O terceiro setor na educação de adultos: tensões e ambivalências
RÉSUMÉ
Le troisième secteur a toujours occupé une place importante dans la promotion
de l'éducation, la formation et l'apprentissage des adultes et dans le
changement social des communautés locales qui sont de plus en plus exclus des
procès hégémoniques de développement. Mais beaucoup d'organisations non
gouvernementales ont adoptées des stratégies de médiation entre l'État et les
communautés locales en établissent des partenariats. Ces organisations
présentent aujourd'hui certaines caractéristiques communes aux entreprises. Ce
fait a mis en cause leur autonomie et questionne la capacité du troisième
secteur de développer des projets éducatifs et d'émancipation. Cet article
discute les transformations du troisième secteur avec intervention dans
l'éducation des adultes. Cette analyse est faite a partir de données récoltés
dans un projet de recherche qui a privilégié une étude de cas d'une politique
publique d'éducation d'adultes implémentée après 1999 par une association de
développement locale.
Mots-clé: Éducation des adultes; Troisième secteur; Politique publique
Sobre o Estado, a sociedade civil e o terceiro setor
O Estado e a sociedade civil são habitualmente tidos como dois conjuntos de
atores e instituições que se opõem. De acordo com Santos (1990), o Estado
caracteriza-se por assentar numa organização formal, sendo "detentor de uma
unidade interna e de soberania, apoiado num sistema jurídico unificado e
centralizado, convertido numa linguagem universal através da qual comunica com
a sociedade" (p. 20). Pelo seu lado, a sociedade civil abarca "o domínio da
vida económica, das relações sociais espontâneas orientadas pelos interesses
privados e particularísticos" (Santos, 1990, p. 20). O mesmo autor argumenta
que, definidos a partir do princípio da separação, o Estado traduz o
formalismo, o coletivismo, a estruturação e a regulação, entre outras
características, enquanto a sociedade civil é marcada, por exemplo, pelo
informalismo, civilismo, individualismo e privatismo. Neste sentido, o Estado
condiciona a liberdade individual e, em simultâneo, o seu exercício, enquanto a
sociedade civil se apresenta como o espaço de prática da liberdade, em domínios
tão diversos como a economia, a participação cívica e a cultura, entre outros
(Santos, 1990, pp. 15-19).
Se, teoricamente, esta dualidade permitiu a compreensão das relações entre
Estado e sociedade civil nos países capitalistas até meados do século XX,
nomeadamente no contexto da consolidação do Estado-providência, mais
recentemente, no quadro do capitalismo desorganizado e da crise da referida
forma de Estado, ressaltam as tensões (Griffin, 1999a, 1999b). Nesta linha de
ideias, até finais da década de 1960, os países capitalistas assistiram à
expansão do Estado (e à retração da sociedade civil), e, desde então,
registaram-se mudanças na regulação económica e social estatal, nos padrões da
democracia representativa, na estrutura e na intervenção dos partidos políticos
e dos sindicatos, entre outras, que atribuem primazia à sociedade civil. Passou
a verificar-se então uma "aproximação e interpenetração do Estado e da
sociedade civil", levando a que cada termo deste binómio se esteja
"progressivamente a transformar no duplo do outro" (Santos, 1990, p. 23).
Adicionalmente, como refere Monteiro, a expressão sociedade civiltem sido
utilizada como equivalente de terceiro setor. Segundo este autor, o terceiro
setor agrupa
(...) organizações civis, resultantes do esforço e vontade de associação
voluntária de cidadãos, distintas tanto das instituições coercivas do Estado
(...), como das instituições lucrativas do mercado, mobilizando os cidadãos
para causas públicas e promovendo pela sua acção a estabilidade e efectividade
das democracias (Monteiro, 2004, p. 150).
Em decorrência, o terceiro setor integra um conjunto alargado e heterogéneo de
organizações que se orientam por finalidades diversificadas de natureza social,
cívica, política, cultural, económica, etc. Apesar de diversas, estas entidades
podem apresentar-se como espaços de autogovernação, no âmbito da limitação dos
poderes do Estado ou até da concretização de estratégias de oposição a este
último. Estas entidades podem estabelecer parcerias com o Estado e, embora não
possuam fins lucrativos, podem igualmente receber apoios de empresas, por
exemplo, através do mecenato. Por esta razão, situam-se, mesmo que
teoricamente, em alternativa ao Estado e ao mercado. De resto, o hibridismo e a
complexidade do terceiro setor faz com que seja apelidado de "público não
estatal" ou "privado não lucrativo de interesse público" (Lima & Afonso,
2006).
Se se atentar nos desenvolvimentos históricos relativos à sociedade civil,
designadamente na Europa do Centro e do Norte, é de destacar que o
associativismo emergiu ainda no século XIX como alternativa ao capitalismo.
Possui assim "raízes ideológicas heterogéneas que iam do socialismo ao
cristianismo social e ao liberalismo" (Santos, 1998, p. 6). Estas associações
preferiam novas formas de organização da produção e do consumo que punham em
causa os princípios da economia política de então. Procurava-se dessa forma
minimizar os custos que a Revolução Industrial acarretara. Neste quadro, a
autonomia associativa começou por ser essencial no esbatimento das
desigualdades causadas pela organização capitalista e pela intervenção do
Estado e as associações assumiram-se como instrumentos contra o Estado, de
resistência a um sistema de produção promotor da alienação (Santos, 1998). Na
segunda metade do século passado, o Estado-providência e as políticas
redistributivas implementadas em diversos domínios sociais implicaram a
metamorfose do associativismo e vieram retirar alguma relevância à intervenção
da sociedade civil. Contudo, em particular nas últimas décadas, registou-se a
reemergência de muitas associações, designadamente do terceiro setor, associada
à crise do Estado social e à adoção de orientações neoliberais. Esta
circunstância ocorreu num momento de diminuição de políticas progressistas em
que os direitos humanos da terceira geração, os direitos económicos e sociais,
conquistados depois de 1945, começaram a ser postos em causa (Santos, 1998, p.
