Educar, Curar, Salvar: Uma Ilha de Civilização no Brasil Tropical
NASCIMENTO, Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do (2007). Educar, Curar, Salvar:
Uma Ilha de Civilização no Brasil Tropical. Maceió: Editora da Universidade
Federal de Alagoas.
NASCIMENTO, Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do (2008). Fontes para a História
da Educação: Documentos da Missão Presbiteriana dos Estados Unidos no Brasil.
Maceió: Editora da Universidade Federal de Alagoas [Inclui CD].
José António Afonso
Instituto de Educação, Universidade do Minho
Educar, Curar, Salvar é uma investigação exemplar e relança debates e
controvérsias que têm estado marginalizados na historiografia hegemónica da
educação, tanto brasileira como portuguesa. A tendência para ocultar as
dinâmicas protagonizadas por movimentos acatólicos no campo educativo marca a
agenda de investigação no Brasil e em Portugal em consonância com uma
invariante que ainda percorre os registos hagiográficos: o acentuar excessivo
da excelência em abstracto das manifestações de dissidência religiosa em torno
de uma imaginada identidade simplificadora e fixista. Ester Fraga rompe com
este duplo contexto (intelectual e ideológico) ao propor-nos uma dialéctica da
economia da experiência e da memória, ancorada no processo de construção da
liberdade, enquanto operacionalização da inscrição de cada um no seio da
comunidade. Este percurso comporta tensões, vulnerabilidades, fragilidades e
fragmentações, mas, em simultâneo, é uma enorme afirmação de luta contra o
fatalismo e a demissão, ou desresponsabilização, das populações. Ester Fraga
tem como objecto de investigação a presença dos missionários presbiterianos no
hinterland brasileiro. Aparentemente poderia ser mais um texto laudatório e
inócuo no contexto das problemáticas que marcam os protocolos de investigação
da História da Educação, mas o resultado final é justamente o contrário: um
estudo teoricamente sustentado, empiricamente estribado num amplo espectro de
documentação1 (em que o cruzamento das fontes é primacial e o recurso a
testemunhos orais se revela pertinente) e narrativamente muito bem conduzido.
Objectivamente as conclusões a que a Autora chega são valiosos contributos para
se renovar o debate no campo da História da Educação, salientemos nomeadamente
aqueles conexos com a valorização e reconhecimento de projectos educacionais
dinâmicos e democráticos e os que rompem com os julgamentos morais sobre o
protagonismo de particulares actores. Mas, e esta é uma última nota, não está
no horizonte de Ester Fraga veicular qualquer proselitismo, pelo que o
distanciamento objectivo do objecto de investigação não cerceia o objectivo
central: visibilizar diacronicamente o contributo dos presbiterianos como um
dos projectos modernizadores do Brasil.
O estudo de Ester Fraga estriba-se na disseminação dos ideais educativos
presbiterianos, enquanto "produtores de um novo modo de viver" (p.
26). Identificando com precisão a presença protestante no Brasil, vai
destacando a organização dos presbiterianos, particularmente a partir de 1896,
e focaliza-se no estudo de caso da cidade baiana de Wagner. Partindo das
estratégias de diálogo entre a cultura norte-americana e a cultura brasileira
no hinterland aproxima-se da lógica de produção e construção do modelo de
intervenção. Prevalecendo a dinâmica de um fenómeno local (ou microsociológico)
tal contudo revela-se precioso para compreender a globalidade de uma forma de
vida, de uma prática. O contexto sócio-simbólico do Brasil Oitocentista dita
que no inquérito conduzido por Ester Fraga surjam as especificidades de uma
sociedade, as particularidades de uma região e o modus vivendido projecto
presbiteriano. De forma distinta de outros territórios do Brasil, onde a
presença protestante cuidou de criar estruturas educativas seculares, o
projecto religioso de modernização balizou-se, no hinterland, em construir uma
região civilizada.
O "protestantismo de povoamento" (p. 52) está matriciado pela
dimensão evangelizadora, modelizada pela "singular combinação" '
religião, educação e saúde ' e traduzido na construção de um espaço urbano. A
trajectória deste projecto civilizacional é-nos descrita em dois registos: um
interno à própria estrutura da organização presbiteriana, e um outro, em que se
privilegia a actuação pública dos actores protestantes. Uma nota comum aos dois
registos é o agir prudente e realista dos missionários denotando um naipe de
competências antropológicas que lhes permitiam operar a tradução cultural com
pertinência pragmática (cf. 207 sq.). No âmbito organizacional poder-se-ão
enfatizar duas dimensões. Uma primeira muito ligada aos princípios e propósitos
de uma estrutura calvinista, em que, em termos operacionais, a educação era um
elemento indispensável que permitiria religar princípios religiosos e ideais
democráticos, de modo a inverter um processo de desvalorização do indivíduo, ou
seja regenerando a sociedade promover-se-ia o "bem-estar individual".
