Crescer por dentro: A barreira de contacto no processo adolescente através do
Rorschach
Na adolescência ocorre um importante processo transformacional, sendo uma das
fases de desenvolvimento mais importantes da vida do ser humano (Matos, 2002),
tanto que posteriormente serão raras as vezes em que o sujeito se irá deparar
com alterações tão profundas no funcionamento do aparelho psíquico. Esta fase
deve então ser pensada a partir do aspecto que caracteriza todos os períodos de
desenvolvimento: a destabilização, a desorganização e a regressão que coexistem
com a reorganização, a progressão e a construção (Marques, 1999). A capacidade
de manter dialécticas adquire assim, no contexto do adolescente, uma
importância fulcral, face à intensa conflitualidade inerente a todo este
processo. A capacidade para negociar, unir e coexistir com as dialécticas
apresenta-se como única solução e saída para todo este processo.
A barreira de contacto
O desenvolvimento da teoria psicanalítica e da prática clínica conduziu à
emergência de novos conceitos que pudessem descrever mais fielmente o psiquismo
humano. Vários autores têm-se debruçado, assim, sobre a existência de uma área
intermediária na psique humana que irá permitir a realização de trocas e o
manter em contacto o mundo interno com o mundo externo, conteúdos inconscientes
com conteúdos conscientes, permitindo a constituição de processos dialécticos.
O aparelho psíquico tem sido descrito por vários autores e sido objecto de
diversas abordagens, sendo enfatizada a existência de uma espécie de pele cuja
função seria conter os conteúdos psíquicos. A existência de uma pele psíquica é
descrita por Anzieu (cit. in Cabral 1998), referindo-se à existência de uma
estrutura intermediária no aparelho psíquico que funciona como um continente do
espaço interno e que possibilita o estabelecimento de barreiras (defesas) e a
filtragem de trocas (entre instâncias psíquicas e o exterior), sendo esta
estrutura constituída a partir da experiência da superfície do corpo. Tal como
a nossa pele serve de envelope ao organismo também a mente carece de um
envelope psíquico, de um continente que retenha os seus conteúdos.
A origem do conceito de barreira de contacto remonta a Freud (cit. in Cabral
1998), que muitas vezes se referiu na sua obra a um processo fundamental que
permite a passagem da condição de animal sensível para animal falante,
permitindo o nascimento de um ser concebido num mundo simbólico e trazendo
dentro de si uma capacidade infinita de sonhar, de pensar e de criar.
Posteriormente, o conceito de barreira de contacto foi reutilizado por Bion
(1963/1979). Essencialmente preocupado com a origem, a natureza e o
desenvolvimento do pensar e do aparelho para pensar os pensamentos, encontra na
barreira de contacto o processo crucial para a sua compreensão.
A barreira de contacto deve ser compreendida como uma pele psíquica que protege
o mundo interno e, simultaneamente, o separa do externo, sendo uma espécie de
teia construída pela união de elementos alfa, permitindo uma rede de
comunicações e de ligações entre interno e externo (Bion, 1963/1979). É de
facto um conceito inovador porque paradoxal - uma barreira que impede a
passagem porque está em contacto e, por esta mesma razão, permite em parte a
passagem. A sua estrutura caracteriza-se por ser um crivo ou uma peneira
- e tal como a cesura - tanto separa como une o que está de cada
lado da barreira, do corte.
A barreira assume também uma tripla funcionalidade: diferenciar/mediar o
contacto entre instâncias psíquicas e entre consciente/ /inconsciente;
diferenciar/mediar o contacto entre aquilo que pertence ao sujeito e aquilo que
pertence ao exterior; diferenciar/mediar entre aquilo que são as representações
e as coisas em si (Cabral, 1998). Deste modo, assume a função de barreira
(continente) que contém e retém os conteúdos da mente, assegurando a
diferenciação e a separação do que é interno do externo, do que é consciente do
inconsciente (superfície que delimita), do que é a representação das coisas em
si. E, por fim, assume a função que permite o contacto, a ligação e a
comunicação entre todos estes mundos/pólos (meio de troca).
