Formação para a docência universitária: uma reflexão sobre o desafio de
humanizar a cultura científica
Notas de introdução
Quando se fala de professores dos ensinos básico e secundário é uma constante o
reconhecimento de que o exercício da docência exige uma formação específica. No
entanto, no caso do ensino superior esse reconhecimento nem sempre constitui
uma referência, apesar de estar subjacente à Declaração Mundial sobre a
Educação Superior no séc. XXI (UNESCO, 1998) e de se inferir a sua necessidade
no cumprimento dos desígnios dos discursos do Processo de Bolonha iniciado com
a Declaração de 1999. Na verdade, este Processo tem influenciado um discurso
que vem convocando uma atenção especial à docência, apontando para a
necessidade de romper com o paradigma focado no ensino para dar lugar ao que
tem por meta a aprendizagem. Com tal propósito, em algumas instituições
universitárias começaram a ser desencadeadas dinâmicas focadas em questões de
ordem pedagógico-didáctica que reflectem a especificidade da docência neste
nível de ensino e que, simultaneamente, têm viabilizado o reconhecimento da
pertinência e da importância das humanidades para o desenvolvimento de uma
reflexão desta ordem.
É no contexto desta situação que se situa o texto que aqui apresentamos e no
qual, para tratarmos a questão da formação para e na docência universitária,
seguimos uma estrutura focada em três pontos: o primeiro enuncia as novas
exigências que se colocam à docência universitária; o segundo foca indícios do
reconhecimento de um lugar para o conhecimento pedagógico-didáctico no ensino
universitário; o terceiro, congregando dados de um movimento desencadeado na
Universidade do Porto (U.Porto), dá a conhecer alternativas encontradas para
possibilitar um diálogo entre a cultura humanística e a cultura científica, no
contexto da docência universitária.
Novos desafios para o Ensino Superior: exigências à docência universitária
A transição na relação entre conhecimento, sociedade e universidade, situada no
âmbito da crítica ao paradigma da racionalidade científica (Santos, 1996), tem
colocado em xeque a condição da universidade como centro de produção e difusão
do saber. De entre outros aspectos, a universidade é interpelada quanto à sua
responsabilidade social diante de dicotomias que inviabilizam uma comunicação
entre culturas e uma comunicação com o mundo do trabalho. No que respeita a
esta dicotomia, e ao facto dela impossibilitar um modelo que tenha como base a
assunção da responsabilidade social da Universidade, é reconhecida a
necessidade de um ensino que contribua para superar a fragmentação de funções,
ou seja, de um ensino profissional que, tendo um carácter propedêutico, se
articule com a investigação e que esteja em sintonia com o contexto social.
Em Portugal, nestes últimos anos, assim como em muitos outros países europeus,
o ensino superior tem-se confrontado com a adaptação ao chamado "Processo de
Bolonha", isto é, com a incorporação nos currículos dos diversos cursos de
princípios estabelecidos a nível europeu na Declaração de Bolonha (1999),
nomeadamente os que decorrem do paradigma da formação. Uma análise dos
discursos veiculados ' e reafirmando o que em outro lugar sustentámos (Leite,
2006a, p. 290) ' permite concluir que eles têm apontado para uma formação que
se estruture "na lógica da formação-acção, em vez da formação-transmissão e da
mera obtenção de conhecimentos para aplicar na prática". E, nesta linha,
apontam para uma metodologia possibilitadora de um ensino-aprendizagem
cooperativo, para o desenvolvimento de competências interpessoais, para o
recurso a processos de tutoria e de envolvimento efectivo dos actores
educativos no processo de ensinar e de aprender.
Para estes mesmos princípios, e como também atrás afirmámos, tinha já apontado
a Declaração Mundial sobre a Educação Superior no séc. XXI (UNESCO, 1998),
nomeadamente quando questiona o conhecimento universitário de características
disciplinares e quando aponta para a sua reconceptualização em termos de uma
explícita responsabilidade docente no processo de aprendizagem dos estudantes.
Ao mesmo tempo, o cumprimento das directrizes emanadas dos órgãos políticos
para esta adequação ao Processo de Bolonha, para além de influenciar as
concepções de ensino-aprendizagem a seguir no nível de ensino superior, tem
condicionado a organização do tempo curricular dos cursos, agora estruturados
no "sistema europeu de transferência de créditos" (ECTS), entendidos como
"unidade de medida do trabalho do estudante e que, por isso, incluem as horas
de contacto com os seus professores mas também as horas de estudo, de
realização de trabalhos e de avaliação" (CRUP, 2003, p. 4). Como é evidente,
esta organização curricular obriga a pensar, não apenas no tempo de ensino, mas
também nas condições de aprendizagem, isto é, obriga a estruturar a formação em
torno de uma forte relação do binómio ensino-aprendizagem.
