Mau trato e negligência parental: contributos para a definição social dos
conceitos
A análise da evolução histórica do mau trato mostra que, só a partir da
publicação do artigo "The battered-child syndrome" (Kempe e outros, 1962) numa
revista médica, é que se começou a manifestar interesse científico por esta
área, sendo a questão da definição dos conceitos em estudo um objecto de
análise que só aparece posteriormente.
Por volta da data da publicação deste artigo, e até aos finais dos anos 70, a
investigação estava centrada sobretudo nas manifestações físicas do mau trato,
sendo este definido quase exclusivamente a partir das sequelas físicas
observadas nas crianças.
No princípio dos anos 80, embora a investigação do mau trato físico prevaleça
relativamente a outras formas de abuso, aparecem as primeiras definições do mau
trato psicológico e da negligência, e inicia-se a investigação sobre o
construto de mau trato, sobretudo nos meios técnico e institucional.
Porém, é só na década de 90 que os investigadores se apropriam da área da
definição, até aí deixada aos técnicos, e começam a alertar a comunidade
técnica e científica para a questão da operacionalização e avaliação dos
diferentes tipos de práticas parentais abusivas (McGee e Wolfe, 1991; Wolfe,
1991; Zigler e Hall, 1989). O mau trato e a negligência continuam, no entanto,
a representar construtos que agregam pouco consenso, quer entre técnicos quer
entre investigadores, o que tem dificultado a formulação e execução do trabalho
nesta área. Para os práticos, a definição de mau trato e de negligência afecta
a maneira como os casos são classificados, a decisão de os referenciar e a
tomada de decisão sobre a intervenção. No contexto de investigação, a
inconsistência das definições tem dificultado a revisão e integração da
literatura, assim como a constituição das amostras, a avaliação do problema, o
estabelecimento de relações consistentes entre variáveis e a generalização e
comparação de resultados.
O facto de só recentemente se começarem a operacionalizar formas específicas e
subtipos de mau trato e de negligência (Manly e outros, 1994) tem, entretanto,
contribuído para que a investigação sobre a definição destes subtipos seja, em
termos conceptuais e metodológicos, uma área polémica. As controvérsias
assentam no facto de as definições técnicas, quer sejam legais, sociais ou
médicas, serem vagas, não só a nível das categorias que as compõem e das
fronteiras que as limitam, como na avaliação da sua intencionalidade, e ainda
nos critérios específicos relativamente ao que constitui os vários graus ou
tipos de perigo (Giovannoni, 1989; Knutson, 1995), não existindo até à data
modelos integradores.
No âmbito da psicologia, dado que o tema tem sido abordado do ponto de vista da
psicologia do desenvolvimento, no que diz respeito à definição e avaliação dos
construtos envolvidos, a investigação que utiliza parâmetros de desenvolvimento
e que é utilizada para fins académicos tem sido bastante questionada no que diz
respeito à utilidade e validade que pode ter na compreensão do mau trato, tal
como é conceptualizado pelos pais, técnicos e instituições (Giovannoni, 1989).
Segundo o autor, as definições dos investigadores desenvolvimentistas são puras
no sentido científico, mas são ineficazes e inapropriadas fora do contexto de
investigação.
Neste sentido, e dado que o mau trato e a negligência são conceptualizados na
literatura como ancorados pelos quadros específicos em que são definidos
(instituições, técnicos, senso comum e investigadores) e em que se desenvolvem,
inserimos o estudo no quadro da psicologia social do desenvolvimento.
Em primeiro lugar, porque as diferentes definições e as dimensões em que o
construto se organiza têm reflectido, não só as diversas fontes científicas
(médicas, psicológicas, legais, etc.) e a sua evolução, como uma série de
outros factores: o tempo histórico (Ariès, 1960; 1962; Ariés e Duby, 1990;
Badinter, s/d; Dubowitz e Newberger, 1989; Radbill, 1987), a cultura e
legislação, (Korbin, 1980; 1987), as diferentes disciplinas e instituições
envolvidas (Giovannoni, 1989; Giovannoni e Becerra, 1979), assim como com os
próprios investigadores (Ammerman, 1990; Knutson, 1995; Wolfe e McGee, 1994).