O aparecimento da barreira de contacto é de crucial importância para o
funcionamento psíquico, exercendo uma tarefa altamente especializada. O seu
funcionamento é extremamente complexo, pois não se trata somente de separar os
conteúdos conscientes dos inconscientes, mas trata-se de um lugar de
relacionamento, de troca e de comunicação, que na sua essência permite a
criação do pensamento (Cabral, 1998). Assim sendo, o desenvolvimento saudável
da barreira de contacto permitirá a constituição de um processo dialéctico
contínuo entre fantasia/ /realidade, Eu/não-Eu, símbolo/simbolizado,
continente/conteúdo, no qual cada pólo cria, dá forma e nega o seu oposto,
fornecendo assim os alicerces e os continentes para a formação da identidade
(Cabral, 1998).
A BARREIRA DE CONTACTO NA ADOLESCÊNCIA
Se na infância assistimos ao nascimento da barreira de contacto e à sua
formação inicial, ainda que bastante rudimentar, na adolescência iremos
assistir à sua estruturação e complexificação (Marques, 1999). Ao longo do
desenvolvimento esta barreira irá ganhar consistência, espessura e
permeabilidade. Por um lado, ela é enriquecida com as novas experiências que o
sujeito vivência, por outro lado, ela é fruto do próprio processo de
desenvolvimento. Será na adolescência que se assistirá a uma importante
evolução nas suas características e a uma intensa complexificação das suas
funções psíquicas.
Será através das funções garantidas pela barreira de contacto que vai ser
possível a resolução dos conflitos que estão na origem do processo adolescente
(Marques, 1999). Esta estrutura vai permitir a ocorrência das transformações e
das mudanças inerentes à adolescência:
(a) a separação- pois a barreira garante a continuidade e a capacidade
para o sujeito guardar (continente) dentro de si os elementos básicos do ser,
permitindo assim a confiança necessária para a separação e ulterior união; (b)
a estruturação- uma nova e mais complexa diferenciação e estruturação do
espaço psíquico: face às novas experiências e vivências é necessário uma
barreira (superfície) que ordena, separa, diferencia e selecciona o que deve
permanecer, o que deve ser excluído e o que deve ser reciclado; (c) a
criação- funcionando como um ponto de encontro/contacto (troca) que
permite a união, a ligação, a comunicação entre os conteúdos dispersos da mente
e entre o exterior/interior (Cabral, 1998).
A barreira de contacto é na sua essência um processo em contínua formação,
dependendo a sua constituição da natureza dos elementos que a formam e da
relação que estabelecem entre si. Podemos considerar que a condição fundamental
para o desenvolvimento psíquico saudável, depende da constituição no interior
da psique duma função continente, maturativa e transformadora que irá favorecer
a integração progressiva das experiências emocionais, num permanente processo
de oscilação entre os pólos, numa cada vez maior tolerância à dor mental
(Marques, 1999).
Esta estrutura irá sofrer importantíssimas transformações no decorrer deste
período de desenvolvimento e serão, essencialmente, as mudanças, as
transformações, as negociações e as uniões inerentes a todo o processo
adolescente que irão impor a renovação da barreira de contacto, dotando-a de
características de maior permeabilidade e de maior flexibilidade, induzindo o
crescimento (Marques, 1999). Desta forma, verifica-se toda uma reconstrução da
barreira, que se torna mais íntegra e semipermeável se a "crise" da
adolescência for resolvida de forma positiva, permitindo assim o crescimento,
mas que se, pelo contrário, o processo adolescente não resultar num
crescimento, esta barreira se tornará rígida e inconsistente, não permitindo
trocas entre as instâncias psíquicas. Sumariamente, o bom estado da barreira
conduz à expansão da mente e ao crescimento, permitindo o aumento de tolerância
à frustração, à dúvida, ao desconhecido e à dor mental, enquanto que sem a
existência da barreira de contacto não será possível pensar os pensamentos,
sonhar, distinguir fantasia e realidade, consciente e inconsciente (Cabral,
1998).
