim o uso do espaço público. Estas estratégias
faziam parte da vida quotidiana das mulheres, enquanto os homens raramente
mencionavam o seu uso.
A autora interpreta estes dados de acordo com uma concepção que nos parece
essencialmente interaccionista, considerando que, para parecer apropriadamente
masculino ou feminino, os indivíduos se conformam com as expectativas sociais
relativas à vulnerabilidade e à perigosidade, expectativas essas que definem
que ser mulher significa fragilidade, falta de autonomia e necessidade da
protecção do homem. Deste modo, a mulher encontra-se numa posição de
dependência e vulnerabilidade face ao homem, limitando as suas interacções com
os outros e a sua liberdade de acção quer no espaço público como privado (o
que, consequentemente, a torna mais vulnerável à violência conjugal).
Este estudo, que globalmente podemos enquadrar numa abordagem interaccionista,
ilustra bem o tipo de relações que nos parece importante explorar entre os
discursos culturais sobre o género e a exposição à violência. Contudo, a
perspectiva interaccionista, uma das influências teóricas dominantes do
construcionismo social que temos vindo a defender, não é, a nosso ver, em
matéria de conceptualização da relação género-violência, também isenta de
críticas.
O principal reparo que podemos fazer a esta linha de investigação reside, a
nosso ver, no risco de os estudos que exploram a relação entre a violência e a
construção da masculinidade poderem contribuir para naturalizar e essencializar
a violência masculina, categorizando o homem como inerentemente violento, ainda
que não por razões biológicas mas sociais. Na verdade, ainda que tal nunca
tenha sido afirmado pelos estudos da masculinidade, o volume de estudos que
enfatizam a violência masculina e a adesão "fácil" que estes podem
produzir em alguns sectores, pode levar a esquecer que não só existem formas
alternativas de construção da masculinidade, como estas estão amplamente
disseminadas no quotidiano. Este efeito é facilmente constatável em alguns
domínios de investigação, dos quais damos como exemplo o do medo do crime, em
que a construção dominante ("homens seguros", "mulheres
inseguras") tem ocultado que muitos homens revelam sentimentos de
fragilidade e insegurança, enquanto muitas mulheres gerem quotidianamente
contextos e situações de risco (Machado, 2004).
GÉNERO E VIOLÊNCIA CONJUGAL: UMA ABORDAGEM CULTURAL INTEGRADORA
Anderson (2005) refere que a discussão da relação entre género e violência, que
tem proliferado nas últimas décadas, se tem centrado na definição e avaliação
da violência, negligenciando a definição e avaliação do género. Como resulta do
ponto anterior, tanto da abordagem interaccionista como da estruturalista, há
necessidade de repensar a temática do género na compreensão da violência, em
vez de nos centrarmos apenas na questão de como as taxas de violência diferem
em função da variável "sexo" (Anderson, 2005). Tal requer, a nosso
ver, não apenas a reconceptualização da noção de género, mas também a alteração
do modo como género e a violência têm sido abordados - como se fossem
fenómenos isolados e independentes.
Na verdade, apesar da controvérsia acerca da simetria do género, várias
abordagens teóricas e a maioria dos estudos empíricos, sobretudo se
considerarmos os conduzidos em contextos não ocidentais (Campbell, 1999;
Levinson, 1989), remetem para a i mportância de considerar o género na
compreensão da violência conjugal. Também Machado e Dias (no prelo), num artigo
recente que faz uma revisão exaustiva dos estudos interculturais realizados
sobre a violência conjugal, concluem que a violência c onjugal é indissociável
das questões do género e das relações de género. Como refere Straus (1999), a
maior parte do comportamento humano, no qual se inclui a violência, é
influenciado por normas culturais, em que as pessoas seguem prescrições
culturais de actuação sem terem consciência disso. No caso da violência, as
pessoas tendem a seguir regras e guiões culturais implícitos que são diferentes
para os homens e para as mulheres (Anderson, 2005; Straus, 1999).