Por outro lado, uma vez que as definições do problema reflectem o sistema
conceptual dos indivíduos, a compreensão do mau trato e da negligência
pressupõe a análise do processo e do estado actual da negociação social desta
realidade, bem como a importância dada aos actores sociais (população,
técnicos, instituições) nessa negociação (Moscovici e Hewstone, 1984), na sua
definição, na análise das suas causas, intervenção, prevenção, etc., pois é a
este processo negocial que se irão buscar posteriormente as dimensões para a
construção de um questionário.
Em segundo lugar, o contexto dominante em que o mau trato e a negligência se
desenvolvem interacção pais-filhos tem vindo a ser analisado através dos
quadros sociais em que o processo educativo decorre, integrando os três
sistemas principais de interacção pais, criança, meio, em diferentes níveis
de análise psico-sociais (Doise, 1982).
Em suma, inerente às definições prevalece a noção de que o mau trato é um
construto mais relativo do que absoluto, devido ao facto de os padrões
comunitários sobre o que é educar e quais os cuidados necessários a ter com as
crianças reflectirem as atitudes públicas, e diferentes pontos de vista entre
diferentes grupos, em relação ao que é essencial para a criança e o que
prejudica o seu bem-estar e futuro desenvolvimento (Giovannoni e Becerra,
1979). Desta forma, a definição e identificação do mau trato e da negligência
inscrevem-se numa área indefinida cujas fronteiras têm vindo a variar em função
dos valores que regem os diferentes contextos em que o problema tem sido
abordado. A literatura disponível que de seguida se apresenta é reflexo disso
mesmo, o que nos conduziu à sua análise tendo em consideração dois contextos
o contexto institucional e o contexto cultural.
O contexto institucional
Embora a referência ao mau trato comece a aparecer nos finais do século XIX,
altura em que nos Estados Unidos se reconhece, pela primeira vez, a existência
do mau trato a crianças (Giovannoni, 1989; Zigler e Hall, 1989), é após a
primeira guerra mundial que a comunidade internacional desperta para a
protecção à infância. A necessidade de garantir uma protecção especial à
criança é referida na Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança,
(aprovada pela Sociedade das Nações em 1924), contemplada na Declaração dos
Direitos da Criança de 1959 pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Convenção
dos Direitos da Criança, 1990). É neste contexto que diferentes países começam
a definir os serviços que daí em diante foram os responsáveis pela intervenção
específica no problema serviços médicos, sociais, psicológicos e jurídicos
(Radbill, 1987).
Uma vez que as definições técnicas estão associadas aos objectivos
institucionais, aos contextos e funções dos diferentes técnicos envolvidos,
actualmente são quatro as perspectivas teóricas mais relevantes sobre a
definição da criança maltratada (Aber e Zigler, 1981; Giovannoni e Becerra,
1979) neste domínio. Cada uma destas definições deriva de diferentes teorias
sobre as causas, as consequências e a intervenção no problema, e por isso
divergem sobre que características devem ser enfatizadas (Aber e Zigler, 1981).
Na primeira perspectiva a ser articulada a perspectiva médica o objectivo
da definição está associado à necessidade de se fazer um diagnóstico, sendo
central a ideia de que o mau trato é o sintoma de uma patologia dos pais.
Assim, os diagnósticos médicos são relativamente objectivos no estabelecimento
das fronteiras da doença, sendo no entanto menos claros no que se refere à
intervenção.
A definição médica é restrita e caracteriza-se essencialmente pela inclusão das
consequências dos actos parentais para a criança, sendo estas avaliadas pelas
sevícias que são observadas e enquadradas numa determinada posologia.
Relativamente aos factores precipitadores, a definição médica enquadra-se num
modelo etiológico que atribui importância à psicopatologia parental e à
intencionalidade dos seus actos.
Na segunda perspectiva a perspectiva sociológica a definição emerge, em
parte como uma reacção e crítica ao modelo médico (Giovannoni e Becerra, 1979).
O aspecto central da perspectiva sociológica é a noção de que o mau trato e a
negligência implicam um contexto e um julgamento social e por isso a definição
inclui os actos parentais que são considerados inapropriados pelas práticas e
padrões da comunidade.