Ao mesmo tempo, para este mesmo sentido de formação aponta o facto de os cursos
se terem de organizar em função, não apenas de conteúdos e de objectivos a
atingir a curto prazo mas também de competências a desenvolver pelos
estudantes, entendidas como algo que não é transmitido mas que é pessoalmente
construído e desenvolvido (Leite, 2006a). Ou seja, e recorrendo a Jobert
(2003), entendidas as competências como uma "inteligência prática", já que
pressupõem a capacidade para desenvolver a inteligência no agir e em situações
que jamais são iguais e estáveis. No quadro deste entendimento, podemos
concluir que o conceito de formação que acompanha o chamado "discurso de
Bolonha" não despreza os conhecimentos mas também não termina na sua aquisição,
pois tem como mira desenvolver competências imprescindíveis à intervenção.
Sendo polimorfo o conceito de competência, vale a pena referir que não o
associamos ao conceito de "desempenho", conceito esse que acompanhou as teorias
curriculares e de educação dos paradigmas tecnicistas. Ou, dito de outro modo,
não o limitamos ao conceito de "performance", criticado por Magalhães e Stoer
(2002, p. 50) quando alertam para o "risco ao futuro e ao estilo da classe
média" (idem, p. 48) quando a ênfase dos mandatos políticos e pedagógicos se
desloca no sentido das "pedagogias visíveis", implicando "o abandono da
pedagogia enquanto processo (com as suas características invisíveis')". Ao
contrário, o conceito que nos enforma decorre de considerar que a organização
do currículo e o processo do seu desenvolvimento em função de competências têm
como intenção dar sentido social ao que se selecciona para ser ensinado e ao
que se aprende e, por isso, estabelecer uma forte relação do saber escolar
formal com as questões sociais.
Para a clarificação do conceito de competência, faz também sentido ter em conta
as teorias de acção (Argyris, Putnam, & Smith, 1985), nomeadamente quando
lembram que o desenvolvimento das competências está relacionado com a
representação que o/a autor/a faz e constrói de si, e não apenas dependente das
características da situação. Em síntese, no conceito que nos orienta secundamos
Lessard (2006, pp. 233-234), que afirma que "desenvolver competências não é
tanto aprender comportamentos precisos e específicos ' por assim dizer,
extirpados tanto da experiência e da trajectória do sujeito como da situação, e
assim objectivados e essencializados ', ( ) mas antes mobilizar e combinar um
conjunto de recursos cognitivos e não-cognitivos para levar em conta a
complexidade da situação educativa e nela agir de modo finalizado, adaptado e
eficaz". Neste sentido, a competência não é sinónimo de desempenho, perspectiva
que corroboramos.
Constituindo um velho desafio fazer com que a formação mantenha maior relação
com as situações que fazem parte da vida e das sociedades, em termos do
discurso, o debate em torno dos compromissos de Bolonha tem gerado algum
enfoque na necessidade de se repensar as competências desejadas no final dessa
formação e de, em torno delas, delinear os planos curriculares e os programas
das disciplinas que os promovam, entendendo-os no sentido que atrás
conceptualizámos.
Como se depreende, esta nova orientação para a formação universitária implica
novas formas de conceber o exercício docente. Se, até há uns anos atrás, às
Universidades eram atribuídas apenas a missão de transmitir os conhecimentos
que ao longo dos tempos vão sendo acumulados e de produzir novos conhecimentos
através do envolvimento em investigação, agora, com esta concepção de formação,
não pode ser descurada a criação de condições que assegurem a aprendizagem e a
utilidade social dessa aprendizagem (Leite, 2006b). E, no quadro desta
interpretação, o exercício da docência implica uma organização que prepare o
sujeito para a aprendizagem autónoma, mas acompanhada, e onde exista um
equilíbrio na relação exigências-apoio para essa aprendizagem. E é no quadro
destes desafios que, no caso da Universidade do Porto, esta concepção justifica
que um dos quatro objectivos estratégicos que orientam o projecto institucional
seja atingir a excelência no ensino-aprendizagem.
