Reflexões sobre o não-escolar na escola e para além dela
Introdução
O desafio que se coloca ao investigador em educação, quando se propõe
compreender a escola na actualidade, materializa-se na procura de um sentido de
análise que lhe permita ultrapassar o emaranhado de representações e lugares-
comuns educacionais que se foram cristalizando sobre aquela instituição social.
Igualmente a sua condição de sujeito histórico, marcada por uma experiência
prolongada de escolarização, tende a introduzir alguma subjectividade na
selecção dos objectos de análise, surgindo estes, muitas vezes, de terrenos
mais próximos e reconhecíveis, e nesta óptica é o próprio investigador a
emaranhar-se na construção da realidade, nem sempre daqui resultando o melhor
ângulo de focagem. Esta advertência, em jeito de vigilância crítica, ajusta-se
à nossa preocupação em abordar as mutações ocorridas na escola pública
portuguesa nos últimos tempos, na medida em que esta reflexão irá deambular por
entre as fronteiras analíticas (clássicas) da escola como objecto, convocando
para esse efeito alguns domínios que fomos observando na dupla condição de (co-
)actor-investigador, de modo a ilustrar que a escola portuguesa, tal como em
outros contextos europeus, está em transformação não só quanto à sua forma mas
também quanto à sua natureza (cf. Dubet & Martucelli, 1996).
Os dados empíricos que convocarmos mais para o final deste texto pretendem
apenas dar suporte a algumas pistas de investigação equacionadas e a aprofundar
futuramente, não surgindo com a espessura interpretativa que certamente as
aludidas mutações carecem, designadamente aquelas que vieram alterar uma certa
relação de forças entre as lógicas curriculares tradicionais e um vasto leque
de saberes e de aprendizagens que se dispunham em complementaridade no
quotidiano extra-escolar. A implementação da "escola a tempo inteiro"
1
, tanto no que respeita ao alargamento do horário das escolas do 1º ciclo, como
no que concerne à ocupação plena dos tempos escolares, afigura-se uma peça
importante na renovação do debate sobre o papel contemporâneo da escola e suas
correlativas funções sociais. Igualmente do ponto de vista teórico estas
medidas políticas abrem espaço para se discutir sociologicamente o próprio
universo educativo, considerado na sua versão mais ampla e não meramente
adstrito aos contornos oficiais da cultura escolar. Mas estas transformações
deixam bem patente o diagnóstico de Correia & Matos (2001) quando falam de
um "novo escolocentrismo", repercutido, em nosso entender, na
(re)definição de novas temporalidades intra e extra-escolares e de novos
desafios e reposicionamentos dos diversos actores educativos. A escola pública
que hoje se esboça é, assim, uma instituição mais ampla, diversa e
contraditória: porque se estendeu e prolongou o quotidiano educativo de
crianças e jovens, quer em tempo de permanência no seu interior, quer nos
ajustamentos que isto implicou para a frequência tardia de outras actividades
fora da escola; porque acolheu novos públicos, construiu um catálogo de
formações para além da oferta clássica e fomentou o desenvolvimento de
actividades extra-lectivas (e.g. projectos, clubes, etc.) com vista ao suposto
enriquecimento curricular dos alunos; e porque, não obstante o "declínio
do [seu] programa institucional" (Dubet, 2002), insistiu na velha
"forma escolar" (cf. Vincent, Lahire & Thin, 1994), como se as
suas fronteiras com a comunidade e com o saber fossem ainda inquestionáveis e
como se a ideia de futuro alimentada pelo projecto da modernidade não se
estivesse também a diluir na própria escola.
Se esta renovada centralidade da escola pode ser entendida como uma forma de se
atenuar a erosão da sua legitimidade social, não será menos verdade admitirmos
que os efeitos do seu alargamento no quotidiano enfatizam as experiências
educativas escolocentradas de crianças e de jovens, assim como condicionam as
possibilidades de outros contextos e projectos se desenvolverem no âmbito da
almejada cidade educativa. Face a este cenário, parece-nos cada vez mais claro
que a rotulagem da escola como a instituição de "educação formal"
está em perda de significado, pois nos espaços e tempos escolares coexistem
processos e actividades de natureza não-formal e informal, dinamizados
internamente, e lógicas, racionalidades e projectos de vida ancorados
externamente em investimentos educativos (não-formais e informais), de
potencial mais-valia no desempenho escolar dos alunos. Não se tendo
propriamente concretizado a "desformalização das instituições" (e
concretamente da educação formal), como auguravam alguns autores na década de
1970 (cf. entre outros, Faure et al., 1973; Quintana Cabanas, 1976), contudo,
outras percepções revelaram-se porventura mais assertivas quando apontaram para
a tendência de formalização do informal(Quintana Cabanas, 1976; Canário, 2006)
e o cenário da formalização do não-formal(Lima: 2006). Partilhando o sentido
conferido à escola como "entreposto cultural" (Torres, 2008),
justifica-se, por conseguinte, não ignorarmos os desenvolvimentos das
periferias educativas da escola, mais a mais por estas se afigurarem,
porventura, como contextos de aprendizagens significativas, ou mesmo como
possibilidades e/ou experiências de diversificação e enriquecimento cultural,
cujo valor não é sociologicamente irrelevante nos espaços e tempos
transaccionais da instituição escolar.
1. Quarenta anos na sombra da crise da escola
O curso subsequente desta reflexão evidencia uma perspectiva de análise que
admite a possibilidade de "repensar o escolar a partir do não-
escolar" (Canário, 2002: 150), não se refutando liminarmente os eventuais
efeitos transformadores provindos de "referentes externos", muito
embora tal cenário nos pareça improvável face aos desenvolvimentos recentes da
escola pública. Se a ruptura com a lógica convencional da escola pode ser
projectada pela "contaminação" fecunda de ideias e práticas
inspiradas no não-escolar (Id., Ibid.), no entanto, aquilo que nos é dado a
observar é uma tendência para a consolidação e reforço do núcleo central do
currículo, atribuindo-se às modalidades extra-curriculares um lugar secundário
no processo educativo. Mesmo a suposta conflitualidade (latente) no que
concerne "à delimitação das fronteiras entre o escolar e o não-
escolar" (Correia, 1998: 132) parece não constituir um factor
desencadeador de uma ruptura conceptual de escola, até porque tal desiderato
tende a esbarrar com as predisposições das famílias e dos próprios alunos, que
há muito se encarregaram de situar a escola num plano simbólico e de
referência. Basta pensarmos que os investimentos diferenciais no não-escolar
têm constituído uma peça importante na construção de percursos escolares
distintivos e de reprodução social e cultural (La Belle, 1982), sem que com
isso se dessignificasse a escola como instituição central na educação e
socialização. O não-escolar, nas sociedades ocidentais, tem sido marcado
sobretudo pelas funções de complemento e (nalguns casos) de suplemento à
educação escolar, não obstante as propostas de redefinição do campo educativo e
os discursos sempre renovados de "crise" da escola. Em grande medida
isto deve-se à centralidade conferida aos resultados e não tanto ao processo
educativo, à excelência escolar e em menor escala ao seu papel no
aprofundamento da cidadania democrática, enfim, ao paradigma de organização
social subjugado às lógicas da economia e da competitividade. Aliás, como
seguidamente veremos, o não-formal se por um lado emerge associado à
incapacidade da escola em cumprir as promessas da modernidade, tendo sido
ensaiado como alternativa preferencial em países e contextos desfavorecidos,
por outro lado, hoje ressurge com uma aura renovada capaz de ajudar a resolver
os problemas de educação e formação nos países ocidentais, quando nalguns
países africanos, por exemplo, por ter sido uma educação de segunda, distinta
da valorizada educação formal "branca", assume uma conotação
negativa, "decididamente impopular" (Rogers, 2004: 4)2.