METODOLOGIA
O Rorschach foi utilizado neste estudo enquanto instrumento de observação e de
descrição, sendo um instrumento que possibilita o encontro com o funcionamento
psíquico e uma via rápida de acesso ao processo adolescente. Ao ser considerado
deste modo, o Rorschach revela as suas enormes potencialidades essencialmente
enquanto metodologia de uma psicanálise aplicada, que tem como preocupação
dominante demonstrar o funcionamento psíquico do sujeito, tornando-se num
auxiliar no acesso ao conhecimento do ser psicológico (Marques, 1999).
O próprio instrumento remete por si mesmo para o posicionamento do sujeito num
espaço intermediário, reactivando assim a barreira de contacto. Ao considerar-
se a analogia do Rorschach como um telescópio e o sujeito como um universo,
está-se a desenvolver o telescópio, a afinar as suas lentes de modo a obter-se
uma imagem mais próxima do que se quer conhecer e, porque se tem esta lente
mais avançada, pode-se vislumbrar mais fielmente este universo. Assim, a
própria metodologia Rorschach foi actualizada de forma a potenciar a sua
sensibilidade ao fenómeno adolescente à luz do conceito de barreira de
contacto.
Participantes
A recolha de protocolos decorreu no agrupamento vertical da Escola D. Pedro II
na Moita, no decorrer dos meses de Dezembro 2005 e Janeiro 2006, com a devida
autorização do Conselho Executivo. Nesta recolha foram seleccionadas
aleatoriamente duas turmas: uma turma predominantemente com jovens entre os 14
e os 15 anos e outra turma com jovens entre os 16 e 18 anos. Os jovens foram
convidados a participar no estudo e seleccionaram-se 20 segundo o critério
idade e sexo, daqueles que acederem ao nosso convite e se mostraram
predispostos a participar. Foram assim reunidos 20 protocolos: 5 de rapazes de
14 anos, 5 de raparigas de 14 anos, 5 rapazes de 17 anos e 5 de raparigas de 17
anos.
Procedimentos de análise
No decorrer da análise dos protocolos procurámos seguir o modelo de construção
do conhecimento descrito por Marques (1999), percorrendo as seguintes fases:
primeiro, observar e descrever; seguidamente ligar os elementos destacados,
estabelecendo relações e significa-ções entre esses elementos; e, por fim,
simbolizar para os transformar, isto é, dar-lhes outro sentido de modo a
aumentar o conhecimento. Desta forma, começámos por analisar os conteúdos
formais dos protocolos, através dos psicogramas e dos elementos de cotação,
para seguidamente realizarmos uma interpretação do simbolismo e simbolização
das respostas nestes protocolos.
A utilização do Rorschach neste trabalho prende-se com a procura de elementos
de comunicação e de transformação. Para tal, explorámos no Rorschach possíveis
manifestações da barreira de contacto, examinando no próprio instrumento os
procedimentos que nos permitam aceder a esta instância psicológica. Centrámo-
nos no conceito de barreira de contacto a partir das suas características
fundamentais: a separação, a ligação, a criação e os processos dialécticos. Por
fim, focalizamos o presente estudo nos modos de relação e de mobilização entre
a realidade e a fantasia, ou seja, nos processos psicológicos que criam
condições para que sejam atribuídos significados às experiências dos
indivíduos.
Procedimentos de análise do vector separação/barreira:Procurámos neste vector
os procedimentos que permitem observar e caracterizar os mecanismos de
separação, o estabelecimento de limites entre Eu/Outro, entre interno/externo,
as instâncias psíquicas e o consciente/inconsciente. Nomeadamente: os Gque nos
permitem observar as capacidades básicas dos sujeitos em separar e diferenciar
interno de externo, Eu de Outro; os Fque consistem em estabelecer os limites;
os determinantes sensoriais Ce Eque remetem para a capacidade de separação e
diferenciação. As referências socializantes de base, com os F+, A%, H%e
Bandentro dos valores normativos, são testemunhas de uma delimitação efectiva
entre dentro e fora, demonstrando que está constituído um quadro que permite
circunscrever a realidade externa da realidade interna (Chabert, 1998). Estes
procedimentos irão permitir a análise e a descrição da função vital assegurada
pela barreira de contacto: ser barreira e separar na sua tripla vertente
- interno/externo, sujeito/objecto e intrapsíquica.