8). Consequentemente, a retração estatal permitiu a criação de espaços de
intervenção que o terceiro setor tem ocupado na satisfação de necessidades
sociais e educativas das populações locais (Turner, 2001, p. 199), assumindo,
por essa via, um papel de parceiro (e já não de opositor do Estado) na
implementação de políticas públicas.
O terceiro setor e a educação de adultos em Portugal
A ligação entre o terceiro setor e a sociedade civil levanta diversas questões
no que remete para a articulação com o próprio Estado. Como afirma Santos
(1994), a sociedade civil em Portugal revela marcas muito específicas, podendo
ser considerada simultaneamente fraca, se se pensar nas formas de organização
dominantes nos países centrais, no que respeita à participação e à cidadania, e
forte, em termos de estruturas familiares, redes de solidariedade e de
vizinhança. Segundo este autor, tem sido esta força que, nos últimos tempos,
tem permitido compensar as debilidades do (semi) Estado-providência português
em construção após o 25 de abril de 1974, mas, desde então, em crise. De resto,
esta tem sido uma das especificidades de Portugal, um paradoxo no qual radica a
simultaneidade da consolidação e da retração do Estado social nas últimas
quatro décadas (Lima, 1995).
O terceiro setor destacou-se assim no contexto da crise do Estado, de fortes
críticas à intervenção pública considerada burocrática e pouco flexível,
originadora de desigualdades sociais complexas e cada vez mais acentuadas. Para
autores como Melo (2007), mais otimistas sobre as suas potencialidades, o
terceiro setor surgiu como sendo mais eficiente e eficaz no cumprimento das
funções sociais que anteriormente tinham sido realizadas ou tentadas pelo
Estado. Neste cenário, verificaram-se novas formas de organização social e
política mais solidárias e participativas, de promoção da autonomia e da
emancipação. Para outros autores, como Lima e Afonso (2006), contudo, o
terceiro setor passou a adotar formas de trabalho e modos de regulação mais
próximos do próprio Estado e das empresas, uma vez que passou a depender cada
vez mais das políticas públicas e dos programas de financiamento estatais e
supranacionais para a sua existência. Questiona-se assim a sua autonomia, assim
como a sua capacidade de intervenção transformadora na sociedade civil
(Monteiro, 2004). Devido a estas razões, esta ação tem envolvido ambivalências
que resultaram da ligação próxima que o terceiro setor possui relativamente ao
Estado e ao mercado, sobretudo no que concerne às finalidades das iniciativas
levadas a cabo, bem como aos modos de funcionamento interno das entidades,
devido às regras formais impostas pele gestão dos projetos financiados.
Hoje, o terceiro setor encontra-se sob forte pressão. A profissionalização dos
seus recursos humanos surge como uma imposição na procura de apoios financeiros
e como uma estratégia de sobrevivência institucional. Por outro lado, a
maximização dos meios obtidos exige a adoção de orientações gerencialistas.
Verifica-se assim, em muitos casos, um afastamento relativamente a finalidades
mais autonómicas e a estratégias de intervenção local emancipatórias
características de certas organizações não-governamentais (Lima, Guimarães,
& Oliveira, 2007).
Assim, sendo, em Portugal, bem como noutros países europeus, o terceiro setor
acumula uma significativa experiência no campo da educação de adultos (Ruas,
1978; Norbeck, 1983; Comissão de Reforma do Sistema Educativo, 1988), tanto nas
modalidades formal, como não formal e informal (Canário, 2007). Como argumenta
Canário, o associativismo de raiz popular forneceu o esteio para o
desenvolvimento de modalidades tão diversas como o mutualismo, o
cooperativismo, a intervenção cultural e de recreio no período anterior ao
Estado Novo. Mais tarde, de meados da década de 1920 até 1974, apesar de
profundamente condicionado, as associações representaram "uma rede de
trincheiras que serviu de retaguarda à ação política e como uma escola de
militantes sociais e políticos" (Canário, 2009, p. 133). Este foi um período
caracterizado por uma forte coerção exercida pelo poder político autoritário,
em que estas entidades procuraram criar formas imaginativas de resistência
política e social.
Logo após o 25 de abril, as associações populares surgiram como alavancas da
iniciativa popular, da rutura social e política com vista à criação de um poder
local democrático forte. Foi neste contexto que receberam enquadramento
legislativo (através do Decreto-Lei n.º 384, de 20 de maio de 1976). Esta
situação permitiu-lhes promover atividades de educação emancipatória, apoiar o
movimento social pujante de então, na procura de uma sociedade mais justa e
democrática. Neste quadro, coube ao Estado a disponibilização de recursos a
estas entidades e a promoção social, cultural e educativa dos seus associados.
Pelo seu lado, estas associações levaram a cabo ações que seriam certificadas
formalmente pelo Ministério da Educação (Melo & Benavente, 1978).
Verificou-se assim o fomento de projetos de "educação crítica e transformadora,
locais de produção multicultural e educativa orientada para a cidadania
democrática, a mudança social e a justiça" (Lima, 2012, pp. 105-106), numa
articulação profícua entre o Estado e a sociedade civil.
Apesar do interesse desta ligação, ela acabou por ser progressivamente
abandonada a partir de 1976, embora retomada em 1979, no âmbito do Plano
Nacional de Alfabetização e Educação de Base de Adultos. Verificou-se de novo o
destaque no papel das associações na educação de adultos. Todavia, as
dificuldades na implementação desta proposta, de resto abandonada em meados da
década de 1980, afastaram progressivamente as entidades da sociedade civil da
política pública preconizada então (Silva, 1990).