As últimas quatro décadas foram marcadas no campo da educação por um acumular
de propostas reflexivas de inegável valor, de onde se destacam aquelas que
procuraram situar a escola no amplo quadro da vida social e particularmente
aquelas que esboçaram a articulação desta instituição com outras modalidades de
educação e formação. Apesar do escrutínio e da reactualização permanente do
lugar da escola no quotidiano das pessoas, o certo é que esta instituição nunca
se desenraizou do centro do processo educativo, como se o esboço de Paulston
(1972: ix) para a construção genérica de um qualquer sistema educativo nacional
fosse premonitório quanto às relações e posições entre os vários subsistemas: a
escola surgia no centro e no alinhamento concêntrico imediato o autor dispôs a
educação não-formal, a educação informal e a educação internacional. A ele se
deve a ideia da educação não-formal como "periferia" e num certo
sentido a atribuição de um papel utilitário como um complemento, um suplemento
ou uma alternativa aos programas de educação formal. Como a seguir veremos,
houve neste período a preocupação em delimitar conceptualmente a educação numa
perspectiva educacional integrada (La Belle & Verhine, 1975a) e na
ambiência da educação permanente (cf. Brembeck, 1976; La Belle, 1982), muito
embora tal esforço nunca se alheasse do diagnóstico socialmente construído de
"crise" de escola.
1.1. Da crise da escola à procura de alternativas educativas
O relatório The World Educational Crisis apresentado por Philip H. Coombs, em
1967, remetia o diagnóstico da crise essencialmente para o quadro dos sistemas
formais de ensino (cf. Bhola, 1983), paradoxalmente numa década em que se
atingiam números sem precedentes de taxas de escolarização. A ausência de
indicadores que consubstanciassem uma efectiva transformação social teve como
corolário o enfraquecimento das expectativas depositadas no evoluir da
"espiral da revolução das esperanças'" (Husén, 1982: 48; aspas no
original). Diante da frieza dos dados que cada vez mais evidenciava a
impossibilidade de concretização do "sonho" universal da
escolarização de massas (cf. Bhola, 1983), não se estranha, por isso, que no
mesmo trabalho onde se diagnosticava a "crise mundial de educação"
encontrássemos, nas palavras posteriores de Coombs (1985: 26; aspas no
original), "um capítulo provocador e profético que chamava a atenção sobre
a importância futura do que o relatório denominou educação não-formal'".
No referido relatório de Coombs (1968: 203) chamava-se a atenção para a
existência de um "sistema paralelo" de educação, perspectivado como
um "conjunto anárquico de actividades não-escolares de educação e de
formação [como] um importante complemento do ensino escolar, um e outro
ajustando-se para constituir o esforço máximo consentido por um país para
instruir a sua população". Face a uma educação formal estruturada e
coerente justapunha-se uma educação não-formal algo dispersa por um sem-número
de actividades, com objectivos e clientelas mal definidos, por isso mesmo não
subjugada a uma lógica agregadora de um qualquer sistema.
A educação não-formal, que mais tarde iria merecer uma atenção particular de
Coombs e colaboradores (cf., Coombs, 1973; Coombs, Prosser, & Ahmed, 1973;
Coombs & Ahmed, 1975), mesmo subalternizada em relação à educação formal
poderia, contudo, vir a assumir um papel de relevo na economia dos processos
educativos, já que se constituía como "uma contribuição rápida e
substancial no progresso dos indivíduos e da nação" (Coombs, 1968: 203).
Apesar de considerar esta noção ampla, o autor não ignorou uma multiplicidade
de factores de inegável valor educativo que tendem a passar despercebidos no
quotidiano e que configuram aquilo que mais tarde se veio a designar de
"educação informal": "refira-se nesta perspectiva os livros,
jornais e revistas; o cinema e as emissões de rádio e televisão; enfim e
sobretudo a influência educativa da vida familiar" (Ibid.: 205).
O léxico educativo contava, a partir de então, com as designações de educação
não-formal e educação informal, muito embora sendo ambas usadas
indistintamente, segundo Trilla Bernet (1998: 18), para "designar o
amplíssimo e heterogéneo leque de processos educativos não-escolares ou
situados à margem do sistema de ensino oficial". Não se pense, porém, que
pelo simples facto de se proceder à classificação dos fenómenos educativos
situados ora dentro ora fora do marco institucional da escola se estaria,
consequentemente, a reinventar o campo educativo. Pelo contrário, e no que à
educação não-formal diz respeito, vários autores sublinharam que sob a
abrangência desta nova expressão residiam antigas preocupações educativas (cf.,
entre outros, La Belle & Verhine, 1975a; Bhola, 1983; Radcliffe &
Colletta, 1989), sendo possível constatar historicamente inúmeros trabalhos
alocáveis nesta categoria (como o comprovou Paulston, 1972), não obstante se
encontrarem dispersos por uma grande variedade de temáticas e problemáticas
similares, já para não falar nos antecedentes semânticos que, de acordo com
Rogers (2004: 71 e segs.), se encontram ocasionalmente desde 1958 ("the
nonformal educational enterprise", noção atribuída a Clark & Sloan,
1958; "nonformal educational system", de autoria de Miles, 1964; e
"nonformal education", da pertença de King, 1967)3. Como destacam
Radcliffe & Colletta (1989: 1838), "a novidade é a recente
redescoberta da educação não-formal por parte dos planificadores do
desenvolvimento e os novos valores atribuídos à sua contribuição no
desenvolvimento dos recursos humanos". Aliás, na introdução de uma das
obras mais referenciadas a propósito da clarificação conceptual dos três modos
educacionais (cf. Coombs & Ahmed, 1975) é o próprio Phillip Coombs a
reconhecer não estarmos em presença de um fenómeno recente, mas que a educação
não-formal tinha constituído, até então, um objecto pouco estudado
sistematicamente. Tendo ou não subjacentes imperativos políticos, sociais e
económicos diversos, a designação alcançou alguma popularidade investigativa
nas décadas de setenta e oitenta, apesar do declínio observado na produção
académica na década de noventa e nos primeiros anos do século XXI (cf.