O que para os presbiterianos era crucial passava pela "prosperidade
social", com base numa identificação dos "males sociais e
espirituais". Em última estância as práticas educativas são "práticas
civilizatórias" (p. 125), já que formar o cidadão, comporta indelevelmente
a preparação para a vida racional e exemplar. Deste modo, a "ilha norte-
americana" ou a "fronteira civilizadora no Brasil Tropical" '
como foi denominada a cidade de Wagner ' era o reflexo da ordem social
presbiteriana, replicando um modelo norte-americano. Se educar significava um
registo utilitário e secular, também se declinava com intensidade como
"salvação das almas". É precisamente, esta característica do projecto
presbiteriano que se reflecte no projecto civilizador de Wagner (ver pp. 79-97
e 119-202). A segunda dimensão, traduz-se na implementação do modelo, que foi
sempre objecto de uma constante reformulação de objectivos acompanhada por
ponderações económicas que ditavam a assunção das prioridades de actuação.
Sublinhe-se que a ideia primitiva de uma "escola-fazenda" se
complexificou com uma série de dispositivos que passaram pela articulação entre
escola, igreja e hospital, em estreita consonância com a criação de
transportes, a urbanização e a arquitectura do território. O redimensionar do
projecto para o hinterland, passou indelevelmente pelo modo como os
missionários se foram inserindo no microcosmo do sertão baiano, e por extensão
na sociedade brasileira (refira-se, por exemplo as ligações com a maçonaria
(pp. 65, 96), as tensões que estiveram presentes na difusão da Bíblia (p. 93)
ou o ritmo da estratégia editorial ligada à difusão de um ideal liberal,
iluminista e anti-clerical num registo de moderação) e tendo como princípio uma
"política de auto-sustentação" (p. 193). Entroncamos, neste aspecto,
com a actuação dos agentes missionários. Destaca-se então, a questão das
relações com a Igreja Católica (que passa pela representação que os
missionários erigiam sobre as instituições de ensino), a identificação
sociológica das "camadas sociais que construíram a região" (que
passou pela "conversão dos coronéis" (p. 112) como ainda por um
diálogo com os poderes fácticos da região) e, por último, a identificação das
potencialidades e constrangimentos ao crescimento e desenvolvimento do
território (ou seja, um minucioso conhecimento do contexto geográfico,
económico e social), que permitia estabelecer as prioridades de construção de
uma estrutura (cf. p. 103 sq.). Neste processo de afirmação de posições não se
deverá escamotear as auto-representações dos missionários que tinham presente a
"educação como estratégia missionária" (p. 186; cf. p. 166 sq.),
enquadrada numa óptica de protestantismo evangelizador ' diferente, no contexto
brasileiro, de outros protestantismos, denominados, por Ester Fraga, de
secularizados. O projecto de Ponte Nova é o corolário desta estratégia,
plasmando-se na criação de escolas primárias, secundárias, escolas de formação
de professores, internatos, formação de enfermeiros ' dever-se-á notar que a
valorização da profissão docente e a disseminação do modelo higiénico
estruturado no enfermeiro, declinou-se no feminino, no quadro da valorização da
mulher e da consequente participação no espaço público ' e construção de
estruturas hospitalares. Difundia a coeducação e praticavam-se princípios da
educação integral, quer nas escolas paroquiais, quer nas escolas missionárias,
quer nas escolas itinerantes, sejam elas rurais ou urbanas, como também se
dinamizavam as actividades culturais e cívicas.
Sendo escolas confessionais o modelo difundido identificava o cristão
verdadeiro com o cidadão numa perspectiva de responsabilizar cada um pelo seu
destino (pp. 129, 171), com forte ênfase na articulação educação-trabalho (p.
130) em ambiência puritana (p. 196). A importância deste projecto, dissecado
por Ester Fraga, plasma-se ainda pelo reconhecimento que lhe foi dado no início
da República brasileira (p. 211). O rigor teórico do estudo está aferido pela
elucidação pertinente com que são trabalhados os conceitos de secularização,
cultura, associação voluntária, representação social e modernização, entre
outros, na linha de M. Weber e A. de Tocqueville, em face da realidade
brasileira, por um lado, e, por outro lado, aplicados a um movimento social com
um repertório de acção muito particular: os presbiterianos. Uma ilação se pode
inferir do estudo: a incontornável proposta liberal dos acatólicos para a
modernização das sociedades ancorada na inquebrantável crença numa humanidade
educável2.
Notas
1
Fontes para a História da Educação é um notável exercício de democratização
das fontes históricas, patenteando uma preocupação patrimonial assinalável ao
promover a sua salvaguarda arquivística. Uma outra vantagem deve ser
assinalada: possibilitar ao leitor de Educar, Curar, Salvar , compulsar os
documentos aí utilizados.
2
Um dos inegáveis contributos de Ester Fraga é dar-nos a conhecer a lógica
do projecto civilizador presbiteriano, que nas suas dimensões, pode ser útil
para se repensar, no quadro da historiografia educacional portuguesa, a acção
desenvolvida na Madeira, a partir de 1838, pelo médico escocês Robert Reid
Kalley. Este missionário presbiteriano, pioneiro do protestantismo em Portugal,
desenvolveu no Funchal um modelo análogo ao brasileiro. A intolerância
religiosa ditou que, a partir de meados de 1840, se iniciassem processos de
perseguição à designada "heresia calvinista" que culminaram com a
fuga de cerca de três milhares de madeirenses. Um projecto filantrópico
importante, que ia da educação até aos cuidados de saúde, foi abruptamente
interrompido, com consequências trágicas para o desenvolvimento da Ilha.
Centro de Investigação em Educação
Instituto de Educação
Universidade do Minho - Campus de Gualtar
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