Clínica da psicossomática: Estudo de um caso
2) "(...) ou isto muda e eu passo-me e não respondo por mim! Olhe que se
fosse dantes eu já me tinha passado! Eu só tenho medo de me passar e matar
alguém!".
O Miguel parece cada vez mais capaz de mentalizar as suas angústias. Mas, o
esbatimento da omnipotência e do controlo deixam o seu núcleo melancólico mais
exposto. Traz, então, para a sessão, conteúdos suicidários, acompanhados pela
fantasia de que só morrendo pode marcar a sua presença nos outros: "(...)
eu moro num terceiro andar e se eu me mando de lá abaixo. Ultimamente tenho
pensado muito nisso. Ainda no outro dia estava no meu quarto; só estava o meu
irmão em casa e, eu pensei em ir chamá-lo para vir ver uma coisa e, quando ele
entrasse no quarto eu subia para a varanda, para ver se ele me segurava e
atirava-me. Mas, depois, deitei-me na cama e fiquei a olhar parao tecto e a
pensar: a minha vida é uma merda, vou-me atirar! Oh pá, não, eu não me quero
atirar! E fiquei nisto. Mas depois também penso, se eu algum dia fizer isto não
pode ser sozinho.Tem de estar gente em casa. É para ver se me agarram, não
sei".
Pela mesma altura traz para a relação terapêutica, as suas fantasias violentas,
que intui já poder imaginar sem as agir. Uma, porém, angustia-o,
particularmente: fantasias de violência sexual sobre mulheres. Verbaliza que
quanto mais tenta não pensar nisso, mais o faz de um modo compulsivo. O Miguel
já tolera a imagem, já imagina com contrapartida objectal. Isto é, já não
capitula perante o quase-nada objectal, já não coloca o corpo e a mente a
protegerem-se um do outro perante a iminência do vazio. Agora existe um outro,
que lhe permite sentir que a fantasia não fica à solta, indomada, ou o coloca
na emergência destrutiva. Agora, podemos arriscar que o seu trajecto digestivo
mental está a ser reposto. Já tem uma função simbólica. O Miguel, no âmago de
toda a sua fealdade e sentimento de incapacidade, sente que não pode ambicionar
amar uma mulher ou ser amado por ela. Como se o máximo que pudesse esperar
fosse agarrá-la num beco e atacá-la. Mas, vai ser capaz de escrever uma carta
de amor. Vai ser capaz de a entregar. E perante a rejeição, não soçobrar.
Algumas semanas depois, traz, pela primeira vez um sonho para a sessão:
"A mãe dela não queria que nós falássemos. Não sei porquê. Entrei no
prédio dela e, aquilo ficou enorme, enorme, aquilo já é grande, mas ficou
enorme, cheio de portas, portas, parecia um labirinto, parecia mesmo um
labirinto. Eu tocava nas portas e não era o sétimo direito. Quanto mais andava,
mais portas apareciam. Até que encontrei um senhor que me disse onde era. Lá
fui e consegui sair do labirinto e tocar à porta dela. Ela estava à minha
espera. Entrei e ficámos a conversar na sala, todos contentes. Conversávamos
sobre as coisas passadas e sobre a vida de agora". Um sonho que dá conta
do carácter integrador da relação terapêutica, enquanto catalisador da
construção da saída do labirinto da sua vida em que, tantas e tantas vezes, se
foi sentindo completamente isolado, desamparado e entregue a um destino
trágico, do pensar e integrar das "coisas passadas e sobre a vida de
agora".
A sua capacidade crescente de metabolização permite-lhe, poder pensar-se, além
da doença, além do vírus: "Mas oh doutor, então responda-me a uma
pergunta: então isto de ser chato e aquilo de partir tudo que eu fazia não é da
epilepsia; é do meu feitio? Mas eu antes tinha uma vida normal; tinha amigos,
divertia-me. Era normal". Permite-lhe pensar as relações interpessoais;
as razões do seu profundo isolamento, da sua profunda solidão e, esboçar
movimentos de alguma aproximação aos outros.
Não podemos esquecer que todo e qualquer processo de integração mental poderá
implicar, no limite, desintegração.
É a propósito destes conteúdos que um de nós (Sá, 2009), se refere a um quadro
que se chamou de psicose psicossomática, referindo-se à presença de reacções
violentas (compagináveis com a psicose) a um sofrimento depressivo grave dos
objectos internos, sentido como persecutório no próprio. Este sofrimento
depressivo, mortificante da vida emocional, não podendo traduzir-se em
episódios de violência reactiva, em relação a ele (em consequência de regras de
contenção educativa major), pode provocar, a nível do sistema nervoso, uma
reacção paradoxal, fazendo com que os indicadores emocionais de saúde sejam
sentidos muito mais como desorganizadores do que como integrativos. Nestas
circunstâncias, um sofrimento violento acompanhado por uma contenção emocional
violenta poderá levar ou contribuir para somatizações graves (tais como
acidentes vasculares cerebrais, doenças oncológicas ou doenças degenerativas),
nos adolescentes, o que poderá ter sucedido com o Miguel.
O Miguel, entretanto voltou à escola. Mas a uma escola para crianças com
deficiências adquiridas e atrasos de desenvolvimento graves, onde foi capaz,
pela primeira vez, desde que acordou de coma, de manter uma relação de algum
companheirismo com dois colegas da Escola. Não sem inseguranças ou angústias
persecutórias! Mas com o valor potencial da passagem para novos investimentos
relacionais.
Depois de um largo período em que as crises convulsivas foram quase extintas, o
Miguel desenvolve algumas crises convulsivas no caminho para a Escola. Este
incremento da frequência das convulsões coincide com o seu desejo em abandonar
a instituição de ensino que frequenta, por há muito ter aprendido toda a
matéria e estar, há algum tempo, sem nada para fazer nas aulas e, por, no dizer
dele, "só ver desgraças" (adolescentes com deficiências graves).
Quer voltar ao Ensino Regular: "Eu não sei se consigo ou não fazer o 12.º
ano, mas euquero tentar! Eu sei que são muitas cadeiras e muita matéria. Mas se
eu fizer só três ou quatro cadeiras por ano, pode demorar muito, mas eu acho
que consigo".
Entre uma encefalopatia que o dilacerou sem que se questionasse a sua
etiologia, e as reacções psicopatológicas que trouxe, o Miguel está a
reencontrar-se. Pensa de uma forma organizada, e a incidência dos sintomas
esbateu-se significativamente. Foi por tudo isto que o entendemos como uma
situação didáctica, a partir da qual mobilizámos uma compreensão clínica da
psicossomática.