De facto, vários trabalhos que oferecem uma revisão dos estudos antropológicos
e interculturais sobre a violência contra a mulher concluem que esta é um
fenómeno generalizado e que em quase todos os contextos culturais, mesmo os
mais favorecidos, existem desigualdades sociais na distribuição do poder e dos
recursos, assim como uma concepção hierárquica da família (Campbell, 1999;
Levinson, 1989; Machado & Dias, no prelo). Um estudo inter-étnico realizado
na Inglaterra (Hanmer, 1996), com mulheres inglesas e mulheres cujas famílias
de origem provinham do Paquistão, Bangladesh, Índia e Caraíbas, exemplifica
precisamente estas questões. Segundo Hanmer (1996), entre os vários grupos
étnicos existem muitas similaridades no modo como as mulheres experimentam e
definem a violência, existindo temas comuns seja qual for o seu background,
nomeadamente a importância dada à família. Deste estudo, o autor conclui que:
(i) Em todos os grupos étnicos a mulher vive numa rede de relações através da
qual os membros da família e outros intervêm na sua vida; (ii) A mulher luta
contra a dominação, o controlo, a coerção e a violência que lhe são dirigidas
através das redes de relações na qual a sua vida se situa; (iii) As fronteiras
ou limites que orientam especificamente o comportamento familiar da mulher não
são os mesmos que para o homem, sendo este um factor que constitui a plataforma
para a legitimação parcial ou total do uso da violência contra as mulheres no
contexto familiar.
Assim, as tentativas de a mulher lidar com a violência envolvem lutas pessoais,
lutas que envolvem os outros e limites culturais que não são os mesmos para a
mulher e para o homem. Hanmer (1996) refere ainda que em todos os grupos
étnicos do seu estudo o homem surge como estando do lado de fora dos
constrangimentos da comunidade e da família, quando comparado com a mulher. Na
análise do relato das mulheres acerca da relação dos maridos com outros membros
da família, com ela e com os filhos, com os amigos, com os colegas de trabalho
e outras pessoas em geral, o homem pode adoptar uma série de comportamentos,
mantendo intocável o seu papel de marido e de pai aos olhos dos outros. Pelo
contrário, no caso da mulher, esta frequentemente é alvo de sanções e críticas
sociais. Em todos os grupos étnicos e culturais, os maridos têm vantagens
culturais e familiares que provêm do facto de serem homens e casados - o
facto de ter uma família e ser o "chefe" acarreta poder e estatuto
para o homem na sua comunidade (idem).
Da análise dos estudos interculturais conclui-se também que a violência contra
a mulher é maior onde há mais desigualdade económica, mais autoridade masculina
e menos poder da mulher (Campbell, 1999; Levinson, 1989; Machado & Dias, no
prelo), o que vem validar a perspectiva feminista da violência conjugal, focada
nas desigualdades de género e de poder. Além disto, a análise inter-cultural do
fenómeno tem enfatizado também que a maior igualdade de género, quer no
contexto conjugal quer no contexto social mais alargado, é um dos factores que
surge associado ao decréscimo das taxas de violência contra a mulher, a par com
a maior autonomia financeira, a existência de sanções contra a violência e de
estruturas que permitam a saída da mulher da relação abusiva (Campbell, 1999;
Machado & Dias, no prelo).
Contudo, vimos já que o género (e a sua relação com a violência) não pode ser
simples-mente explicado pelos processos e estruturas sociais (Amâncio, 1998).
Sob a abordagem construcionista social, salientámos a necessidade de analisar a
construção dos conteúdos simbólicos associados a cada um dos géneros (Amâncio,
1998; Nogueira, 2001), construção esta que se opera através das interacções e
que acarreta consequências para a vida das pessoas (Amâncio, 1998; Anderson,
2005; Burr, 1995). Além disto, concluímos ainda que a construção do género não
é apenas social mas também cultural (Mota-Ribeiro, 2005), que os significados
associados ao feminino e ao masculino diferem consoante o contexto cultural e
que, ainda que possam existir padrões comuns identificados pelos estudos inter-
culturais, há também uma grande diversidade de normas e práticas relativas a
cada um dos géneros.
Efectivamente, as relações de género são fluidas, mutáveis e podem ser
específicas a certas circunstâncias ou contextos culturais (Hanson, 1992, cit.
in Williams, 2002). Os vários estudos indicam, assim, que a cultura é uma
dimensão essencial no estudo e compreensão do fenómeno da violência contra a
mulher, envolvendo uma multiplicidade de discursos e práticas culturais
relativos, não só à violência em geral e contra a mulher em particular, mas
também à mulher e às relações de género.
Assim, adoptar uma perspectiva cultural na análise da violência conjugal
implicará uma análise integrada do género e da violência. Não pretendemos com
isto defender a noção de que a violência é exclusivamente um fenómeno de
género, mas antes salientar que a análise da violência conjugal, sem considerar
a natureza das relações em que esta ocorre e os significados culturais que lhe
estão associados, não seria uma análise verdadeiramente cultural. Por outro
lado, o mesmo se aplica à noção de género e às relações de género: sendo a
violência um fenómeno cultural e partindo da concepção de que o género
influencia não só o significado de ser mulher e de ser homem mas também o modo
como interagem, a violência tem de passar a ser incluída na análise do género e
das relações de género.