O que estamos a afirmar não pressupõe, como é evidente, e como temos sustentado
(Leite & Ramos, 2007), que o exercício da investigação, na Universidade,
não seja importante. Pressupõe, sim, a necessidade de, a par deste exercício,
ser igualmente valorizado o ensino-aprendizagem. E, como aqui enunciamos, para
realizar esta tarefa, os professores precisam de possuir conhecimentos
pedagógico-didácticos que apoiem os estudantes na construção das suas
aprendizagens.
Quando fazemos a apologia deste tipo de conhecimentos (pedagógico-didácticos)
estamos a ter por referência um campo que diz respeito à compreensão das
interacções humanas, no âmbito do carácter mediador do ensino e das suas
relações, e que pretende viabilizar a identificação dos fundamentos da acção
docente, tanto no que se refere à expressão de um ideário pedagógico, como à
implicação desse trabalho no processo dos diálogos existentes e possíveis
(Leite & Ramos, 2009). Por isso, a justificação para a importância desta
atenção a questões do domínio pedagógico-didáctico pode também ser encontrada
se tivermos em conta o que em outro momento sustentámos: "as mudanças sociais
que têm ocorrido na sociedade e os desafios para que se amplie o tempo de
escolaridade têm tido como efeito a construção de uma escola de massas que se
tem estendido ao ensino superior", que "os grupos hoje presentes no segmento
universitário são cada vez mais diversos e distintos dos do passado", "têm
motivações e expectativas variadas, experiências de vida múltiplas, idades
diversificadas e níveis cognitivos distintos" (Leite, Lemos, & Farinha,
2004, p. 3). Ou seja, tem de se reconhecer que os professores do ensino
superior precisam de aprender a lidar com esta situação e de ensinar numa
lógica distinta da homogeneidade.
Em síntese, consideramos importante a existência de formação para a docência
pois reconhecemo-la como uma das condições para que os professores e a
instituição cumpram esta sua função social. Neste sentido, reconhecemo-nos nas
palavras de Zabalza (2004, p. 25) quando afirma que a Universidade, "de um
lugar reservado a poucos privilegiados, tornou-se um lugar destinado ao maior
número possível de cidadãos", acrescentando nós que a todos tem de criar
condições de reconhecimento e de sucesso.
É também no quadro destas ideias que consideramos o princípio de
indissociabilidade ensino-aprendizagem-investigação que permeia a dinâmica de
construção, difusão e reconfiguração do conhecimento, superando a visão de que
ensino e investigação são tarefas cumulativas, sendo compreendida como uma
actividade integrada e efectivada através da relação pedagógica. Ou seja, o que
estamos a afirmar é a necessidade de derrubar as barreiras da cultura
científica, por Morin (2001, p. 17) caracterizada como aquela que "separa as
áreas de conhecimento; acarreta admiráveis descobertas, teorias geniais, mas
não uma reflexão sobre o destino humano e sobre o futuro da própria ciência".
Neste sentido, apoiamos a existência de um diálogo com a cultura humanística
que "alimenta a inteligência geral, enfrenta as grandes interrogações humanas,
estimula a reflexão sobre o saber e favorece a integração pessoal dos
conhecimentos" (ibidem).
Também a esse respeito, Zabalza (2004, p. 25) ressalta que "é necessário
insistir exaustivamente que a formação deve servir para qualificar as pessoas,
isto é, não é suficiente equipá-las com um perfil profissional padrão ou com
uma determinada bagagem de conhecimento". E, nesta linha de pensamento,
acrescenta aspectos sobre o sentido de uma formação universitária, ressaltando
que ela exige contemplar o desenvolvimento pessoal, articulado ao
desenvolvimento de conhecimentos e de competências específicas, e possibilitar
uma visão mais ampla do mercado de trabalho a fim de criar condições para nele
agir com maior autonomia (idem, p. 45). Ou seja, estes desafios requerem o que
Barnett (2002) indica como condições para o transitar numa era de
supercomplexidade, a saber: a interdisciplinaridade crítica; a reflexão
colectiva; a renovação premeditada; a capacidade para mover as fronteiras; o
compromisso participativo; e a tolerância comunicativa.
Pelo que temos vindo a enunciar, podemos aceitar a tese defendida por Zabalza
(2004, p. 102) quando afirma que a docência universitária exige "desaprender,
eliminar resquícios, desconstruir práticas, significados e prioridades que
fazem parte da tradição institucional", pois para aprender a pensar e agir em
outra lógica é preciso desconstruir a lógica vigente. E recorrendo ainda a este
autor, "desaprender traduz-se na capacidade de desconstruir' a situação
vigente do sistema, de seus significados e de suas práticas e de reconstruí-
la' com um novo significado ou com um novo tipo de intervenções, o qual será o
conteúdo da aprendizagem" (idem, p. 104).