Depois da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em 1986, mesmo à
margem da política pública de educação de adultos, muitas organizações do
terceiro setor reafirmaram o seu dinamismo ao candidatarem-se a programas
apoiados pelo Fundo Social Europeu. Esta circunstância permitiu o
desenvolvimento de projetos muito diversos, de formação profissional, de
desenvolvimento local (no âmbito do LEADER, por exemplo), de luta contra a
pobreza (como no caso do programa EQUAL), de apoio e defesa das mulheres
(designadamente no âmbito do NOW), etc. Estas iniciativas integraram, entre
outras, atividades de educação não formal e espelharam a riqueza, a
criatividade e o potencial democrático e autonómico da intervenção local
(Monteiro, 2004; Fragoso & Guimarães, 2010).
Em suma, globalmente, a história da educação de adultos em Portugal, desde o 25
de abril de 1974, permite identificar variações nas relações entre o Estado e
as organizações da sociedade civil. Nesta linha de ideias, Lima (2012)
identifica três tipos de relações. O primeiro inclui as organizações que
promovem projetos de "educação crítica e transformadora, locais de produção
multicultural e educativa orientados para a cidadania democrática, a mudança
social e a justiça". A autonomia destas organizações desenvolve-se no sentido
de procurar novas formas democráticas de autogoverno, a participação ativa em
processos políticos, a democratização da democracia formal, do Estado e das
instituições políticas. Estas entidades surgem como espaços de mobilização
social e de politização das práticas sociais e educativas que contribuem para a
reinvenção democrática do Estado e para a autorregulação da sociedade civil
(Lima, 2012, pp. 105-106). Neste quadro, estas organizações adotam políticas
globais e integradas que evocam uma solidariedade orientada para reestabelecer
a dimensão social e a responsabilidade cívica da vida em sociedade (Laville,
Evers, Poujol, & Vaillancourt, 1997, p. 354). Por estes motivos, as
políticas públicas de educação de adultos que decorrem deste tipo de relações
orientam-se para a promoção da cidadania democrática, bem como para a
participação na transformação social. A mobilização social e política consiste
num processo de educação e aprendizagem social essenciais, produtos da ação
política e da conscientização (Guimarães, 2011; Lima, 2012).
O segundo tipo contempla as organizações que se apresentam como "extensões
burocráticas, serviços locais do Estado e da administração pública ou ainda
como parceiros da provisão social e educativa pública". São entidades sob forte
regulação estatal e dependem das autoridades públicas, estando orientadas para
a gestão dos problemas sociais e da exclusão social, sobretudo através de
processos de adaptação funcional de acordo com objetivos das políticas públicas
em vigor. Como afirma Lima, estas organizações intervêm num contexto de
devolução estatal. Neste caso, o terceiro setor assume-se como parceiro do
Estado. Obtendo financiamento estatal, organiza-se e intervém adotando formas e
procedimentos isomórficos, mais próximos do modo de funcionamento de
organizações públicas. Por esta razão, "subordina-se a agendas públicas,
especializa-se na gestão da crise e procura promover o consenso" (Lima, 2012,
pp. 106-107). O Estado vê assim o seu papel de prestador de serviços
assegurado, com o objetivo de concretização da igualdade de oportunidades e de
justiça social. Regista-se por esta via uma concertação interinstitucional
entre serviços estatais e o terceiro setor, no qual este último se apresenta
como um importante auxílio do Estado social. As iniciativas levadas a cabo
dirigem-se preferencialmente a sujeitos desfavorecidos do ponto de vista social
e económico (Laville et al., 1997, pp. 351-352). Aqui, a educação de adultos
tende a preencher objetivos de controlo e regulação social, bem como de
modernização educativa. A educação de segunda oportunidade e a formação
profissional são privilegiadas (Guimarães, 2011; Lima, 2012).
Um terceiro tipo de organizações contempla aquelas que se apresentam como
entidades "de cultura corporativa e de ethos empresarial, orientadas para o
mercado da aprendizagem e seus respectivos clientes" (Lima, 2012, pp. 107-108).
São organizações que se situam entre a sociedade civil e o mercado, numa
alternativa ao Estado-providência burocrático. Num esforço de reduzir custos e
de personalizar serviços, o Estado aposta nestas entidades, considerando-as
mais racionais, eficientes e eficazes na prestação pública. Promovem atividades
nas quais se concede maior autonomia aos indivíduos e maior capacidade de
escolha, podendo as iniciativas ser custeadas quer pelos sujeitos, quer pelo
Estado. Por este motivo, os indivíduos são vistos como consumidores. A
competição entre estas entidades é induzida pelo Estado, através da introdução
de regras de mercado, na procura da excelência (Laville et al., 1997, pp. 345-
349). A aprendizagem, vista como um estilo de vida, apresenta-se como um
elemento central na construção de percursos de formação individuais racionais,
com impacto em termos competitivos e de produtividade. Espera-se que os adultos
envolvidos estejam particularmente interessados em aprender e em competir pelo
progresso. A aprendizagem e a educação ao longo da vida tendem a estar
subordinadas a modelos de formação profissional e a conceitos como
qualificação, competências e capacidades com valor económico (Guimarães, 2011;
Lima, 2012).
Política pública de educação e formação de adultos e o terceiro sector
Em Portugal, nos finais da década de 1990, o terceiro setor foi remobilizado no
quadro da política pública. De facto, no contexto da estratégia para o
desenvolvimento da educação de adultos, apostou-se na dinamização da sociedade
civil. Neste sentido, afirmou-se que a educação de adultos deveria promover um
sistema educativo e de intervenção cívica apoiado em parcerias. Estas
envolveriam entidades muito distintas (públicas, privadas e não
governamentais). Para isso, apontou-se para a articulação entre duas lógicas
distintas, a lógica de serviço público e a lógica de programa. Através da
lógica de serviço público, a intervenção do Estado seria essencial na conceção,
no desenvolvimento e na avaliação de ofertas que se centrariam sobre a educação
de base e forneceriam uma certificação académica, assegurando a existência de
uma rede pública de ofertas educativas. A lógica de programa, baseada na
valorização de projetos, de iniciativas e experiências pedagógicas, procuraria
a "disponibilização, através de concurso, de apoios financeiros e outros para
as iniciativas da sociedade civil de melhor qualidade e maior impacto na
construção do sistema de educação e formação de adultos" (Melo, Queirós, Silva,
Rothes, & Ribeiro, 1998, p. 15).