Palhares, 2007). Conquanto a actualidade não seja pródiga em trabalhos de
fôlego neste subcampo educativo (excepção feita aos trabalhos de Poizat, 2003 e
Rogers, 2004), contudo nos anos 2000 tem-se assistido à (re)descoberta da
educação não-formal (e da educação informal), em grande medida pela sua colagem
à retórica inerente ao paradigma da aprendizagem ao longo da vida (cf. Rogers,
2004). Mas também interessa aqui referir que a naturalização da ideia de uma
educação não-formal se fez, de forma considerável, à custa da erosão sofrida
pela educação formal, muito por culpa da crise, real ou virtual, e, de modo
particular, por todos aqueles trabalhos que ao procurarem avolumar o património
investigativo da educação não-formal não se coibiram em apontar as fraquezas
institucionais do projecto de escolarização de massas e, em contrapartida,
vislumbraram nessa configuração educativa emergente a fórmula para a consecução
dos objectivos de desenvolvimento imediatos (cf. La Belle & Verhine,
1975b).
1.2. A educação (escolar e não-escolar) na cidade educativa
Mas se há razões históricas e sociológicas que nos levam a não considerar
aleatório o surgimento da educação não-formal neste período, tão pouco podemos
ignorar a influência que nele teve a apologia do "ideal de educação
permanente" (Lima, 2003: 129) perfilhado pela UNESCO a partir de meados
dos anos sessenta e mais tarde consagrado pela publicação do relatório da
Comissão Internacional para o Desenvolvimento da Educação, sob o título
Apprendre à être (cf. Faure et al., 1973). Este trabalho procurava dar
seguimento à ideia de que educação e aprendizagem nem recobriam o mesmo
significado, nem se circunscreviam aos mesmos espaços-tempo da actividade
humana e muito menos se esgotavam no curto ciclo de vida que uma pessoa
normalmente destina ao cumprimento da escolaridade obrigatória4. E uma das
propostas formuladas neste sentido passava pela "desformalização das
instituições" de educação, o que para os autores significava retirar o
monopólio educativo à escola, disseminá-lo por outros contextos de
aprendizagem, reconhecendo-se, por conseguinte, que esta também seria possível
nos diversos sítios da actividade quotidiana e, mais ainda, com o recurso a
modalidades (educativas) extra-escolares. Tal como sublinhavam os autores,
"todas as vias formais e não-formais, intra-institucionais e extra-
institucionais poderiam ser admitidas em princípio como igualmente
válidas" (Faure et al., 1973: 270).
Tomando a noção de educação permanente
5
como fulcral na construção da cidade educativa, a perspectiva da educação que
então emerge sustenta uma visão do ser humano como ser inacabado, cuja
realização se concretizaria pela aprendizagem constante, ao longo da vida,
independentemente da idade, e no decurso das múltiplas e diversas experiências
de vida das pessoas. Enquanto este projecto não se concretizasse, o diagnóstico
avançado pela Comissão Faure parecia querer convergir para um cenário
congruente com a evolução esperada para a educação escolar e para a educação
extra-escolar: "sendo já certo que o papel das instituições escolares é
cada vez mais importante em valor absoluto, o seu papel relativo, comparado com
outros meios educativos e outras formas de comunicação entre gerações, não
cresce, pelo contrário, na realidade tende a diminuir" (Id.: 148).
Em boa verdade, se num primeiro momento somos levados a concordar com esta
tendência, tendo em conta, nomeadamente, que "a invasão da escola por
outras instâncias de difusão de conhecimentos" (Dandurand & Ollivier,
1991: 4) teve implicações ao nível da sua legitimidade social, num momento
posterior, a suposta perda de importância relativa da instituição escolar face
a outras instâncias educativas parece, contrariamente, esbarrar num crescente
acréscimo de responsabilização social e num renovado compromisso com os agentes
da actividade económica.
O curso da história também se encarregou de desmentir aquele prognóstico quando
aplicado à realidade dos países periféricos, para os quais se auguravam
alternativas de carácter não-formal. Manzoor Ahmed considerou inclusivamente
prematura a aludida ideia da perda de importância da escola apontada no
relatório Faure, acrescentando que o optimismo depositado na educação não-
formal para corresponder às necessidades de desenvolvimento tinha dado lugar,
no início da década de oitenta, a um certo desencanto, já que "seria
imprudente colocar muitas esperanças na educação não-formal" (Ahmed, 1983:
38). Mesmo nos países de capitalismo avançado, as mutações no campo económico
colocaram na ordem do dia o papel central da escola na promoção da excelência,
da eficácia, da eficiência, da competitividade, da produtividade, entre outros
aspectos da racionalidade económica (cf. Afonso, 1998), quando se começaram a
acentuar as tensões e os desequilíbrios não reguláveis pelas estruturas e pelas
lógicas do mercado.
Não se tendo propriamente assistido à tendência de "desformalização"
(e à "dessacralização") da escola, é, no entanto, inegável que se
caminhou para a "diversificação" de contextos e de processos de cariz
educativo. Num certo sentido, a perda de fulgor do modelo de socialização que
vigorou na modernidade, associada à pulverização das experiências nos vários
contextos e sítios do quotidiano (cf. Palhares, 2008), faz-nos pensar, na
esteira de Touraine (1998), que de facto há muito se assiste a um movimento de
desintitucionalização social (ou o declínio do "programa
institucional", de que nos fala Dubet, 2002), e muito particularmente da
escola. Entretanto, aguça-se a nossa curiosidade sociológica quando constatamos
que as condições sociais e laborais das famílias têm vindo a acentuar o recurso
à institucionalização quotidiana de crianças e de jovens, cujas respostas
sociais se diversificam, seja no âmbito da organização escolar, seja em
contextos periféricos de natureza não-escolar.
1.3. A educação não é neutra: contextos culturais e aprendizagens
significativas
Outros autores deram o seu contributo para o desenvolvimento de uma atmosfera
crítica em relação ao papel da escola na reprodução das estruturas de poder e
de conhecimento nas sociedades capitalistas, ora acentuando o diagnóstico da
crise da educação, ora inspirando a procura de alternativas à educação escolar,
ora ainda procurando sedimentar a ideia de uma educação significativa enraizada
nos sentidos educativos que se entrelaçam no quotidiano das pessoas. Por
exemplo, as obras clássicas de Bourdieu & Passeron (s/d.; 1990) revestem-se
de um potencial heurístico não despiciendo quando se investe na compreensão da
problemática da educação não-escolar, eventualmente com maior acuidade no que à
educação informal, ou educação difusa, ou "incidental learning" diz
respeito (cf., entre outros, respectivamente, Pain, 1990; Trilla Bernet, 1998;
Grandstaff, 1976). A noção de capital cultural, cuja posse diferenciada pelos
alunos permite a proximidade ou o afastamento em relação à cultura escolar e a
consequente tradução em distintas probabilidades de sucesso nos percursos
individuais de escolarização, sendo para aqueles autores resultado de um
processo de interiorização subtilmente estruturado em contextos e processos
exteriores à escola, não deixa indiferente o investigador sempre que se
confronta com a multiplicidade de recursos educativos mobilizáveis e
mobilizados na periferia da escola, acedidos pelas famílias para quem a
organização escolar se revela educativamente incompleta. No fundo, obedecendo
ou não a estratégias previamente delineadas, os alunos de origens sociais mais
favorecidas constroem o seu habitus através da naturalização das disposições e
experiências balizadas pelas suas estruturas de acção, sendo estas
potenciadoras de um vasto repertório de modalidades extra-escolares, de
práticas de refinamento do gosto por um determinado tipo de expressões
artísticas e culturais (cf. Bourdieu, 1979), da sofisticação dos consumos e dos
lazeres, das viagens e do turismo cultural, entre outro tipo de práticas
distintivas6. As possibilidades educativas que aqui se vislumbram, mais do que
um mero complemento ou suplemento à educação escolar representam uma matriz de
aprendizagens significativas com evidentes vantagens na consolidação das
trajectórias escolares e profissionais desses alunos.