As definições que decorrem desta perspectiva atribuem, assim, importância à
identificação das práticas parentais e à eventual responsabilidade dos
profissionais em decidirem quando é que os pais devem ser rotulados como
maltratantes e forçados a sofrerem uma intervenção. Desta forma, as decisões
relativamente aos aspectos da definição são melhor resolvidas através do
questionamento da opinião pública e profissional sobre que tipos de actos
parentais devem ser considerados inaceitáveis. Segundo esta tradição, a ênfase
dos actos parentais na definição, ao contrário da anterior, pretende uma
despatologização parental do mau trato e o exame sobre o papel da sociedade na
perpetuação do mesmo. Além disso, nesta perspectiva, as definições são amplas e
incluem um grande número de acções e de omissões parentais que podem
diferentemente afectar a criança.
A terceira perspectiva a emergir foi a definição legal e o seu objectivo é
estabelecer padrões claros em relação às acções parentais que justifiquem a
intervenção do tribunal. A este nível constata-se contudo uma grande
variabilidade entre os países.
Em Portugal, a definição legal de mau trato pressupõe objectivos e momentos de
intervenção diferenciados, através do Direito da Família (1995), da Organização
Tutelar de Menores (1992) e do Código Penal(1996).
A definição jurídica integra, no seu conjunto, não só as situações que possam
causar perigo para a criança (actos parentais ou situações de vida), como os
danos/consequências já observados na criança. No Direito da Família, (Código
Civil, 1995), ao definir-se o conteúdo do poder paternal, refere-se
especificamente que aos pais compete, entre outras coisas, cuidar da segurança
e da saúde dos filhos, referindo expressamente o art. 1918.º que o tribunal
pode actuar quando a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação do
menor se encontram em perigo.
A nível da Organização Tutelar de Menores (OTM), aos tribunais de menores
cumpre aplicar medidas tutelares quando os menores (em princípio dos 0 aos 18
anos) "sejam vítimas de maus tratos, de abandono ou desamparo ou se encontrem
em situações capazes de pôr em perigo a sua saúde, segurança, educação ou
moralidade" (alínea a), art.º15.º.
Nas definições legais a intencionalidade e o carácter não acidental dos actos
parentais são o critério por excelência de distinção entre negligência e mau
trato. Segundo o art. 153.º do Código Penal (1996):
os pais de menores de 16 anos ( ) serão punidos ( ) quando, devido a malvadez
ou egoísmo, lhes infligirem maus tratos físicos, os tratem cruelmente, não lhes
prestem os cuidados de saúde necessários ( )". São também sujeitos a pena no
caso de "empregarem as crianças em actividades perigosas, proibidas ou
desumanas, ou as sobrecarregarem, física ou intelectualmente, com trabalhos
excessivos ou inadequados de forma a criar danos na saúde, no desenvolvimento
intelectual, ou expondo-as a grave perigo.
Da análise deste preceito podemos depreender que é elemento central da
definição um dolo específico que decorre precisamente do egoísmo ou da
malvadez.
Por último, as conceptualizações da área da psicologia têm definido os
construtos de mau trato e negligência, ora através do julgamento dos
comportamentos parentais actos e omissões respectivamente (Baily e Baily,
1986; McGee e Wolfe, 1991; Wolfe e McGee, 1994), quer a partir dos efeitos
resultantes destes comportamentos e omissões para a criança (psicológicos ou
físicos) (Brassard e outros, 1987), quer ainda com base nos efeitos decorrentes
da interacção entre a criança, os pais e a comunidade (Garbarino e outros,
1986; Giovannoni, 1989), e tem envolvido três tópicos interrelacionados: 1) as
dimensões ou subtipos em que se organizam as diferentes formas de mau trato; 2)
os critérios com que se fazem as definições (comportamento parental versus as
consequências para a criança); e 3) os objectivos que as próprias definições
servem intervenção clínica ou diagnóstico para decisão judicial.