Diante destas observações, parece-nos fazer sentido que a UNESCO (1998), ao
reconhecer a necessidade de focar o processo de ensino-aprendizagem no
estudante, apele para uma necessária atenção às questões pedagógico-didácticas
na universidade e para que os docentes se apropriem de um conhecimento que
possibilite dar conta do seu exercício profissional, no sentido de que é tempo
de desaprender para poder reconstruir, aspectos que, de certo modo, atravessam
também os discursos que acompanham o processo de Bolonha.
Reconhecendo a especificidade da docência e de um lugar para o conhecimento
pedagógico-didáctico no ensino universitário
Na continuidade das ideias que temos aqui vindo a desenvolver, é inevitável
afirmar-se que o ensino só se justifica se gerar aprendizagem e permitir a
obtenção de pré-requisitos que sejam mobilizados na construção de novas
aprendizagens. Ao mesmo tempo, começa também a ser reconhecida e
recorrentemente afirmada a necessidade (ou pelo menos a importância) de que a
obtenção desses conhecimentos seja acompanhada de situações que dêem relevo à
sua utilidade social.
Nesta perspectiva, e no que à universidade diz respeito, esta necessidade (ou
esta importância) é acrescida pela responsabilidade que advém do perfil de
formação que se deseja que nela ocorra e que exige competência para
contextualizar e fundamentar saberes e fazeres. Ou seja, e corroborando
Bourdoncle e Lessard (2002, p. 16), a universidade "já não pode limitar-se a
dar uma formação geral e liberal, nem uma formação científica, ignorando a
maneira como os estudantes poderão depois ganhar a sua vida". Conforme ainda
esses autores, é necessário que haja "um novo equilíbrio que tenha em conta as
especificidades das formações profissionais que a sociedade espera hoje da
universidade, sem que ela abandone por isso a sua função crítica" (idem, p.
152)
Em síntese, podemos inferir que esta concepção aponta para uma formação
orientada para o desenvolvimento de competências que se expressam no agir (no
sentido que atrás lhe apontámos) e que, por isso, configura uma marca na
estrutura dos planos curriculares e um entendimento da docência distinto do que
a restringe aos modos de trabalho pedagógico do tipo transmissivo (Lesne,
1984). E, uma vez mais reforçamos, este entendimento da docência exige um
conhecimento pedagógico-didáctico que leve, quem ensina, a potenciar, em quem
tem a tarefa de aprender, a mobilização de processos de um forte envolvimento
na construção e na regulação da aprendizagem, ou seja, exige reconhecer que a
acção docente é "saber fazer aprender alguma coisa a alguém", como afirma
Roldão (2000, p. 17).
Ora, é este reconhecimento de um saber-fazer que confere especificidade à acção
docente e é ele que justifica um lugar para o conhecimento pedagógico-didáctico
que supere a visão reducionista de que basta, para se ser professor, o
conhecimento da área específica a que cada docente se encontra vinculado. Isto
é, é este reconhecimento de que existe um saber específico para o exercício da
docência que contraria a visão de que quem sabe, automaticamente sabe ensinar e
também a de que só quem sabe investigar, pode realmente ensinar (Bourdoncle
& Lessard, 2002).
Como no início deste texto afirmámos, contrariamente ao que acontece para a
docência nos ensinos básico e secundário ' onde é exigida uma formação
específica para o exercício da docência ', no ensino universitário a maior
parte dos professores tornou-se professor sem qualquer formação específica para
ser docente, apoiando-se, para este fazer, apenas na sua experiência de aluno e
na experiência que a prática lhe vai fornecendo, situação que é evidenciada em
vários estudos (Cunha, 2007; Esteves, 2005; Zabalza, 2004).
A agravar esta situação, realce-se que, em Portugal, a entrada e, de um modo
geral, a progressão na carreira universitária tem sido marcada pelo
envolvimento na investigação, sendo ignorada, ou pelo menos descurada, a
componente pedagógica, contrariamente ao que se passa em outros níveis de
ensino. Este facto, mesmo que não compreensível quando se esperava do trabalho
docente uma orientação normalizadora, é perfeitamente desajustado quando o
ensino superior se confronta com situações de uma grande diversidade de
públicos e de situações e quando dele se espera uma formação para lidar com a
multidimensionalidade e para conviver com a imprevisibilidade e a
provisoriedade. Ou, como referem Inayatullah e Gidley (2003, p. 37), quando se
espera dos professores competência para apoiarem os estudantes no
desenvolvimento intelectual, emocional e espiritual, e quando deles se espera
que compreendam as condicionantes em diálogo das aspirações sociais com as
colectivas, situando no tempo e no espaço o conhecimento adquirido.