O desafio de repensar a escola a partir do exterior, pelo menos do ponto de
vista reflexivo, remete-nos de imediato para uma das obras centrais de Paulo
Freire, Pedagogia do Oprimido, também ela surgida (1970) nos alvores do período
de efervescência crítica que se estendeu à generalidade das estruturas sociais,
não fugindo a escola à regra, sendo esta particularmente visada no que respeita
à sua pretensa neutralidade e democraticidade. Não estranha, por isso, que
Paulo Freire (1972: 193) tenha assumido como pressuposto básico o de que
"a educação não pode ser neutra"
7
, o que significava denunciar a educação como "domesticação", quer
dizer, a educação como um poderoso instrumento de alienação e controlo social,
pois ao impor a mistificação do mundo impedia o sujeito da descoberta e da
invenção do conhecimento. Consequentemente, o ponto nodal da sua crítica
situou-se nos processos e nas relações pedagógicas que alimentam a
"educação para a domesticação", na medida em que "os problemas
de base da pedagogia não são estritamente pedagógicos, mas antes políticos e
ideológicos" (Freire, 1976: 72).
Associada a esta constatação emerge uma das noções mais popularizadas do
pensamento de Paulo Freire, designadamente a "educação bancária", a
partir da qual se pretende ironicamente ilustrar o carácter
"antidialógico" da relação educativa, em que, por um lado, ao aluno
se reserva um lugar passivo portanto objecto da acção educativa, como se um
mero recipiente de conhecimento se tratasse
8
; e por outro lado, o professor/o educador erige-se como o único detentor da
realidade e como tal é investido da função de transmissão dos saberes que ele
julgar pertinentes para a dócil plateia dos alunos/educandos. A ênfase que
Freire coloca no diálogo é justamente para que se consiga transformar o sentido
da relação pedagógica, ao aceitar-se, numa base de respeito mútuo, que ninguém
é soberano no capítulo do saber, pois educadores e alunos partilham
simultaneamente a condição de sujeito-objecto do conhecimento ao trabalharem
uns com os outros.
Do legado freireano releva-se uma metodologia da acção pedagógica que granjeou
um assinalável apreço na morfologia dos programas de educação não-formal, assim
como implicitamente nos reconduz para a importância da relação do sujeito com o
mundo que o rodeia, a partir da qual procura o sentido da transformação social
pelas aprendizagens significativas do seu quotidiano. Dá-se, por conseguinte,
relevo aos contextos e processos de experiência social, nos quais se partilha o
conhecimento e se (re)descobre e compreende criticamente a realidade, o que
pode constituir, particularmente para "os que não têm voz" (os
oprimidos), uma possibilidade para o desenvolvimento da consciência de que a
transformação social é possível, desde que os sujeitos se
"conscientizem" que têm poder para o fazer, a partir do seu lugar no
mundo.
1.4. A desescolarização da sociedade
Mas se a ambiência da época favoreceu a emergência de uma perspectiva holística
da educação (global e permanente), não menos importante se revelou o
aparecimento contemporâneo de propostas de desinstitucionalização da escola
ainda mais radicais, subscritas, sobretudo, por Ivan Illich (1988) e secundadas
por Everett Reimer (1976). Estes autores destacaram-se pela partilha da
convicção "de que a maioria dos homens tem seu direito de aprender cortado
pela obrigação de frequentar a escola" (Illich, 1988: 17).
A apologia da "desescolarização das sociedades escolarizadas" surge
"como primeira fase dum programa mais geral de inversão das
instituições" (Illich, 1973: 30), já que para o autor a escola estaria por
detrás destas instituições e como tal funcionaria como estrutura reprodutora e
sancionadora da sociedade capitalista (cf. Canário, 2005). A adopção de uma
posição relativizadora das diversas experiências escolares tende a subestimar
mesmo aquelas que constituíram para os indivíduos algo de positivo: "A
maioria dos homens no mundo sabe que está irremediavelmente excluída dum ensino
satisfatório. Outros, que passaram por uma boa' escola, sabem que sofreram
prejuízos. E finalmente a maior parte daqueles que, duma certa maneira, tiveram
algum proveito com a escola, sabem que não foi lá que aprenderam o que os
ajudou no respectivo trabalho e também que a contribuição da escola para o
êxito deles não resultou provavelmente do conteúdo do ensino" (Illich,
1973: 30; aspas no original).
Recusando liminarmente a procura de soluções para a "crise do ensino"
baseadas em mais actividades escolares, a "inversão da estrutura
institucional" emerge, pois, como o passo metodológico para se
encontrarem, no seio da "convivialidade", as alternativas
educacionais necessárias para se instituir o novo tipo de sociedade. Conquanto,
as propostas avançadas por Illich para superar essa crise mais não são do que
as idealizadas no seu projecto social de ensino livre e de autonomia na decisão
quanto à formação a seguir.
Objectivando a criação de "teias de aprendizagem" (learning webs)
qual prenúncio para a actual sociedade em rede! para superar as
representações e o modo de pensar escolarizados dos indivíduos, a nova
configuração educativa apresentava-se, assim, não burocratizada e hierárquica,
tal qual como "canais" que possibilitariam o acesso aos recursos
("coisas", "modelos", "colegas" e
"adultos") de aprendizagem. Esta utopia pretendia, por conseguinte,
libertar o ser humano da pressão (escolar) da aprendizagem e (re)ligar a
sociedade ao ambiente pelo desenvolvimento de novas "relações educadoras
interumanas" (Illich, 1976: 23).
Efectivamente, se o curso da história se encarregou de enfraquecer o vigor das
propostas de Illich, remetendo-as, por assim dizer, para as prateleiras das
extravagâncias educacionais, contudo, face ao escrutínio permanente a que tem
sido submetida a educação escolar e ao inevitável diagnóstico (sempre renovado)
de crise da escola, não raras vezes se assiste à sua recuperação como "uma
solução que desvincule a educação das decisões políticas e culturais
arbitrárias, apenas exequíveis em espaços e tempos isolados (e isoláveis) do
mundo da vida" (Afonso, 2001: 29; itálico no original). Não se pense,
porém, que a cristalização da ideia de um suposto esgotamento da escola apenas
se alimenta das representações dos deserdados da escola, para quem esta
constituiu uma "violência simbólica" (Bourdieu & Passeron, s/d),
ou das posições de determinados sectores sociais que sustentam, sobretudo por
razões económicas, ser anacrónica a função do estado educador. Sendo a escola
cada vez mais pressionada para cumprir novos mandatos educativos para além dos
tradicionalmente atribuídos (cf., entre outros, Afonso, 2003; Nóvoa, 2006), o
que contribui, na impossibilidade de os satisfazer, "para que os tempos e
os espaços da escolarização sejam vividos como tempos e espaços permanentemente
deficitários" (Correia & Matos, 2001: 92), não se estranha, por isso,
e correlativamente, ver a instituição escolar acossada pelo estigma da
incompetência, favorecendo, a fortiori, os argumentos dos que sustentam a
necessidade de se desenvolver um mercado (escolar) de oportunidades educativas
e formativas alternativo à escola pública.