Procedimentos de análise do vector ligação/ /contacto:Outro dos vectores em
estudo na presente investigação foi a análise da função assegurada pela
barreira de contacto: permitir o contacto, a ligação, a troca, a relação e a
comunicação. Os procedimentos que nos permitem aceder a esta função são
essencialmente: os Dquando associado a um percepto de "boa
qualidade" e os Ddquando dentro de valores normativos; os F-na ordem dos
20%; as cinestesias Kobe Kan; no Psicograma iremos destacar a TRIe a FC. Estes
factores revelam um compromisso e uma certa flexibilidade na barreira, uma
certa permeabilidade no arranjo do funcionamento mental, são janelinhas de
emergências inconscientes, que permitem a troca e a comunicação intrapsíquica
(Chabert, 1998).
Procedimentos de análise do vector criação:Outro dos vectores em estudo passou
pela análise e descrição da função vital assegurada pela barreira de contacto
de criação, ou seja, a capacidade para originar um pensamento ordenado e a
possibilidade de criar símbolos. Os procedimentos que nos permitem aceder a
este vector são: os G organizadosque testemunham a existência de um espaço
psíquico próprio e de uma interioridade efectiva, manifestando a existência de
uma barreira flexível e operante; os Kque constituem o protótipo do produto
transitivo, da barreira de contacto, onde o paradoxo é levado ao extremo na
dupla pertença das imagens à realidade e à ilusão. Estes factores testemunham a
conduta de sujeitos que remodelam o material dando-lhe a marca da sua
subjectividade e modificando-a (Chabert, 2000).
Procedimentos de análise dos processos dialécticos:A existência de uma barreira
de contacto funcional e saudável, permitirá encontrar os pólos da realidade e
da fantasia claramente separados, diferenciados e delimitados, mas também
unidos, ligados e comunicantes. Procurámos identificar os momentos e os
movimentos que nos dão conta desses processos dialécticos, descrevendo os modos
como o sujeito se aproxima da (pólo) realidade e da (pólo) fantasia e, como as
aproxima entre si no processo criativo de elaboração da resposta.
Quando o funcionamento psíquico não é capaz de aceitar as oposições inerentes
aos processos dialécticos, as dialécticas irão surgir com algumas limitações. A
psicopatologia da simbolização é baseada em formas específicas de fracasso para
criar ou manter estas dialécticas (Ogden, 1985), que por sua vez irão apontar
para falhas na constituição de barreira de contacto, que não permite a
comunicação, a ligação, a criação.
1. Pólo da fantasia predomina sobre o pólo da realidade;
2. Pólo da realidade é dominante sobre o pólo da fantasia;
3. Os pólos encontram-se dissociados; Não ocorre a criação dos pólos.
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
No grupo de jovens púberesestudados, evidencia-se imediatamente um
funcionamento mental móbil, diversificado, intenso. Apesar de terem sido
detectadas algumas nuancesentre os rapazes e as raparigas, encontramos vários
pontos comuns, que reflectem o estádio de desenvolvimento em que se encontram e
as questões básicas organizativas do seu funcionamento mental. Observa-se
constantemente alternâncias entre posições defensivas e o deixar-se ir,
deixando-se os jovens envolver pelo material. A problemática dominante é
indubitavelmente a representação de si e a construção de uma identidade sólida
("um boneco com pés enormes e umas mãos um bocado esquisitas").
Deste modo, encontramos um forte investimento nos determinantes formais,
contudo, a sua qualidade perceptiva é frequentemente posta em causa, numa busca
activa de estabelecimento de limites, num investimento maciço na procura duma
imagem corporal e física íntegras.
Na análise do psicograma salientam-se alguns traços específicos, nomeadamente o
número de respostas médio por protocolo que é ligeiramente inferior aos dados
normativos esperados. Estas características devem-se essencialmente à
predominância das respostas globais nos protocolos, dando os jovens somente uma
resposta por cartão nos cartões compactos, observando-se um aumento
significativo de respostas com a introdução dos cartões de cor pastel. No
geral, os protocolos são dominados por determinantes formais, sendo a
intensidade das pulsões saliente nas frequentes derrapagens formais dos
engramas. Observamos ainda alguma sensibilidade ao pormenores brancos, surgindo
numerosos Gbl, que denotam o sentimento de incompletude, de falha que é
necessário preencher e objectualizar a todo custo ("um vestido com
encharpe"). Por fim, encontramos uma característica fundamental nestes
protocolos: a predominância exacerbada dos conteúdos animais e a fraca
expressão dos conteúdos humanos. Quando estes últimos aparecem são regra geral
figuras irreais e para-humanas ("parece-me um vampiro").