Dispensando o devido cuidado de não atribuir à formação pedagógico-didáctica um
poder redentor mas, sim, o de ressaltar o seu carácter mediador, encaramo-la
como a possibilidade de delinear a necessária reflexão sobre a especificidade
docente universitária ' no contexto do desafio de superar o "divórcio" entre a
cultura humanística e a cultura científica (Morin, 2001). E fazemos esta
inferência nomeadamente por reconhecermos que tal separação, além de polarizar
análises, constitui um obstáculo à compreensão do fenómeno educativo na sua
complexidade.
Em função disso, consideramos que a docência, para ultrapassar a barreira
disciplinar, antes de tudo, necessita de se situar como uma profissão de
interacções humanas, nomeadamente no contexto da compreensão da docência como
"um trabalho cujo objecto não é constituído de matéria inerte ou de símbolos,
mas de relações humanas com pessoas capazes de iniciativa e dotadas de uma
certa capacidade de resistir ou de participar da acção dos professores" (Tardif
& Lessard, 2005, p. 35). Tal concepção situa a responsabilidade docente
para com o outro, bem como indicia o reconhecimento de um corpo de
conhecimentos que possibilitem organizar o trabalho de docência para dar
suporte a esta interacção ' não como prescrição, mas como fundamentos
estruturantes que permitam uma compreensão deste trabalho.
Articulando o que estamos a afirmar com ideias que matriciam o Processo de
Bolonha, nomeadamente as que são expressas no documento sobre o papel das
universidades (Comissão das Comunidades Europeias, 2003), realçamos o facto de
nele ser apontado que "o mundo académico necessita urgentemente de se adaptar
ao carácter interdisciplinar dos campos abertos pelos grandes problemas de
sociedade, como o desenvolvimento sustentável" (idem, p. 9). Esta observação é
feita em função da constatação de que as actividades de ensino, nas
universidades, "tendem a permanecer organizadas, e ainda muitas vezes
compartimentadas, em função do quadro disciplinar tradicional" (ibidem). Ao
mesmo tempo, esta compreensão deixa claro que é preciso muito mais do que o
domínio de uma área disciplinar, bem como o reconhecimento da especificidade da
função docente. Ou seja, e como afirma Zabalza (2004, p. 108), "como em
qualquer outro tipo de actividade profissional, os professores devem ter os
conhecimentos e as habilidades exigidos a fim de poder desempenhar
adequadamente as suas funções". Com isto, Zabalza opõe-se à ideia de que
ensinar se aprende na prática, pois entende que por a docência implicar
desafios e exigências, são necessários conhecimentos específicos para exercê-
la, isto é, "conhecimentos e competências próprios, preparação específica,
requisitos de ingresso, plano de carreira profissional" (idem, p. 109).
É também no quadro destas ideias que reconhecemos indícios da necessidade de um
conhecimento pedagógico-didáctico que dê suporte a este exercício, justificando
tal facto na explicitação da responsabilidade intrínseca à docência e na
necessidade de se ter competências académicas e profissionais para tal.
Secundando Esteves (2005, p. 1), quando afirma que é recente "a manifestação de
interesse científico, profissional e político pela qualidade pedagógica de que
se reveste o trabalho docente no ensino superior", compreendemos o debate
acerca do lugar do conhecimento pedagógico-didáctico na docência universitária.
E é por termos essa compreensão que temos vindo a sustentar a necessidade de
saberes teóricos que apoiem a reflexão sobre a prática e a acção docente e que,
para a demonstrar, recorremos a um movimento em que estamos envolvidas na
Universidade do Porto, no contexto do Grupo de Investigação e Intervenção
Pedagógicas da Universidade do Porto (GIIPUP), que se tem constituído como um
desafio para a institucionalização de formação pedagógico-didáctica de docentes
desta universidade, através do diálogo entre a cultura científica e a cultura
humanística.
Em busca de humanizar a cultura científica: caminhos delineados na Universidade
do Porto
Embora seja um lugar-comum designar a universidade como a instituição onde tem
lugar a dimensão analítico-crítica, criativa e reflexiva da produção de
conhecimento e da sua difusão, as reservas que evidenciam a tendência para a
cristalização, para o fechamento na cultura científica e para uma prática de
ensino centrada no conteúdo indicam a existência de uma distância entre os
princípios discursivos e o efectivo funcionamento das instituições
universitárias (Morin, 2001).