Contrariamente às intenções de Illich, não só não se caminhou rumo a uma
sociedade desescolarizada como inclusivamente se acentuou o predomínio da
escola e da educação escolar no panorama educativo, possivelmente configurando
uma espécie de fenómeno de sobrescolarização do quotidiano das pessoas. E
talvez, nesta óptica, tenhamos de lhe reconhecer algum mérito, por ter sido dos
primeiros a avançar com a ideia de pedagogização da sociedade (cf. Gadotti,
1995), para denunciar os efeitos da escolarização no sustento da crença do
consumo ilimitado e, num certo sentido, da omnipresença da escola em todas as
esferas da vida social. Porém, a realidade encarregou-se de não dar quaisquer
hipóteses à "inversão das instituições", nem muito menos deu
expressão ao domínio da "convivialidade" como matriz de interacção
social. A tendência para a desintitucionalização como um dos traços mais
característicos do quadro actual da modernidade (cf. Touraine, 1998), assim
como a referida "pedagogização crescente da vida social" (cf. Afonso,
2001; 2003) ou na sugestiva formulação de Basil Bernstein (2001: 13), de
Sociedade Totalmente Pedagogisada ', reactualizam, com alguma ironia, alguns
dos sentidos daquela utopia, muito embora não seja crível, a médio e a longo
prazo, avançar com a hipótese do fim da escolarização. Porém a acumulação de
indícios no campo educacional e do saber aconselham alguma prudência analítica
e preditiva, concretamente no que se refere ao ensaio de algumas soluções
ligadas ao uso das novas tecnologias da informação e da comunicação (por
exemplo, e-learning, e-teaching, e outras cambiantes decorrentes do uso da
internet e da exploração do ciberespaço), assim como à recuperação de algumas
modalidades de ensino doméstico (homeschooling), fenómeno em franca expansão
nos Estados Unidos da América entre famílias numerosas e de classe média, e
normalmente conotadas ideologicamente com os sectores políticos e religiosos
mais conservadores (cf. Apple 2003; Torres Santomé, 2003).
Aceitando a realidade tal qual ela se impõe, dando expressão a lógicas de acção
social de cariz mais reprodutor do que transformador, não espanta, por isso,
que sobre as brechas de uma instituição em crise de legitimidade se voltem a
modelar as formas de um "novo escolocentrismo" (Correia & Matos,
2001). E se este nos situa no advento de novas ideologias educativas, então
neste plano não podemos deixar de sublinhar, com Afonso (2001: 33), a
disseminação da ideologia da aprendizagem ao longo da vida, que "numa
aparente valorização da educação, pretende, em última instância,
responsabilizar os indivíduos pela sua própria informação, formação e
qualificação, em função de objectivos que pouco ou nada têm a ver com o seu
desenvolvimento pessoal e intelectual numa dimensão crítica e
emancipatória". A partir do momento em que se difunde na política e na
economia a retórica do "lifelong learning/education", instala-se
concomitantemente algum sincretismo no campo educativo, com particular acuidade
na significação do conceito de educação, "sendo [este] progressivamente
substituído pelo conceito de aprendizagem ao longo da vida e pelos seus
derivados qualificações, competências, habilidades" (Lima, 2009: 8). E
do mesmo autor se acrescenta, que em vez de se "reconhecer a
substantividade da vida ao longo da educação e das aprendizagens permanentes
dos indivíduos", em seu lugar "o curso da vida [é] reduzido a uma
interminável sucessão de formações e de aprendizagem úteis e eficazes"
(Lima, 2007: 10). Assiste-se, igualmente, à recuperação acrítica dos modos
educacionais formulados por Coombs & Ahmed (1975), redescobrindo-se
particularmente a educação não-formal como ferramenta utilizável no apoio ao
crescimento económico e na promoção da cidadania activa (Rogers, 2004).
Sintomático desta tendência é a apropriação conceptual dos três modos
educacionais feita no Memorando sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida,
publicado em 2000 pela Comissão das Comunidades Europeias, surgindo agora o
termo aprendizagem onde antes existia educação9. Aliás, a popularidade
granjeada pela categorização de Coombs & Ahmed (1975) há muito que se
encontra em défice heurístico, sobretudo quando se constata a diversidade e a
complexidade de contextos e de situações educativas. Espera-se que o debate
sobre esta problemática recrudesça, até porque, esporadicamente, vêm sendo
propostas algumas soluções para ultrapassar uma certa dificuldade em alocar os
diversos fenómenos educativos naquela estrutura conceptual. A necessidade de se
contextualizar a educação, consoante os sítios e os actores sociais e de se
promover a coexistência entre as especificidades educativas, encontra, por
exemplo, em La Belle (1981, 1982) e Rogers (2004) pistas interpretativas a não
desprezar.
2. A educação escolar para além da escola e o seu regresso
As lógicas de funcionamento e de organização das escolas públicas do 1º ciclo
cristalizaram durante muito tempo uma concepção de educação muito circunscrita
a orientações curriculares formalmente definidas, à gestão dos espaços e tempos
escolares mais dependente dos constrangimentos locais impostos por uma procura
diferenciada de escolarização, à prevalência das aprendizagens nas áreas de
conhecimento tidas como nucleares, ao ensaio, aqui e ali, de experiências
lúdico-didácticas; enfim, e sem sermos redundantes, a uma concepção de educação
muito presa à tradicional forma escolar (cf. Vincent, Lahire & Thin, 1994).
A sala de aula, mais do que a escola na sua globalidade, impôs-se como o
contexto educativo de referência, o sítio onde se constroem e reconstroem as
identidades, se atribuem os papéis institucionais e se exercem os respectivos
ofícios escolares.
Se para muitas famílias a educação escolar sempre coexistiu com investimentos
complementares de natureza não-escolar no percurso educativo dos seus filhos,
não se colocando, por conseguinte, outros constrangimentos senão aqueles que
decorrem da gestão (complexa) das rotinas pós-lectivas das crianças, para a
maioria dos casos o principal aspecto crítico da escola pública residia
justamente na estruturação dos tempos lectivos. Até à implementação das
recentes políticas educativas para o 1º ciclo (designadamente o alargamento do
horário das escolas, a implementação do "regime normal", o
desenvolvimento das actividades de enriquecimento curricular e de complemento
curricular, entre outras10) os horários de funcionamento da escola pública,
tanto em "regime duplo" como em "regime normal", para além
de introduzirem condicionalismos na gestão das diversas disponibilidades
familiares (sobretudo laborais e económicas), contribuíram grandemente para que
se naturalizasse a ideia de que aos espaços e aos tempos de educação escolar
deveriam suceder outros tempos e outros espaços, não necessariamente
educativos, mas que assegurassem fundamentalmente a guarda das crianças em
horário pós-escolar e, já agora, que garantissem o acompanhamento dos trabalhos
escolares fora da escola
11
. À preocupação da escolha da escola, do professor e da turma, acrescentava-se
também a preocupação com a selecção de uma instituição que cumprisse, pelo
menos, aqueles dois requisitos.