Nesta linha de ideias, mais uma vez, o terceiro setor surgiu como um espaço de
autonomia e construção da cidadania participativa. Mas, a articulação entre as
lógicas indicadas revelou-se particularmente ambivalente e denotou tensões no
papel de mediação desempenhado por muitas entidades. Numa primeira linha, a
política de educação e formação de adultos implementada na última década
recorreu a princípios sustentadores do Estado-providência, designadamente no
que respeitou ao envolvimento do Estado em ofertas de educação de base formal e
não formal, ao acesso e ao alargamento da participação dos parceiros sociais na
definição e adoção de políticas económicas, sociais e educativas, integradas,
por exemplo, no Plano Nacional de Emprego, no Plano Nacional de Desenvolvimento
Económico e Social de Médio Prazo e nos Acordos de Concertação Estratégica.
Numa segunda linha, esta opção envolveu a inscrição das parcerias num Estado
social em retração, evidente nos acordos estabelecidos para a promoção de
ofertas de educação de base como o Reconhecimento, Validação e Certificação de
Competências e os Cursos de Educação e Formação de Adultos (Guimarães, 2011).
Assim, no quadro da política pública de educação e formação de adultos, as
entidades do terceiro setor surgiram no cruzamento de diferentes tipos de
relações estabelecidas com o Estado. De um lado, assumiram-se discursivamente
como entidades promotoras de ações de educação crítica, cidadania democrática,
de transformação social e participação, enquanto evidenciavam características
de organizações do segundo setor no âmbito do desenvolvimento de atividades de
educação de base. De outro lado, revelavam padrões de intervenção mais próximos
de "entidades empresariais" (Lima, 2012, pp. 107-108), no que respeitava aos
modos de funcionamento interno e de gestão do sistema efetuados pelos
departamentos estatais responsáveis. Esta situação originou ambiguidades no
trabalho realizado pelo terceiro setor no campo da educação de adultos que
decorreu de dois fatores. Num primeiro momento, acarretou uma crise de
valores' da missão e o compromisso destas entidades com as comunidades locais,
dado que, ao dinamizarem certas ofertas, substituíam-se ao Estado e desviavam-
se das finalidades para que tinham sido criadas. Num segundo momento, implicou
uma crise de funcionamento': a atividade do terceiro setor passou a ser
profundamente regulada e formalizada e foram abandonadas práticas
organizacionais informalizadas, mais tradicionais nestas entidades. Esta
regulação decorreu, entre outros, dos sucessivos momentos de avaliação e de
prestação de contas que passaram a marcar o dia a dia destas organizações
(Laville et al., 1997, pp. 324-325). Adicionalmente, o terceiro setor revelou-
se como um espaço de promoção de atividades de educação de adultos "socialmente
induzidas", realizadas "com base em estruturas organizativas complexas e por
técnicos ou profissionais qualificados, por referência e com recurso a
programas estatais cuja finalidade consistia em procurar soluções para
problemas locais, percepcionados ou identificados por organismos da
administração central" (Guimarães, Silva, & Sancho, 2006, p. 68). Desde
então, passou a ser particularmente frequente a ocorrência de iniciativas
enquadradas em projetos de caráter nacional. Sendo disseminadas através de
programas de financiamento, as ações implementadas envolveram uma elevada
complexidade procedimental, significativos recursos económicos e um corpo de
técnicos qualificados que candidatavam projetos, vigiavam a implementação das
atividades e procediam à avaliação dos resultados obtidos, garantindo por essa
via a sobrevivência institucional dessas organizações. Estas mudanças tiveram
reflexos sobre a estrutura das atividades desenvolvidas (Laville et al., 1997,
pp. 326-331), agora redefinida em função das prerrogativas estatais. As
transformações registadas acentuaram igualmente modos de trabalho mais próximos
das entidades com fins lucrativos, na procura da eficácia e da eficiência, de
uma gestão racional (mesmo que não lucrativa) dos recursos conseguidos e um
aumento da produtividade no seio de equipas que deviam ser qualificadas,
empreendedoras, flexíveis, responsáveis e inovadoras (mesmo que raramente bem
pagas).
Percurso metodológico
Este artigo baseia-se numa investigação qualitativa inscrita no paradigma
interpretativo (Lessard-Hébert, Goyette, & Boutin, 2005), assente num
estudo de caso, entendido como uma pesquisa detalhada de um objeto específico
(Bogdan & Biklen, 1982; Yin, 1994). O estudo incidiu sobre uma política
pública ' a educação e formação de adultos (Grupo de Missão para o
Desenvolvimento da Educação e Formação de Adultos, 2001) ' concretizada no
terreno por uma associação de desenvolvimento local. No âmbito desta
investigação, este texto procurou encontrar respostas para a seguinte questão:
como é que os agentes de uma associação de desenvolvimento local (uma
organização do terceiro setor) interpretam o papel de mediação levado a cabo
por essa associação, aquando da implementação de ofertas públicas de educação e
formação de adultos (no que remete especificamente para as relações
estabelecidas com o Estado)? A hipótese de trabalho destacou as parcerias
estabelecidas entre essa associação e o Estado, estando essas assentes numa
conceção complexa de organização da sociedade civil como "extensão de serviços
de educação de adultos públicos" (Lima, 2012) dotada, todavia, de um discurso
de educação crítica e transformadora, bem como "entidade do terceiro setor
profissionalizada de prestação de serviços de educação, formação e aprendizagem
ao longo da vida" (Laville et al., 1997).