Da análise efectuada aos protocolos dos jovens púberes, observamos à partida
uma separação incisiva entre interno e externo, encontramos expressa a
necessidade de separar, de diferenciar e de cindir, para não haver risco de
fusão e de confusão. Esta necessidade de enfatizar os limites coexiste com a
necessidade de contestação e experimentação dos mesmos, de forma a perceber a
sua firmeza e a sua plasticidade. Parte do processo de estabilização dos
limites passa pelo seu conhecimento, e este conhecimento exige a
experimentação. Esta tendência revela-se no elevado número de respostas G, F+,
Ban, sendo recorrente a utilização de resposta do tipo "parece uma
carpete de pele de urso" e "isto parece mesmo uma borboleta";
ela revela-se igualmente nos conteúdos utilizados como objectos, máscaras,
carapaças e vestuário em proporção significativa - "uma máscara de
Wrestling"; "tartaruga"; "uma camisa". Observámos
também a ameaça constante que estes limites sofrem, tanto das pressões internas
através das pulsões (com maior intensidade nos rapazes), que se revela em
especial nos kob e nos C - "Fogo de Artifício" - como
das pressões externas através da excitabilidade provocada pelo real (com maior
intensidade nas raparigas). Surge, por fim, na maior sensibilidade à cor
acompanhada de determinantes formais - "o cálice de fogo do Harry
Potter".
Estas tensões dificultam os processos de comunicação e de negociação,
encontrando os jovens como resolução para este conflito a rigidez dos
contornos, através da enfatização dos limites (como acontece nos conteúdos
animais com carapaça "caranguejos"). Todavia, emergem
ocasionalmente as tensões que tomam lugar à expressão ("diria que é o
Hulk... a fazer um dedo feio"), accionando já importantes elos de ligação
e estabelecendo algumas pontes comunicantes, essenciais para o crescimento do
funcionamento psíquico dos jovens púberes. Contudo, detectamos ainda alguma
fragilidade de processos consonante com a idade dos jovens, não estando as
funções da barreira de contacto totalmente operacionais. Encontramos ainda
diversas fragilidades de funcionamento e uma importante rigidez que
consideramos características desta fase de desenvolvimento.
Nos processos dialécticos, observamos uma predominância dos elos com o pólo da
realidade - no predomínio do uso dos determinantes formais, em especial
de boa qualidade perceptiva e nas Ban. A realidade é usada predominantemente
como uma defesa contra a fantasia. O exacerbamento do pólo da realidade e a
excessiva racionalização impedem o estabelecimento de uma troca dinâmica entre
o pólo da realidade e o pólo da fantasia, o que possibilitaria a criação e a
imaginação. A ressonância dialéctica dos significados da realidade e da
fantasia é limitada e o pólo da fantasia consegue emergir e encontrar um meio
de expressão, não desaparecendo totalmente.
No grupo de jovens adolescentesaqui estudados, observa-se a predominância de
posições activas e por vezes defensivas, sendo o deixar-se ir e o deixar-se
envolver pelo material vivido com destabilização e desorganização para o
funcionamento psíquico, estando estes movimentos em constante negociação.
Claramente, a problemática da vivência do corporal, do pulsional, da
representação de si e da construção da identidade ainda estão mal mentalizadas
("o corpo, a cabeça, as costelas... uma pessoa"). Encontramos deste
modo um forte investimento nos determinantes formais, contudo, a sua qualidade
perceptiva é frequentemente posta em causa, numa procura activa do
estabelecimento de limites, numa diferenciação entre Eu e objecto, num
movimento constante de regressão e progressão face ao relacional
("assim... bonecos prontos para dar um beijo um ao outro", logo
seguido de, "ou então... assim parece mais um robot sem cabeça").