Após alguma turbulência inicial nas escolas públicas do 1º ciclo, decorrente da
implementação e generalização da designada "escola a tempo inteiro",
foi notória não só uma alteração significativa no quotidiano dos actores e das
organizações escolares mas igualmente no reposicionamento da própria
instituição escolar no capítulo das aprendizagens e das actividades culturais.
A adopção gradual desta medida despoletou toda uma série de tensões com a
comunidade educativa, sobretudo com aquelas instituições e contextos que tinham
emergido pela capacidade de gerar "respostas sociais" nos espaços e
nas oportunidades educativas não exploradas pela escola. Entre os que mais se
ressentiram com estas mutações da escola pública encontramos os Centros de
Actividades de Tempos Livres (CATL), popularmente reconhecidos pelo acrónimo
ATL, tendo apenas subsistido aqueles que se conseguiram recompor nas franjas
dos horários lectivos das escolas públicas e reorganizar a sua acção mais em
torno de funções logísticas do que em torno de funções de carácter educativo.
Se, por um lado, o seu apogeu na década precedente se inscreveu numa tendência
de valorização dos domínios educativos não-escolares, por outro lado, também
foi possível constatar nas suas múltiplas articulações com o espaço escolar um
papel de complementaridade, uma espécie de assessoria educativa não-oficial, no
fundo, o prolongamento do escolar para além da escola. Os CATL assumiram,
assim, a continuidade do processo educativo, nomeadamente no aprofundamento e
na sedimentação dos conteúdos adquiridos no horário escolar e na oferta de
modalidades e actividades educativas em domínios pouco desenvolvidas, ou mesmo
ignorados, pela escola pública.
A estrutura de funcionamento da generalidade das escolas do 1º ciclo vinha
colocando às famílias o problema da compatibilidade horária e a consequente
preocupação com a guarda das crianças nos tempos e nos períodos extra-lectivos.
A procura de uma solução adequada aos mais variados quadros de vida implicava,
quase sempre, a concretização de uma diversidade de arranjos entre os
constrangimentos familiares e a oferta de contextos e de actividades de tempos
livres existentes na comunidade. As desarticulações entre o funcionamento da
escola e as necessidades das famílias consolidaram durante muito tempo uma
espécie de fronteira imaginária entre o escolar e o não-escolar, com estatutos
e valorações distintos, sobrepesando nesta relação a omnipresença quotidiana do
primeiro. Mas a maior implicação prende-se, a nosso ver, com a capacidade
diferencial que as famílias dispõem para o investimento nas actividades e
aprendizagens não-formais e informais. Nada haveria a problematizar se a ampla
literatura sociológica e educacional não tivesse já demonstrado, ad nauseam, a
importância das aprendizagens e das experiências sociais externamente
produzidas e que na escola tendem a repercutir-se positivamente no sucesso
escolar dos alunos.
Quadro 1 - Actividades semanais de um CATL, em Braga, durante o período escolar
Aproveitando os tempos e os períodos não-lectivos deixados em aberto pelas
escolas do 1º ciclo, os CATL instituíram-se, nas últimas décadas, como
"resposta social" às aludidas necessidades das famílias, propiciando
não só os serviços de alimentação, transporte e acolhimento das crianças, como
também o acompanhamento na realização dos trabalhos de casa (vulgo deveres) e a
oferta de um leque de actividades não muito distante do espectro curricular
vigente na escola básica.
O lançamento e a gradual implementação da ideia de "escola a tempo
inteiro" veio, entretanto, baralhar o modo como se vinham distribuindo as
possibilidades na "cidade educativa", assim como a alterar as
relações tecidas no quotidiano entre os estabelecimentos de ensino do 1º ciclo
e as outras instituições educativas. Orientada para "a concretização do
objectivo de colocar as escolas ao serviço da aprendizagem dos alunos"
(cf. Relatório do Orçamento do Estado para 2006, p. 205), esta medida política
acentuou ainda mais a centralidade social da instituição escolar, o que se
traduziu, consequentemente, num esvaziamento das funções anteriormente
acometidas àquelas instituições, exigindo delas um esforço de redefinição dos
seus lugares e papéis no processo educativo das crianças e dos jovens. No
fundo, as transformações em curso sugerem a tendência para a formalização do
não-formal e do informal, no sentido em que as novas temporalidades do espaço
escolar, alicerçadas em larga medida na gestão de novas parcerias e protocolos
locais (de onde se destaca o papel central das autarquias locais), se
consubstanciaram pela apropriação de actividades, de práticas e de experiências
exteriores de reconhecido valor educativo.
Assalta-nos a metáfora da escola como eucalipto educativo: o enfrentamento da
propalada crise da educação escolar parece querer esboçar-se efectivamente com
mais escola (cf. Correia & Matos, 2001), só que agora capitalizando e
absorvendo para o seu interior algumas das iniciativas mais populares de
educação não-escolar. Mesmo sendo planificadas preferencialmente com as
autarquias e contando com várias entidades promotoras (autarquias locais,
associações de pais e de encarregados de educação, instituições particulares de
solidariedade social e os próprios agrupamentos de escolas cf. Despacho n.º
14 460/2008, de 26 de Maio), tenderá sempre a prevalecer nas actividades de
enriquecimento curricular uma lógica centrípeta na gestão e no reforço da
cultura escolar, de uma educação na e paraa escola e não de uma educação com e
para além da escola.
É certo que por mais actividades curriculares ou de "enriquecimento
curricular" que a escola pública disponibilize, num suposto projecto
educativo de qualidade, haverá sempre lugar à procura e à construção de
percursos de diferenciação cultural e social. A "escola a tempo
inteiro" pode, de facto, representar uma medida de democratização no
acesso a aprendizagens, saberes e actividades culturais, desportivas e
artísticas, que antes estavam arredadas dos espaços e dos tempos escolares e
apenas preenchiam o dia-a-dia de alguns grupos sociais. No entanto,
questionamo-nos se o tempo excessivo de presença na escola e nos espaços usuais
de actividade lectiva não subverterá a filosofia que parece estar subjacente ao
projecto da "escola a tempo inteiro". Ou seja, joga-se na articulação
do formal e do não-formal a construção de uma ideia de escola que possibilite o
desenvolvimento de experiências e de aprendizagens significativas de elevado
potencial educativo. Na sua ausência, este projecto poderá resultar numa
overdose de escola, ou "o risco de hiperescolarização da vida das
crianças" (Cosme & Trindade, 2007: 17), com consequências
imprevisíveis nos futuros percursos escolares dos alunos.