Os dados mobilizados na redação deste artigo resultaram de seis entrevistas a
atores dessa associação, nomeadamente dirigentes (2) e técnicos (4). A
preferência por entrevistas semiestruturadas favoreceu o confronto dos sentidos
atribuídos pelos entrevistados a certos acontecimentos, práticas, contextos,
etc. (Lessard-Hébert, Goyette, & Boutin, 2005) e permitiu privilegiar os
discursos e as representações dos indivíduos que participaram no
desenvolvimento de uma oferta pública específica de educação de adultos,
designadamente Cursos de Educação e Formação de Adultos, entre 2001 e 2005.
Recorreu-se igualmente à análise documental, designadamente de textos escritos
sobre a atividade da associação (por exemplo, os estatutos da associação, os
relatórios de execução de projetos e os levantamentos de necessidades de
educação e formação).
Depois de obtidas, estas informações foram sujeitas à análise de conteúdo
categorial (Bardin, 1977), tendo estas categorias sido definidas a posteriori,
após leitura das entrevistas transcritas. Foram utilizados neste texto dados
associados à categoria intervenção da associação na educação de adultos, no
quadro da política pública, nomeadamente no que remeteu para as subcategorias
finalidades da associação, projeto educativo e papel dos agentes da educação e
formação de adultos.
Uma associação de desenvolvimento local entre a pedra e a corrente
A associação de desenvolvimento local1 tinha por objetivo principal "promover o
desenvolvimento rural integrado" (Art.º 2.º dos Estatutos), de acordo com um
entendimento abrangente desta ideia. Assim, segundo um dos entrevistados,
[Quanto aos objetivos perseguidos pela associação] Posso resumi-los a
um mais alargado que é o desenvolvimento rural integrado, ou seja a
melhoria das condições de vida das populações do meio rural,
essencialmente. Desde as condições de habitação das populações, dos
núcleos rurais mais concentrados na montanha, onde há mais
dificuldades; as condições económicas, como a possibilidade de
apoiarmos pequenas e médias indústrias; o artesanato; os produtos
locais; o turismo rural... (...) Desde logo, parte da promoção [de
produtos locais] também; damos apoio para que a nossa região, o nosso
produto, o nosso património seja divulgado e promovido, não só ao
nível interno, mas ao nível externo, porque também temos participado
em várias feiras temáticas no estrangeiro [E(T)1].
A associação foi fundada em 1991, partindo da iniciativa de cinco pessoas (que
exerciam funções em entidades públicas locais), na sequência da implementação
de um Plano de Desenvolvimento Agrário Regional (PDAR), neste caso específico
para o Alto Cávado. Este documento preconizou a constituição ao nível regional
de uma entidade privada de desenvolvimento rural. A partir de então e seguindo
uma tendência evidente para o caso de outras entidades do género (Monteiro,
2004), a associação efetuou uma candidatura ao Programa de Iniciativa
Comunitária LEADER I. A sua aprovação e consequente implementação permitiu até
2007 a realização de 232 projetos em áreas tão diversificadas como o apoio
técnico, a formação profissional e a educação de adultos, o turismo em meio
rural, o artesanato e a criação de pequenas e médias empresas, a promoção dos
produtos agrícolas locais e a proteção do ambiente (Lima, Guimarães, &
Oliveira, 2007). Apesar de se apresentar como uma entidade da sociedade civil,
as sucessivas candidaturas evidenciavam o papel de mediação de uma "organização
enquanto extensão burocrática de serviços sociais orientada para a gestão de
problemas sociais específicos" (Lima, 2012), afastando possibilidades de
realização de ações de educação crítica e transformadora, de promoção da
cidadania democrática e da participação.
Não sendo a realização de iniciativas de educação de adultos a principal
finalidade da associação, as ações dirigidas aos adultos aumentaram em número
desde meados da década de 1990, em resposta às oportunidades concedidas pelos
programas existentes e às características da comunidade local. Devido a este
facto, esta associação nunca possuiu um projeto educativo coerente e arreigado
nas finalidades que melhor a caracterizavam, revelando uma orientação auto-
centrada em objetivos inicialmente estabelecidos, na consolidação, no
alargamento e no enriquecimento de uma estrutura organizacional e de gestão
característica da intervenção de outras associações de desenvolvimento local
(Monteiro, 2004, pp. 235-236). Como afirmou um dos inquiridos,
Para mim, aquilo que eu vejo como principal objetivo da [associação]
é o desenvolvimento rural. Portanto, há algum tipo de formação que
não vai muito no sentido do desenvolvimento rural, mas isso também
tem a ver com o facto de as instituições terem que sobreviver e têm
que ter um leque abrangente de atividades paralelas para poderem ir
mexendo com o meio [E(T)4].
Nesta ordem de ideias, a educação e a formação eram vistas como instrumentos de
gestão social do (pouco) emprego existente e do (crescente) desemprego, mesmo
que, ao longo da sua história, estes domínios tivessem maior peso na
intervenção da associação. Neste sentido, parecia existir um efeito induzido
(Guimarães, Silva, & Sancho, 2006), uma propensão sugerida pelo Estado
(Lima, 2012) para a adesão a finalidades relacionadas com a educação de adultos
estabelecidas aos níveis nacional ou supranacional que tinham no controlo e na
regulação social aspetos essenciais. De facto, eram a educação de base (de
segunda oportunidade) e a formação profissional (com vista à inserção e
manutenção dos sujeito no mercado de trabalho, à promoção do crescimento
económico e ao aumento da produtividade) que dominavam as ações implementadas
(Guimarães, 2011).