A tradição de centro de produção e difusão do conhecimento contribuiu para uma
auto-suficiência da universidade que esteve muitas vezes na base de uma isenção
de reflexão sobre esse processo de produção e difusão ' principalmente no que
respeita ao ensino e à aprendizagem nela desenvolvidos. Ou seja, apesar de esta
instituição ser idealizada como crítica e criativa, o corporativismo '
decorrente muitas vezes da forma de recrutamento de pessoal (Zabalza, 2004) '
favoreceu uma tendência para a cristalização e para a desestimulação de
questionamentos sobre as bases do processo de fazer aprender.
No contexto das alterações ocorridas na relação sociedade, conhecimento e
universidade, a instituição universitária começa também a ser requisitada para
assumir uma responsabilidade social, no que se refere a acompanhar o ritmo
acelerado do desenvolvimento tecnológico, sem perder de vista a criticidade e a
criatividade para uma efectiva intervenção humana. Fazendo uma interpretação
dessa ordem de acontecimentos, Rodrigues (2005, p. 2) aponta que "a sociedade
do conhecimento substitui progressivamente a sociedade industrial e gera novas
demandas ao ensino superior, quer enquanto sustentáculo da inovação científica
e tecnológica quer enquanto instância de formação por excelência".
Na Universidade do Porto, depois de já terem existido algumas tentativas
institucionais para organizar formação dos seus docentes, sem, no entanto,
terem gerado continuação, teve lugar, em 2005, uma Acção Piloto de Actualização
Pedagógico-Didáctica de Docentes da Universidade do Porto que teve como
objectivo incentivar reflexões sobre desafios que se colocam à docência
universitária, através de troca de experiências entre docentes sobre o
exercício profissional docente (IRICUP/FPCEUP, 2005). Esta Acção Piloto,
apoiada na concepção de que o trabalho docente é uma acção que, de acordo com
Therrien (2002, p. 106), "se desenrola em um processo desenvolvido por meio de
constantes tomadas de decisão de um sujeito mediador e articulador de múltiplos
elementos que condicionam o seu desempenho e os resultados pretendidos",
organizou-se de modo a criar as bases para um processo de reflexão pessoal e
institucional acerca da docência universitária.
A opção seguida nesta formação, e como já atrás indiciámos, teve por base a
ideia, nas palavras de Tardif (2002, p. 11), de que o docente, "ao escolher ou
privilegiar determinados procedimentos para atingir seus objectivos em relação
aos alunos, (...) assume uma pedagogia (...) embora se manifeste com frequência
uma pedagogia sem reflexão pedagógica". Na selecção das temáticas considerou-se
também importante que os professores conheçam o sistema em que estão inseridos,
as finalidades que o orientam, os princípios gerais de organização e
desenvolvimento do currículo (Leite, 2007), não se ignorando estas dimensões.
Nesta posição corroborou-se Therrien (2002) quando aponta para as acções, para
além de situarem o docente na categoria de sujeito epistémico, necessitam de
incorporar questões do contexto de decisões político-ideológicas, que não se
restringem a posturas pessoais, mas que se ampliam ao âmbito institucional.
Igualmente nesta posição apoiou-se Gimeno Sacristán (1995, p. 76) quando afirma
que a "formação contínua de professores deve pôr em causa as bases da
profissionalidade docente, não se limitando a uma reciclagem ao nível dos
conteúdos ou das destrezas". Por isso, no caso a que nos estamos a reportar da
U.Porto, a condução dos trabalhos caracteriza-se por uma orientação em que o
foco da atenção nas acções é a profissionalidade docente, principalmente no que
respeita à compreensão do contexto que a configura e a institui.
Talvez por ter por suporte estas ideias, no final da Acção Piloto a que atrás
nos referimos, os elementos nela envolvidos manifestaram o desejo de dar
continuidade ao movimento de reflexão iniciado, reivindicando a sua
institucionalização como grupo de investigação e intervenção na U.Porto, o que
levou à constituição do Grupo de Investigação e Intervenção Pedagógicas da
Universidade do Porto (GIIPUP).
Do conjunto das actividades realizadas pelo GIIPUP, realçamos aqui as sessões
de Saberes Partilhados por considerarmos que estão a permitir gerar uma
reflexão da prática docente, centrada em processos de ensino-aprendizagem, a
partir do que vem sendo desenvolvido no exercício da docência, reflexão essa
que tem possibilitado evidenciar uma forte relação integradora entre ensino e
investigação. As sessões realizadas desenrolaram-se a partir da apresentação de
experiências de fazeres docentes que permitiram tornar evidente a importância
de investigar processos de ensino-aprendizagem, bem como partilhar
colectivamente pontos de vista enquadrados em referenciais teóricos das
Ciências da Educação, referenciais esses que fornecem uma compreensão mais
profunda do fazer-docente.