Na análise do psicograma, no geral, este grupo apresenta traços muito
semelhantes ao grupo de jovens púberes. Assim, o número de respostas médio por
protocolo é ligeiramente inferior aos dados normativos esperados, encontrando-
se uma média semelhante ao grupo anteriormente estudado. A diversidade de
determinantes é, neste grupo de jovens adolescentes, uma característica
presente nos protocolos, ao contrário do grupo de jovens púberes que investem
quase que exclusivamente nos determinantes formais. Encontramos assim, uma
importante sensibilidade à cor, quer seja aos negros ("parece um daqueles
bichos que anda na noite, um morcego"), aos vermelhos
("pulmões") e aos pastel ("uma rosa"), sendo estes
frequentemente significativos na determinação das respostas dos jovens e sendo
inclusive dominantes na emergência do engrama. Os determinantes esbatimentos
também aparecem ("um gato aberto... a parte do pêlo"), apesar de
assumirem um papel pouco expressivo. Todavia, são os determinantes formais os
que mais se destacam, excedendo claramente nalguns protocolos a média esperada
e perdendo frequentemente a boa qualidade perceptiva. São assim numerosos os F-
excedendo os valores esperados ("os intes-tinos"). Observa-se,
ainda, de forma mais frequente do que no grupo anterior, a utilização frequente
de cinestesias ("2 mulheres a mexer num alguidar"; "2
pássaros... a descer", e diversos kob "parece um tornado"), o
que vem enriquecer significativamente os protocolos, evidenciando
características de mobilidade e de diversidade no funcionamento mental, assim
como, a necessidade expressa destes jovens de se afirmarem e adoptarem condutas
activas numa clara identificação com imagens de potência ("um
gigante").
Por fim, encontramos uma característica fundamental nestes protocolos: a
predominância exacerbada dos conteúdos animais e a fraca expressão dos
conteúdos humanos, surgindo igualmente conteúdos que reflectem um ligeiro
aumento do índice de angústia (Sx, Anat, Hd). Acentua-se neste grupo de jovens
adolescentes a tendência para surgir mais conteúdos animais e menos conteúdos
humanos, o que nos remete para acentuadas dificuldades de identidade que
persistem por solucionar.
Da análise efectuada aos protocolos dos jovens adolescentes, observamos que, no
geral, este grupo afasta-se cada vez mais do padrão dos dados normativos
esperados, afastando-se ainda mais da norma, o que consideramos estar
directamente relacionado com o eclodir da "crise adolescente", ou
seja, encontramos aqui os processos transformacionais adolescentes no seu
rubro, sendo a linha que separa um funcionamento normativo de um patológico
bastante ténue, face à intensidade de processos. Encontramos em acção algumas
características fundamentais do funcionamento da barreira de contacto,
observamos neste grupo uma diferenciação efectiva entre interno e externo
("uma tartaruga"), todavia, a páraexcitação de movimentos internos
e externos torna-se de difícil controlo ("um fogo de artificio, está tudo
espalhado"). Acentua-se neste grupo a necessidade de contestamento da
firmeza dos traços e das orlas, assim como de experimentação dos limites,
denotando uma significativa insegurança das barreiras com contornos mais
porosos e menos contentores ("isto aqui são teias"). Observámos
também a ameaça constante que estes limites sofrem, tanto das pressões internas
através das pulsões ("sangue"), como das externas através da
excitabilidade provocada pelo real ("um pôr-do-sol"), que se
intensificam e muito nesta fase de desenvolvimento.
Estas tensões exigem um processo contínuo de comunicação, de compromisso e de
negociação, encontrando os jovens como resolução para este conflito a
flexibilidade dos contornos, a plasticidade da barreira que permite a passagem
e o movimento de vaivém entre pólos e entre processos ("é também um
morcego, só que está a voar"; "2 pessoas lado a lado").
Constatámos assim a existência de importantes elos de ligação, a existência de
pontes comunicantes, fundamentais para o crescimento do funcionamento psíquico
dos jovens em pleno desenvolvimento. Contudo, observamos ainda alguma
imaturidade de processos, coexistindo o infantil com a vontade de "ser
crescido". A dialéctica da realidade e da fantasia entra em colapso na
direcção da fantasia, ou seja, a realidade é submergida pela fantasia. Todavia,
não se observa uma negação do real, nem a incapacidade de simbolizar/
representar, tal como foram descritos por Ogden (1985).