Este efeito induzido pelo Estado tinha como resultado uma adaptação estratégica
da associação a objetivos, valores e formas de trabalho que podiam não ser
imediatamente articuláveis com as preocupações que levaram à sua criação,
nomeadamente aquelas relacionadas com o desenvolvimento rural integrado, bem
como com a cidadania democrática, a participação e transformação social. De
resto, esta desarticulação era evidente sobretudo no caso das ações de formação
profissional, em muitos casos definidas pelos serviços estatais responsáveis,
como o Instituto de Emprego e Formação Profissional, mas frequentemente
desadequadas face aos problemas e necessidades sentidos localmente. Apesar
desta situação, esses eram os valores, os objetivos e as formas de trabalho
assumidos e raramente questionados. Esta circunstância atribuía um elevado grau
de profissionalização a esta entidade, favorecendo o estatuto de entidade bem
sucedida: esta associação apresentava-se muito dinâmica na implementação de
ações, mesmo que mais ou menos ligadas ao desenvolvimento rural integrado
(Guimarães, 2011), e, em decorrência, via aumentado o reconhecimento social
concedido pelas comunidades locais. Como foi dito por um dos entrevistados:
A associação tem feito um trabalho bom, bem feito, bastante bem, tem
coisas muito boas. Tem marcado a sua área de atuação, está bem
marcada na região, tem espaço para trabalhar e é necessária à região.
(...) Vejo também que os associados da [associação], aqueles mais
importantes, também reconhecem esse papel e é importante em termos de
futuro. E acho que isso é a base de sustentação da [associação] (...)
[E(T)2].
No caso da política pública de educação e formação de adultos, a adaptação a
objetivos e procedimentos dos programas da UE e do Estado português era uma
condição inerente à articulação entre a lógica de serviço público e a lógica de
programa. Consequentemente, esta adaptação escondia um outro problema de maior
amplitude. Este relacionava-se com a dificuldade que a associação parecia
manifestar em reinterpretar e recontextualizar as orientações e as normas
associadas a estes programas e, em particular, em possuir um projeto educativo
que contemplasse outras modalidades e iniciativas de educação de adultos de
características mais críticas e emancipatórias. Estas razões levavam a que a
sua intervenção local assentasse num esforço de devolução estatal (Lima, 2012)
de iniciativas que apostavam na promoção da educação de base e da formação
profissional de caráter inicial.
Em simultâneo, verificava-se o abandono da possibilidade de uma intervenção
alternativa, mais próxima e significativa das comunidades locais e dos adultos,
tal como de desenvolvimento de iniciativas de educação crítica, fomentadoras de
participação ativa transformadora e de maior consciência social. Registava-se
por isso pouca diversidade e heterogeneidade de ações de educação de adultos.
Na verdade, a associação encontrava-se refém das políticas públicas. Esta era
também uma circunstância que deixava a educação de adultos mais pobre, dado que
não eram pensadas oportunidades inovadoras de ação educativa local. No fundo,
este era um quadro no qual se reforçavam a subordinação do terceiro setor a
agendas estatais, remetendo-o para um papel de auxiliador e favorecedor da
gestão social de problemas como o desemprego num Estado social em retração.
Devido ao peso desta subordinação, assistia-se a uma dramática diminuição de
possibilidades de mudança social através de dispositivos de educação
problematizadora e de criação de modos de produzir e viver inovadores
(Guimarães, 2011).
O papel dos agentes da educação e formação de adultos na sobrevivência da
associação
Ao contrário de muitas outras entidades sem fins lucrativos que revelavam
dificuldades no acesso a oportunidades de financiamento (Guimarães, Silva,
& Sancho, 2006; Rothes, 2009), desde a sua criação, esta associação
desenvolveu saberes e capacidades que lhe garantiram o sucesso das candidaturas
que efetuava e dos projetos nos quais se envolvia. Este capital de candidatura
(Rothes, 2009) estava enraizado em novas formas de governação implementadas
recentemente. De caráter isomórfico, estas formas incluíam procedimentos de
candidatura a diversas iniciativas nacionais e supranacionais, tarefas de
monitorização e acompanhamento do trabalho levado a cabo, assim como atividades
ligadas à auditoria, à prestação de contas e à avaliação do impacto local das
ações desenvolvidas medido a partir de inúmeros indicadores previamente
estabelecidos (Guimarães, 2011). Estas eram tarefas que se afastavam de
possibilidades de autogoverno, de participação ativa em processos políticos, de
oportunidades de democratização da democracia formal (Lima, 2012).
Por estas razões, esta organização oscilava entre uma entidade que integrava
dimensões típicas de uma associação de tipo popular, cultural e recreativo,
adotando práticas de mobilização dos associados, dirigentes, etc., de liderança
participada e militância, e outras dimensões associáveis a uma instituição mais
estruturada, formalizada, mais próximas de uma empresa de formação. Quando
interrogados sobre o ethos da associação (enquanto associação popular' ou
empresa de formação'), diversos inquiridos afirmaram que ela se aproximava de
uma empresa, devido aos objetivos prosseguidos, ao grau de formalização e
centralização do poder, ao planeamento, à capacidade de intervenção técnica,
aos encargos financeiros, aos vínculos laborais, à competitividade inerente à
participação em concursos de projetos. Simultaneamente, alguns discursos ainda
apontavam para certos ideários políticos de emancipação social, de ativismo e
mobilização voluntária. Denotando o estatuto híbrido da organização em causa,
um dos inquiridos (dirigente) defendia a existência de "técnicos-militantes,
que não podiam assumir-se como funcionários públicos, mas que deveriam possuir
um forte espírito de missão" [E(D)1]. A associação era igualmente representada
por um outro entrevistado (também dirigente) como "uma empresa, na qual os
técnicos deveriam ter amor à camisola" [E(D)2]. Pelo seu lado, os técnicos
possuíam opiniões que situavam a associação bem mais próxima de uma entidade
com fins lucrativos. Assim, relativamente ao funcionamento e à intervenção
destes agentes, houve quem dissesse que esta entidade "nada tinha a ver com uma
associação" [E(T)3] e que "não podia estar do lado do voluntarismo. Exigia
competências técnicas de nível superior" [E(T)2] (Lima, Guimarães, &
Oliveira, 2007, pp. 33-34).