Como esquema organizativo destas sessões, cada docente convidado a partilhar a
sua experiência, na sua apresentação, tem situado os motivos que justificam
optar pelos processos de ensino-aprendizagem encontrados, o modo como tem
organizado e desenvolvido esse ensino e como tem perspectivado a aprendizagem.
Ao mesmo tempo, tem havido lugar também para a avaliação da consecução dos
processos pedagógico-didácticos seguidos pelos diversos elementos, bem como dos
efeitos por eles gerados e do balanço que é feito pelos estudantes. O debate
que se tem seguido a essas apresentações também tem permitido reflectir sobre
as possibilidades e os limites dessas várias opções pedagógico-didácticas e
sobre os vários modos de trabalho pedagógico.
Como ponto comum, nestas sessões tem sido identificado que a opção pelo
redimensionamento do fazer-docente decorre da investigação sobre esse mesmo
fazer ' entendido como busca de uma solução para resolver problemas que esse
fazer-docente suscita. Concretizando, nos casos até agora apresentados, a
identificação de problemas que vão surgindo no fazer-docente ' e que se prendem
muitas vezes com razões da dificuldade de estudantes acompanharem o processo de
ensino e identificarem alternativas que possibilitem a aprendizagem ' esteve na
origem destes professores procurarem outras alternativas e outros procedimentos
didácticos.
Apesar deste olhar positivo que construímos e veiculamos sobre o que está a
acontecer na U.Porto, temos de reconhecer, e como já em outro lugar foi
sustentado (Leite, 2007, p. 7), que, em muitos casos, a procura de formação por
docentes desta Universidade tem ocorrido mais em função de esperarem das
Ciências da Educação "técnicas e instrumentos que mecanicamente possam aplicar
na prática docente, e não dispositivos que, permitindo globalmente enquadrar a
educação e a actual missão da Universidade, conduza a um processo de construção
pessoal capaz de proporcionar reequacionamentos do exercício profissional". No
entanto, e como nesse mesmo lugar foi afirmado, reconhecendo "a aula como
espaço nuclear da formação, pois nela convergem os saberes e os investimentos
científicos, pedagógicos e culturais" (idem, p. 12), cremos que esta focagem
poderá "abrir portas para saberes de outras áreas disciplinares" (ibidem) das
Ciências da Educação.
Em síntese, podemos afirmar que estas sessões têm vindo a possibilitar caminhos
de reconhecimento da investigação como uma actividade quotidiana, no sentido em
que têm focado aspectos de acompanhamento dos processos de ensino e de
aprendizagem, isto é, têm apontado para possibilidades de relacionar ensino e
investigação de forma integrada. Acreditamos, também, que os docentes que até
agora, nestas sessões, têm apresentado os seus trabalhos e os que nelas têm
participado têm ampliado os horizontes do campo científico de origem e
reconhecido a necessidade de olhar o ensino de uma forma interdisciplinar, onde
questões de relação, de interacção e de intervenção não podem ser descuradas.
Como se depreende, no exemplo desta acção do GIIPUP a que aqui nos estamos a
reportar ' Saberes Partilhados ' estamos a considerar que a investigação
constitui uma oportunidade de recolher informações que apoiem a reflexão sobre
percursos de mediação didáctica, e que, por isso, forneçam elementos que
permitam continuar ou redefinir caminhos de acção. E estamos a considerar que,
para tal, é importante o recurso a um conhecimento balizador oriundo das
Ciências da Educação que apoie a identificação do carácter relacional na acção
pedagógica, a partir de uma contextualização do conhecimento científico em seu
carácter social, interdisciplinar, político e cultural. Ou seja, estamos a
convocar uma leitura científica das situações, assumindo que a sua
objectividade resulta de subjectividades.
Considerações finais
Sendo a intenção deste texto, e como o próprio título indicia, afirmar a
necessidade e a importância da formação para o exercício da docência no ensino
universitário, nele demos atenção especial aos desafios sociais e educacionais
que têm vindo a ser colocados a este nível de ensino e ao movimento do grupo
GIIPUP da Universidade do Porto, que tem centrado a sua atenção em questões de
ordem pedagógico-didáctica.