3. O fora e o dentro do não-escolar na escola
Mas a implementação da "escola a tempo inteiro" estendeu-se a outros
níveis de ensino, operacionalizando-se através de um conjunto de regras e
princípios orientadores visando a organização da vida das escolas, mais
especificamente a "plena ocupação dos tempos escolares" (cf. despacho
n.º 17 387/2005, de 12 de Agosto). Dispensando nesta reflexão uma análise à
forma e ao pormenor deste normativo, a nossa inquietação sociológica não deixa,
porém, de o tomar como alavanca problematizadora para continuar a repensar a
escola pública na actualidade. Um dos aspectos que no imediato dele ressalta
prende-se com a imposição de novas lógicas de uso do tempo escolar, mais
especificamente aquelas que formalmente se apropriam e comprimem os tempos de
sociabilidades juvenis. Os períodos não-lectivos no quotidiano escolar tendem a
funcionar, igualmente, como espaços de transacção cultural e simbólica entre os
jovens, ou seja, os sítios que estes mais tendem a preferir no contexto da
escola e nos quais se partilham, por entre a informalidade das relações entre
pares, saberes e aprendizagens significativas. Ora, a ocupação plena dos tempos
escolares, em última instância, impedirá que a expressividade juvenil se
manifeste para além dos limites do sujeito enquanto aluno, assim como as demais
práticas educativas situadas num plano de informalidade tenderão a
desenquadrar-se das dinâmicas programadas e formalizadas de aprendizagem.
Não menos importante, nesta sequência, é a justificação para as interrogações
sobre o sentido de ir e permanecer na escola, quando se pressente que o peso
constrangedor da estrutura escolar tende a subjugar as performatividades
juvenis (Pais, 2005: 65) e quando entre os jovens se vai cristalizando a ideia
de uma instituição com um futuro volátil. E mais premente se torna o querer
saber porque se adiciona ao quotidiano escolar toda uma variedade de
actividades não-escolares, sem que verdadeiramente se perceba como tudo isto se
sintetiza numa educação cidadã. Contrariamente ao sentido daquelas
performatividades, isto é, "sinais de inquietação em relação a sistemas
cerrados' que [lhes] ensombram o futuro" (Id. Ibid.; aspas no original),
uma outra performatividade parece impor-se no quadro mais vasto das relações
sociais e que na escola se vem expressando pela adopção da ideologia das
competências, na construção de percursos de individualização da excelência, na
ênfase conferida aos resultados da aprendizagem e no modo de regulação dos
processos e das práticas educativas.
O quadro seguinte adensa ainda mais o nosso espectro problematizador. A
informação nele contida provém de uma turma que frequentou o 6º ano numa sede
de um agrupamento de escolas no concelho de Braga, cujos resultados escolares
durante o 2º ciclo a classificaram como a melhor turma da escola
12
. Os resultados finais do 2º ciclo, sintetizados nas segunda e terceira
colunas, mostram-nos que metade da turma se situa num nível médio a rondar o
quatro (4) (Média 5), tendência esta que sobe se utilizarmos a média das sete
disciplinas (Média 7). Um quarto dos alunos obteve uma média global igual ou
superior a 4,6. Frequentando, predominantemente, os tempos lectivos da manhã, a
grande maioria dos alunos tem origens sociais e culturais acima da média, sendo
os seus progenitores enquadráveis maioritariamente nas profissões intelectuais
e científicas e nas profissões liberais. Na composição desta turma interferiu,
em grande medida, a existência de um terço dos alunos com um percurso anterior
de formação musical, que lhes permitiu inscrever-se no "ensino articulado
de música". Sendo-lhes permitido abdicarem de algumas disciplinas do
currículo (Educação Musical, Educação Visual e Tecnológica e Educação Física
substituídas pela Formação Musical, Classe de Conjunto e Instrumento), porém,
estes alunos optaram pela sua frequência (à excepção da Educação Musical), o
que acarretou um aumento do volume das actividades escolares e extra-escolares
e consequentemente menor disponibilidade para as convivialidades e lazeres
juvenis. Do levantamento que fizemos junto dos directores de turma, este grupo
de alunos ostentava também o maior número de actividades extracurriculares
frequentadas fora e dentro da escola.
Quadro 2 Actividades extracurriculares frequentadas por uma turma do 6º ano
A frequência de actividades extra-curriculares no espaço escolar tende a
constituir uma prática mais característica das raparigas, concentrando-se os
rapazes, predominantemente, no exterior. Aqui o desporto e a actividade física
aparecem destacados nas rotinas dos alunos, observando-se entre os rapazes uma
preferência pelas modalidades colectivas (futebol e andebol) e as raparigas
pela natação. A frequência de escolas especializadas de línguas (essencialmente
a língua inglesa) bem como a catequese, representam contextos externos de
educação e aprendizagem não-formais de um número considerável de alunos, ambos
articulando-se e complementando-se com as lógicas curriculares prevalecentes no
interior da escola. Perante a evidência dos dados, uma vez mais sublinhamos a
ideia de escola interceptada por múltiplas lógicas e racionalidades educativas,
um "entreposto cultural" onde se entrecruzam o escolar e o não-
escolar, o que lhe confere um carácter simultaneamente híbrido e holístico.
Mas estes dados não deixam de igual modo de nos inquietar, não tanto pela
clareza da informação, mas pela agenda investigativa que comporta e suas
correlativas interrogações (ainda) sem resposta: não sendo visível, numa
primeira leitura, uma relação entre os resultados escolares e a frequência de
actividades extracurriculares destes alunos, haverá então algum quadro
explicativo onde estas duas variáveis se associem para dar sentido a essa
eventual relação? Que variáveis se interporão entre a constatação de bons
resultados escolares e a grande variedade de modalidades não-formais
frequentadas? Numa turma onde se denota alguma homogeneidade cultural e social,
como interpretar a gestão diferenciada dos interesses e dos recursos educativos
no quotidiano dos alunos? Qual a autonomia decisória dos jovens na escolha das
opções não-escolares e como é que isto se articula com as culturas e
identidades juvenis? Propiciará a escola articulações profícuas entre as
experiências escolares e as não-escolares, ou tal desiderato estará apenas
inscrito nos projectos e nos "contextos subjectivos e trajectivos"
(Pais, 2005: 65) dos jovens? Que predisposições estarão implícitas no
investimento em modalidades não-formais, quando o debate sobre a
"crise" da escola reactualiza, a cada passo, a inevitável importância
das componentes tradicionais do currículo? Estarão as actividades
extracurriculares mais subjugadas a lógicas educativas ou meramente a lógicas
de ocupação dos tempos livres, coincidentes com o horário laboral dos
familiares?
Uma resposta sustentada a estas questões carece ainda de um agendamento e
ultrapassa certamente o âmbito desta reflexão. Porém, o estudo das relações
entre o escolar e o não-escolar não pode prescindir de um olhar sociológico que
incida sobre os seus efeitos numa óptica de democratização social, pois a
combinação estratégica e diferencial entre ambos os subcampos, desenvolvida
sobretudo pelas famílias, poderá potenciar, a médio prazo, a expressão de novas
formas de desigualdade educativa e cultural, que a instituição escolar não
conseguirá contrariar com medidas do tipo "escola a tempo inteiro" e
"ocupação plena dos tempos escolares". O reconhecimento da educação
na transversalidade das múltiplas experiências de vida do sujeito, enfatiza,
igualmente, a necessidade de uma redobrada atenção sobre um objecto que
quotidianamente se molda, flui e escapa aos actuais espaços-tempo da escola, o
que significa, em última instância, partir para a compreensão dos sentidos que
emergem e se actualizam na relação entre actores e instituições sociais e
educativas.