Não sendo possível afirmar que a associação estudada era uma entidade orientada
para o mercado, possuidora de objetivos que se dirigiam para a resolução de
problemas apresentados pelos consumidores, as novas formas de regulação
impostas induziam a existência de parcerias subordinadas a agendas públicas de
gestão de profundas transformações (económicas e sociais) ocorridas ao nível
local. De um lado, estas formas de regulação eram justificadas pela necessidade
de controlar e avaliar a qualidade do trabalho de entidades não-estatais,
garantindo eficácia e eficiência relativamente aos objetivos estabelecidos.
Estes modos de intervir aproximavam o funcionamento desta associação do de
outras de características marcadamente empresariais (Lima, 2012) e traduziam um
maior grau de profissionalização aos agentes que nela trabalhavam.
Esta aproximação a valores de gestão empresarial, no qual se aprofundava a
orientação autocentrada da entidade (Monteiro, 2004), envolvia diversos
problemas. Um primeiro relacionava-se com a adesão a normas inerentes aos
programas de financiamento. De facto, se estas garantiam a sustentabilidade da
associação, surgiam como um dos mais significativos entraves à sua existência.
A necessidade de conhecer as estratégias para tornar os projetos candidatados
em ações aprovadas encerrava um dilema: ou a associação se adaptava a novas
formas de regulação definidas externamente e procurava operar através do
recurso a formas de ação tecnicizadas e burocratizadas (que podiam não ser
totalmente consentâneas com as finalidades com que foi estabelecida, e até com
os objetivos mais significativos para as comunidades locais), ou reinterpretava
modos de trabalho que respeitavam a autonomia individual e coletiva, o
autogoverno, a democracia participativa (e não conseguia oferecer muitas das
atividades que promovia, manter os profissionais, etc.). Em boa verdade, apesar
da existência de associados e das respetivas quotas de participação, era nos
financiamentos externos que a associação obtinha os recursos que garantiam a
sua existência. Consequentemente, eram multiplicadas as responsabilidades,
acrescentando objetivos e estratégias de intervenção que nem sempre eram
associáveis às suas finalidades originais. Como referiu um dos entrevistados ao
comparar o trabalho levado a cabo em meados da década de 1990 com aquele
desenvolvido na atualidade: "Quando o LEADER apareceu e eu comecei a trabalhar
nisto, éramos muito mais aguerridos. O desenvolvimento local era mais
aguerrido" [E(T)2]. Ou ainda, como foi acrescentado,
Toda a primeira fase do Programa LEADER foi uma maravilha. Tínhamos
muito trabalho no terreno. Trabalhávamos com as pessoas. Tínhamos
tempo para detetar projetos, pessoas que queriam investir. Tínhamos
mais tempo para a sensibilização, para a área do que chamávamos a
extensão rural, de mobilizar as pessoas. (...) Nos primeiros tempos
em que eu comecei a trabalhar aí num centro, se calhar foi o trabalho
que mais gozo me deu em termos de desenvolvimento rural; foi mesmo um
trabalho que começou... ir ali com um carrinho, um caderninho: "O que
quer? O que precisa?" foi mesmo um trabalho que começou de baixo
para cima. É aquilo que eu hoje não consigo fazer" [E(T)2].
Um segundo problema (decorrente deste primeiro) ligava-se ao impacto destas
formas de regulação no quotidiano da associação. As estratégias profissionais
que se orientavam para a adaptação e acomodação desta organização a orientações
definidas ao nível mega (nomeadamente pela União Europeia) e ao nível macro
(com origem no Estado português) surgiam como uma exigência, aprisionando os
agentes a inúmeras tarefas técnicas e obrigando à reserva de muito tempo para a
conservação das parcerias com o Estado. Estabelecia-se assim um ciclo vicioso
de cultura de contrato (Field, 2006) que alimentava a devolução estatal (Lima,
2012) e impunha uma vigilância constante. Como foi referido, "Nós estamos
sempre em contacto com os vários programas e sempre que nos surja uma
candidatura, uma possibilidade, nós fazemos... estamos atentos. Esta
candidatura tem interesse, vamos apresentá-la" [E(T)1].
Diariamente, o trabalho realizado por esta associação envolvia o
desenvolvimento de um conjunto muito significativo de tarefas de caráter
administrativo, de gestão, de execução, de acompanhamento e de avaliação,
designadamente no caso dos projetos de reabilitação e conservação de património
edificado e natural, bem como daqueles ligados à educação e formação de
adultos. Este trabalho era essencial para esta entidade, pois reforçava o grau
de implantação nas comunidades locais, enquanto assegurava a sua sobrevivência
institucional (Lima & Afonso, 2006). Esta era uma capacidade estratégica
que determinava uma plasticidade de intervenção alargada, uma capacidade de
adaptação induzida e contextualizada relativamente aos programas e aos
procedimentos externamente impostos, ou, como alega Montaño (2002, pp. 208-
215), uma elevada capacidade de obtenção de recursos, que escamoteava os
fundamentos da missão da organização.
O esforço destes agentes tinha na sobrevivência institucional desta entidade um
motivo suficientemente forte para que fossem aceites as imposições que eram
efetuadas quer pelo Estado português, quer pela UE para a educação de adultos.
E, se esta sobrevivência dependia de uma transferência para esta entidade de
níveis de gestão e de administração da provisão educativa que anteriormente
pertenciam ao Estado, esta circunstância não era criticada. Nesta perspetiva,
nunca era questionado o estatuto de organização de mediação que a associação
acabava por merecer no âmbito da concretização de objetivos estatais de gestão
social de problemas como o emprego e o desemprego, a formação e a adaptação de
recursos humanos. Tão pouco era interrogado o facto de esta entidade integrar
modos de funcionamento que a aproximavam das empresas (Lima, 2012), num quadro
de competição com outras entidades congéneres e da procura da excelência das
iniciativas educativas e formativas implementadas (Laville et al., 1997), no
que era designado de boas práticas. Muito menos era problematizada a política
pública de educação de adultos quando integrava ofertas que tinham como
finalidade o crescimento económico, o aumento da produtividade e da
competitividade nacionais, quando regiões como aquela na qual a associação se
inseria não viam contemplados projetos de âmbito local favorecedores de
transformação social e participação democrática.