A acção deste grupo (GIIPUP) parte da crença de que o exercício da docência
exige um conhecimento específico ' que aqui designámos por conhecimento
pedagógico-didáctico ' e que esse conhecimento é importante para assegurar a
integração da tríade ensino-aprendizagem-investigação e para humanizar a
cultura científica. Se, no princípio dos anos 70, em Portugal, era considerado
um bom professor, ou uma boa professora, aquele/a que conseguia despertar a
atenção dos alunos para os conteúdos do programa, que expunha e explicava os
assuntos num discurso e numa lógica passíveis de serem compreendidos pelos
alunos e que os estimulava ao cumprimento de um certo número de tarefas que
ajudassem à aquisição e compreensão desses conteúdos, hoje, esta pergunta feita
a estudantes ou a professores gera respostas que vão muito para além do ensino
e da transmissão de conhecimentos. É disso exemplo o conjunto de definições
enunciadas por professores da Universidade do Porto envolvidos em algumas das
acções de formação pedagógico-didáctica promovidas pelo GIIPUP quando afirmam:
"é aquele que consegue que os alunos atinjam desenvolvimento das
capacidades o mais elevado possível, no contexto em que ensina";
"o que é capaz de mobilizar para aprender, despertar interesse";
"é aquele que apoia o desenvolvimento de competências pessoais e
profissionais";
"é aquele que cria autonomia, independência, o que interage";
"é aquele que tem capacidade de comunicar estabelecendo uma relação
empática e conseguindo chegar às dificuldades do aluno";
"é aquele que tem clareza, que é um modelo para o aluno, que
contribui para o desenvolvimento da autonomia nos alunos";
"uma pessoa cuja trajectória pessoal, a constante actualização, a
gestão do tempo de aprendizagem e a necessidade de incentivar a auto-
aprendizagem e o espírito crítico sejam referenciais que possibilitem
compreender o seu trabalho no contexto da verticalidade e
horizontalidade da formação no curso".
Como se depreende, estes conceitos de bom professor' não se esgotam no saber
científico nem numa orientação enfeudada em teorias do racionalismo académico
que fazem do saber centrado nas disciplinas clássicas o foco principal do
ensino e do acto de transmissão de conhecimentos e da organização estrutural
dessa transmissão a actividade exclusiva dos professores (Leite, 2002). Ou
seja, estas concepções de bom professor' rompem com as perspectivas que
enfatizam o ensino, e não a aprendizagem, e que concebem o currículo como um
plano de instrução e a actividade docente como o meio de socializar as novas
gerações no desenvolvimento de uma racionalidade que cultiva a dimensão
cognitiva e a herança cultural (Leite, 2003).
Como é evidente, estas perspectivas de bom professor' articulam-se com
concepções de formação características de um tempo e de uma orientação teórico-
prática que desejamos ser considerada do passado, pois concordamos com Lopes
(2001, p. 343) quando afirma que "se algo se destaca da história longínqua e
recente dos professores é a sua incessante dependência, exercida pelo poder
político sim, mas sobretudo conseguida pela racionalidade dominante que lhes
retirou sistematicamente o seu principal material de trabalho: o saber
emancipatório". E apoiamo-la também quando aponta a necessidade de alternativas
que permitam re-significar esse projecto emancipatório para uma tomada do
sentido da profissão no novo contexto social" (ibidem).
É neste sentido que encaramos a formação pedagógico-didáctica como um meio de
propiciar condições a um exercício da docência re-significado e que sustente
práticas de uma aprendizagem emancipatória. Apoiamos Miguel Zabalza quando, a
propósito dos modos de docência, fala da existência de "coreografias pobres" e
de "coreografias ricas" ' quanto à capacidade que têm de gerar aprendizagens
nos estudantes ' e quando insiste na "necessidade de considerar os contextos e
as condições em que se produzem os processos de aprendizagem" (Zabalza, 2006,
p. 11), já que, como diz, estes elementos "predeterminam o processo em si e,
logicamente, os seus resultados" (ibidem). E é na base desta ideia que temos
vindo a apontar a importância de um conhecimento pedagógico-didáctico que apoie
a configuração de uma aprendizagem efectiva dos estudantes, no contexto de uma
autonomia que, progressivamente, precisa de ser menos apoiada. E é também por
isso que sustentamos a importância de uma formação de docentes do ensino
superior orientada por princípios de um forte comprometimento colectivo em
processos de reflexão sobre o que se passa na aula, mas também sobre o que se
passa fora dela e fora da instituição universitária, lugar esse que humaniza e
socializa a cultura científica.