A literatura específica que foca directamente a questão da definição técnica
tem origem em diferentes processos de investigação, que apontam para uma série
de factores que influenciam as percepções e as definições do mau trato e
negligência. A análise que aqui se efectua, à semelhança das revisões de
literatura que se debruçam sobre esta questão, decorre dos estudos sobre
incidência (Giovannoni, 1989; Groeneveld e Giovannoni, 1977 [citados em
Giovannoni, 1989]), das investigações sobre as tomadas de decisão dos técnicos
para referenciar situações (Barksdale, 1989; Brosig e Kalichman, 1992a; 1992b),
e ainda das investigações específicas a definição (Almeida, André e Almeida,
1999, Bilingsley e outros, 1969; Giovannoni e Becerra, 1979), onde se analisam
factores situacionais da família e da criança e circunstâncias associadas ao
mau trato e à negligência.
Os estudos sobre incidência do mau trato e negligência nos Estados Unidos
denotam bem a variação que existe nas frequências de incidência e na
consubstanciação das situações em função dos diferentes referentes (Giovannoni,
1989), contextos institucionais e funções dos serviços envolvidos (educação,
saúde e legal). A incidência varia também em função de outros factores, como o
facto de a zona ser rural, urbana ou suburbana. As zonas rurais apresentam a
incidência mais elevada de casos consubstanciados, ao contrário das zonas
suburbanas que apresentam a incidência mais baixa, sabendo-se no entanto que o
nível de recursos e serviços de cada região influencia por si só o
comportamento de relatar (Giovannoni, 1989). Num estudo que realizámos
concluímos que as crianças que frequentam menos serviços da comunidade local, e
que por isso se encontram menos inseridas e protegidas pelas instituições, são
aquelas que mais facilmente os técnicos referenciaram para as instituições de
protecção de menores (Calheiros, 1996).
Estes estudos, que questionam a incidência do mau trato e a questão da
referenciação por parte dos técnicos, indicam que a tendência para relatar a
suspeita de mau trato é influenciada por questões externas, tais como a
avaliação que os técnicos fazem sobre a qualidade e a disponibilidade dos
serviços de protecção, variando em função das comunidades (De Angelis, 1990), e
o evitamento de problemas legais, a ambiguidade do estatuto legal, a
terminologia, estatuto e requerimentos legais (Brosig e Kalichman, 1992b). Por
outro lado, relativamente às características dos técnicos, salientam-se o
conhecimento sobre as leis, os anos de experiência na profissão, a prática em
lidar com casos de mau trato e as atitudes e experiências relacionadas com
funções oficiais anteriormente desempenhadas (Barksdale, 1989; Brosig e
Kalichman, 1992a; 1992b).
Já a um outro nível de análise, as investigações que avaliam os efeitos da
profissão e da instituição sobre as representações e definições técnicas do mau
trato e da negligência não são tão conclusivas como as anteriores. O estudo de
Giovannoni e Becerra (1979) é um dos estudos mais importantes que foram
desenvolvidos na área da definição interprofissional (pediatras, advogados,
assistentes sociais e polícias) e de senso comum do mau trato e da negligência.
Os resultados indicam um grau elevado de consistência entre os diferentes
grupos. Todos concordaram que o mau trato não é uma entidade única, sendo os
actos parentais agrupados de forma consistente em diferentes categorias. Além
disso, todos os grupos concordaram com o facto de os actos de mau trato e de
negligência não serem igualmente graves no seu impacte na criança. Havia
diferenças dentro e entre os grupos na avaliação do nível de gravidade
atribuído a cada um, no entanto havia acordo em relação à hierarquia de
gravidade: abuso físico, abuso sexual, comportamentos parentais promotores de
delinquência, falta de supervisão, mau trato emocional, uso de droga e álcool,
não responder às necessidades físicas, negligência na educação e códigos de
conduta parentais desviantes.
Esta análise sugere, no quadro da população americana, que os técnicos, na sua
generalidade, não estão tanto em desacordo sobre as definições de mau trato nem
sugerem o caos da definição que parece deduzir-se dos estudos sobre incidência,
pois percebem as comunalidades entre diferentes tipos de acções e concordam
substancialmente com a gravidade relativa de cada uma das subcategorias
analisadas. Por isso, há que distinguir os estudos sobre definição a partir das
incidências relatadas (Giovannoni, 1989; Groeneveld e Giovannoni, 1977 [citados
em Giovannoni, 1989]), dos estudos específicos sobre definição (Bilingsley e
outros, 1969; Giovannoni e Becerra, 1979).