Reflexões finais
A sociedade civil apresenta-se como uma entidade heterogénea, incluindo
organizações muito diferentes entre si que revelam formas de intervenção também
muito variadas. De entre essas instituições, há associações da sociedade civil
que têm ocupado um lugar de aprendizagem e de promoção da mudança social (Melo
& Benavente, 1978), locus privilegiado da luta de classes (Montaño, 2002),
ao favorecer a eclosão de outros saberes e conhecimentos relevantes para a
participação em lutas diversas e em movimentos de emancipação social, em muitas
circunstâncias desenvolvendo estratégias contra o Estado. De resto, diversos
autores têm valorizado os contributos das associações do terceiro setor para a
dinamização da sociedade civil e da educação de adultos. Estas entidades podem
assumir um papel de contrapoder (Lima & Afonso, 2006). No seu melhor, estas
organizações podem surgir como agentes de transformação social, com uma
intervenção importante aos níveis local, nacional e global. De facto, podem
dinamizar iniciativas que permitem aos indivíduos e às comunidades nas quais se
inserem enfrentar, resistir e mudar as relações de poder que resultam do
desenvolvimento da economia capitalista (Lima, Guimarães, & Oliveira, 2007,
p. 41). Estas organizações têm sido igualmente consideradas relevantes para a
sobrevivência da esfera pública, dado que estão mais sensíveis aos problemas
das populações e são mais conhecedoras das formas de os resolver. À partida,
estas entidades caracterizam-se por gozar de um elevado grau de autonomia
relativamente ao Estado e, neste sentido, estariam melhor preparadas para a
provisão de serviços sociais relevantes para as comunidades locais (Turner,
2001), designadamente de ações de educação crítica, transformadora e
emancipatória.
Todavia, o caso em discussão neste texto procurou ilustrar a hibridez de muitas
das organizações da sociedade civil. De facto, os dados discutidos neste texto
revelam tendências que apontam para fortes tensões e ambivalências na
intervenção de certas organizações da sociedade civil. De um lado, no quadro da
retração do Estado, assiste-se a novas formas de expansão do Estado, através do
aumento da sua atividade interventora e reguladora. Em domínios como a educação
de adultos, diferentes organizações formalmente não estatais assumem
orientações e formas de ação até recentemente associadas ao Estado,
nomeadamente no âmbito da educação de base. Num esforço de devolução estatal, a
associação estudada passou a exercer poderes tradicionalmente públicos,
designadamente no contributo para a certificação escolar, transformando-se,
através da ação do Estado, numa entidade para-estatal ou numa extensão de
serviços estatais. Nestas circunstâncias, como afirma Santos (1990), a
distinção entre Estado e sociedade civil torna-se problemática, "tal como se
torna cada vez mais difícil determinar onde acaba o Estado e a sociedade civil
começa" (p. 24): o Estado retrai-se de áreas de intervenção mais tradicionais
(por exemplo, do Estado-providência) e expande-se sob a forma de sociedade
civil.
Segundo esta perspetiva, o projeto de investigação base deste artigo procurou
ilustrar como uma organização do terceiro setor, uma associação de
desenvolvimento local que possuía uma forte ligação às comunidades locais nas
quais intervinha, adotou estratégias de mediação, no âmbito de parcerias
estabelecidas com o Estado e com a União Europeia, passando a partilhar
igualmente com as empresas algumas características. Esta circunstância levantou
diversas questões sobre a independência e a sua capacidade de desenvolver
projetos educativos de caráter emancipatório e de resolução de problemas
sentidos pelas populações locais. No fundo, o que o caso analisado procurou
mostrar foi que, no quadro da retração/expansão do Estado e do fomento às
parcerias, o terceiro setor apresentou-se com um espaço no qual era possível
encontrar processos educativos marcadamente instrumentais, dinamizados através
de políticas orientadas para a gestão social do emprego e do desemprego, bem
como para o crescimento económico, para o aumento da produtividade e para a
competitividade. Neste sentido, este artigo destacou as estratégias adaptativas
e gerencialistas às quais uma entidade do terceiro setor aderiu. Estas
estratégias levaram a que esta organização desenvolvesse sobretudo processos de
controlo e regulação social (Guimarães, 2011; Lima, 2012).
Este artigo procurou debruçar-se sobre as profundas transformações ocorridas no
terceiro setor com intervenção na educação de adultos, acompanhadas pela erosão
do movimento associativo. Nestas transformações, pareceu registar-se uma
crescente importância atribuída à captação de recursos financeiros e à
profissionalização das entidades, bem como, simultaneamente, uma progressiva
dependência face ao Estado e aos poderes públicos, acompanhada de uma adaptação
a modos de regulação mais característicos das empresas (Guimarães, 2011). Em
boa verdade, nos tempos mais recentes, o terceiro setor parece ter contrariado
os motivos que levaram ao seu surgimento ainda no século XIX. Emergiu como um
parceiro na implementação de políticas sociais, como extensão de serviços
públicos', regendo-se por critérios de eficácia e eficiência, mas raramente
assumindo o seu papel de coprodutor de orientações políticas e programas de
ação de autogestão e participação social. Por isso, no quadro do
condicionamento das entidades do terceiro sector a orientações de devolução
estatal e da construção de um mercado de aprendizagem que implica uma crise de
valores associativos de resistência e de oposição ao Estado e de modos de
funcionamento mais democráticos, são cada vez mais exíguos os espaços que
favorecem a existência de associações promotoras de educação crítica e
transformadora.