CONCLUSÕES
Na exploração dos protocolos estudados, encontramos evidências inquestionáveis
da existência de uma barreira de contacto que separa, que selecciona e que
diferencia conteúdos psíquicos, objectos internos de externos, processos
conscientes de inconscientes, uma barreira que permite a ligação e a
comunicação. No entanto, face à pluralidade de processos psíquicos e face às
especificidades de cada um dos protocolos estudados, foi extremamente complexo
encontrar pontos de contacto e encontrar "continentes" que
contivessem os pensamentos emergentes.
Há uma necessidade intensa dos jovens púberespara realizarem separações e
cesuras, mantendo ambos os mundos devidamente afastados, denotando-se nesta
fase de desenvolvimento alguns traços de inflexibilidade e de rigidez na
barreira. Traços que se tornam necessários como forma de controlo, face à
intensidade das pulsões que começam a emergir e a uma excitabilidade intensa
suscitada pelos objectos. A ênfase dada na formalização excessiva vai no
sentido de um melhor controlo, de um afastamento das pulsões e dos estímulos
externos, todavia, o equilíbrio entre o que a barreira deixa passar e aquilo
que retém nem sempre é fácil, pois aproxima-se o rubro da "crise
adolescente" e o "caos" é inevitável. Assim, observa-se a
existência de algumas pontes comunicantes, mas ainda pouco sólidas.
No grupo de jovens adolescentes, observámos uma intensificação dos mecanismos
defensivos, mas também um aumento exponencial da excitabilidade pelo real e de
tensão interna, que exigem uma maior flexibilidade e plasticidade na barreira.
Existe, de facto, uma barreira de contacto que permite a separação e a
diferenciação, apesar das constantes ameaças, quer internas, quer externas,
sendo um imperativo o accionamento de importantes elos de ligação e o
estabelecimento de algumas pontes comunicantes, fundamentais para o crescimento
do funcionamento psíquico dos jovens. Deste modo, surgem maiores fragilidades
na contenção e firmeza dos contornos que é preciso testar, acentua-se neste
grupo a necessidade de experimentação dos limites.
Testemunhámos, ao longo deste trabalho, a existência de uma barreira de
contacto operante, que assegura as funções de separação, união e criação no
funcionamento psíquico dos jovens, mas ainda com traços acentuados de
fragilidade de processos. Constatámos algumas diferenças significativas nos
dois grupos estudados. Assim, nos jovens púberes, acentuam-se os limites e a
necessidade de separação interno/externo, enquanto nos jovens adolescentes,
evidenciam-se os movimentos de comunicação e de negociação, sendo estes
fundamentais face à intensificação das pulsões e complexidade de processos
psíquicos.
Ao longo desta investigação procurámos demonstrar a pertinência do presente
estudo, centrando-nos na importância que a barreira de contacto assume no
desenvolvimento do funcionamento psíquico e, em especial, no decorrer do
processo adolescente. Apesar dos amplos estudos já existentes sobre a
adolescência, julgámos ser relevante estudar as características da barreira de
contacto neste período de desenvolvimento, observando mais de perto a sua
formação, transformação, complexificação e criação no decorrer deste processo,
de modo a trazer uma nova perspectiva sobre esta temática. Por outro lado,
sendo o estudo sistemático da barreira muito recente, consideramos ser
pertinente contribuir para o aumento de conhecimento sobre este conceito,
relacionando-o fertilmente com o desenvolvimento do ser psicológico.
Tendo sido a partir da inscrição nos modelos psicanalíticos que o Rorschach foi
fundamentado, faz todo o sentido que seja actualizado relativamente aos
progressos inscritos nestes mesmos modelos. Tendo em conta que o Rorschach é um
instrumento de primordial importância na clínica, considerámos ser pertinente
contribuir para o desenvolvimento de suas potencialidades, actualizando-
o relativamente aos novos paradigmas que emergem no seio da teoria
psicanalítica, numa tentativa de estender uma ponte comunicante entre a
metodologia e a teoria, de forma a constituir-se por si só num instrumento de
investigação.