Notas
* Trabalho desenvolvido no Centro de Investigação em Educação (CIEd) da
Universidade do Minho.
1 Pelos Despachos nºs 16 795/2005, de 3 de Agosto (alargamento do horário
das escolas do 1º ciclo), e 17 385/2005, de 12 de Agosto (ocupação dos tempos
escolares), promulgaram-se as orientações constitutivas do projecto político da
escola a tempo inteiro. Todavia, face ao suposto sucesso na generalização
do Ensino do Inglês nos 3.º e 4.º anos do 1.º ciclo do ensino básico (Despacho
nº14 753/2005, de 5 de Julho), é o próprio Ministério da Educação a reiterar
que este programa assume claramente o papel de primeira medida efectiva de
concretização de projectos de enriquecimento curricular e de implementação do
conceito de escola a tempo inteiro (cf. Despacho nº 12 591/2006, de 16 de
Junho). No fundo, este conceito remete-nos para a ocupação educativa dos
alunos, de forma plena, ao longo do tempo escolar e no espaço escolar (Pires,
2007: 78). Sobre este assunto veja também o ensaio de Cosme & Trindade
(2007).
2 Refira-se que o autor também sublinha que esta predisposição em relação à
educação não-formal não é uniforme em todos os contextos em que a mesma foi
experienciada, observando-se inclusivamente a situação oposta: that the
concepts which lie behind the word formal' in education are the enemy, and
that non-formal' is the celebration of liberation, throwing off the shackles
of formality which have for so long prevented education from being education
(Rogers, 2004: 4; aspas no original).
3 Segundo Bhola (1983: 49), a preocupação subjacente à expressão de educação
não-formal encontra eco noutras fórmulas precedentes, tais como: éducation de
base, éducation fondamentale, alphabétisation fontionnelle, éducation de
adultes, éducation extrascolaire, éducation de la deuxième chance, formation
continue, éducation récurrente, éducation parascolaire et éducation
permanente. Igualmente Radcliffe & Colletta (1989: 1838) sustentam que en
los años 50, los informes de la UNESCO trataban sobre los mismos temas en
términos de desarrollo comunitario y educación de la comunidad' y hablaban de
alfabetización funcional' en los años 70 (aspas no original). Sobre a
reduzida popularidade da expressão de educação não-formal nos países ditos
desenvolvidos, não deixa de ser significativa a constatação de Smith (1996):
In many northen countries the notion of non-formal education is not common in
internal policy debates - preferred alternatives being community education and
community learning, informal education and social pedagogy.
4 Socorrendo-se de um estudo publicado no final da década passada por Roger
Boshier sobre o relatório Faure, Licínio Lima (2003: 131) sugere que a
ambiguidade sobre o uso indiferenciado destas noções, tanto ali como agora,
constitui afinal um desafio que ainda não se logrou ultrapassar: [Boshier]
chama a atenção para o facto de o conceito central ali adoptado resultar de uma
resposta ao fermento' dos anos 60 e ainda para o uso dos conceitos de educação
e de aprendizagem praticamente como sinónimos, seja ao longo do livro, seja
ainda hoje em muitos lugares do mundo (aspas no original).
5 Debruçando-se sobre a emergência no seio da UNESCO de uma nova orientação
designada de educação permanente, Moacir Gadotti (1995: 271) concluiu que esse
novo conceito da educação era extremamente amplo, mas era em sua essência uma
educação para a paz. Depois de mais de meio século de guerras mundiais, a todos
parecia necessário que a educação fosse um baluarte da paz (itálico no
original).
6 Como explicitam Bourdieu & Passeron (1990): Le privilège culturel est
manifesté lorsqu'il s'agit de la familiarité avec les oeuvres que seule peut
donner la fréquentation régulière du théâtre, du musée ou du concert
(fréquentation qui n'est pas organisée par l'École, ou seulement de façon
sporadique).
7 Interrogando-se sobre a validade do pressuposto da neutralidade educativa,
Paulo Freire (1972: 194) pôs as questões nestes termos: Nous déclarons que
l'éducation est neutre, comme si elle n'était pas une obligation humaine, comme
si les hommes n'étaient pas êtres insérés dans l'histoire, comme si le
caractère téléologique de la praxis pédagogique n'était pas le facteur qui rend
sa neutralité impossible.
8 Para Paulo Freire (2002: 58) a educação se torna um ato de depositar, em
que os educandos são os depositários e o educador o depositante. Em lugar de
comunicar-se, o educador faz comunicados' e depósitos que os educando, meras
incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem (aspas no original).
Para Lima (1999: 34), a crítica de Paulo Freire à educação bancária
representa um dos mais violentos e eloquentes ataques à organização
burocrática e à racionalidade técnico-instrumental em educação.
9 Neste documento o termo não-formal aparece dezassete vezes associado a
noção de aprendizagem e apenas duas vezes relacionado com a noção de educação.
Numa comunicação subsequente da Comissão, intitulada Tornar o Espaço Europeu de
Aprendizagem ao Longo da Vida uma Realidade, saída em 2001, enquanto que a
aprendizagem não-formal é utilizada trinta e sete vezes a educação não-formal
apenas é referida uma única vez.
10 De entre as principais referências normativas que configuram as actuais
políticas públicas para a escola do 1º ciclo salienta-se: o Despacho nº14 753/
2005, de 5 de Julho criação do programa de generalização do ensino de inglês
nos 3º e 4º anos do 1º ciclo do ensino básico; o Despacho nº 16 795/2005, de 3
de Agosto define as normas a observar no período de funcionamento dos
estabelecimentos de educação pré-escolar e 1.º ciclo do ensino básico; o
Despacho nº 12 591/2006 de 16 de Junho e o Despacho nº 14 460/2008 de 26 de
Maio definem as normas a observar no período de funcionamento dos
respectivos estabelecimentos de ensino bem como a oferta das actividades de
enriquecimento curricular e de animação e apoio à família.
11 Sobre o trabalho escolar dos alunos para além da escola, no que se reporta
à realidade francesa, consultar Glasman (1992), Glasman & Besson (2004).
Recentemente, sobre a realidade portuguesa, sublinhamos a pesquisa de Costa,
Neto-Mendes & Ventura (2008).
12 Se considerarmos as oito turmas do 6º ano existentes na escola, esta turma
apenas não foi a melhor a Língua Portuguesa e a Educação Física. Entretanto, os
resultados das Provas de Aferição do ano lectivo de 2008/2009 vieram reforçar
este cenário, destacando-se no maior número de níveis A a Língua Portuguesa e a
Matemática: dos catorze alunos que obtiveram simultaneamente o nível A às duas
disciplinas, oito pertenciam a esta turma.