Em Portugal a literatura sobre a definição técnica do mau trato e da
negligência é ainda escassa. Contudo, com o objectivo de construir uma
tipologia de formas de abuso e de negligência, Almeida e colegas, em 1999,
realizaram um estudo com profissionais da infância na área da saúde, educação e
serviço social. A saliência de diferentes formas de mau trato em função das
profissões e das instituições, não só confirma a diversidade de definições como
a importância que outro tipo de factores representam na construção destes
construtos, ou seja, o contexto envolvente.
As áreas da negligência na saúde, alimentação, higiene e acompanhamento escolar
são destacadas pelos técnicos de serviço social; as rotinas do dia-a-dia da
criança são valorizadas pelos educadores de infância e professores; enquanto
que os profissionais de saúde, embora apresentem definições mais amplas que os
outros profissionais, parecem estar sobretudo preocupados com as questões
ligadas ao desenvolvimento peri e neo natal e com o abuso sexual.
Quando se tomam os factores situacionais da família e da criança em
consideração, o que sobressai é o seguinte: embora o género da criança não
pareça influenciar, quer as representações que os técnicos têm do mau trato e
da negligência, quer a tendência para referenciarem as situações, a idade da
vítima influencia (Calheiros, 1996; Giovannoni, 1989; Kalichman e outros,
1990). No estudo de Kalichman e colegas, médicos e psicólogos referiam uma
mesma situação de mau trato com mais frequência quando esta dizia respeito a
crianças com idades inferiores a sete anos do que quando eram mais velhas. O
estudo desenvolvido pelo US Department of Health and Human Services em 1981
(Giovannoni, 1989), sobre os dados relativos às características das crianças
conclui que a idade das crianças e o tipo de mau trato definido eram as
características que mais distinguiam os grupos (casos relatados/não relatados):
60% das crianças com menos de seis anos tinham sido assinaladas, enquanto 78%
das crianças entre os seis e 12 anos não o tinham sido. Menos de 25% dos casos
designados como mau trato emocional, negligência emocional ou negligência
educacional, tinham sido sinalizados.
Outra variável que parece ser importante é a classe social e o grupo étnico da
família e da criança. Por exemplo, Newberger (1983) relata um índice baixo de
sinalização de mau trato nas famílias caucasianas de classe média ou alta. No
estudo de Gelles em 1977, 5% dos médicos confirmam que a etnicidade fora tão
importante no diagnóstico que definiam o mau trato baseando-se somente neste
critério (cit. em Giovannoni, 1989).
A classificação racial e social da criança aparece também como um factor
importante noutros estudos. Num estudo desenvolvido por Turbett e O'Toole em
1980 (cit. em Giovannoni, 1989) com médicos, observou-se que existia um efeito
interactivo do estatuto socioeconómico do educador, do seu grupo de pertença
étnico e da gravidade do mau trato no reconhecimento do mau trato: na presença
de danos graves, as crianças afro-americanas eram duas vezes mais definidas
como vítimas do que as crianças caucasianas. Também as crianças de classes
baixas apresentavam frequências mais elevadas de sinalização, comparativamente
com as de classes altas.
Paralelamente, alguns autores referem o comportamento dos pais em relação aos
serviços como um aspecto que influencia as percepções do mau trato e da
negligência, embora os resultados sejam contraditórios no que diz respeito às
crianças (Calheiros, 1996; Giovannoni, 1989; Jensen e Nichls, 1984 [citados em
Brosig e Kalichman , 1992b]). Enquanto Jensen e Nichls (1984) referem que as
crianças maltratadas e os pais maltratantes caracterizados com problemas de
relação com as instituições são mais referenciados do que situações que
envolvam pessoas sem este tipo de problemas, Calheiros (1996), embora chegue à
mesma conclusão relativamente à importância da fraca inserção dos pais na
comunidade como factor para referenciar as situações, conclui que os técnicos
tendencialmente referem mais às instituições de protecção de menores as
crianças que não apresentam problemas de comportamento.
No estudo realizado por Almeida e colegas (1995), pode-se concluir que existem
características na família, como pobreza, monoparentalidade, sinais de
violência familiar, número de crianças em casa e consumos excessivos (álcool e
drogas), que estão associados às crianças maltratadas e negligenciadas
sinalizadas a instituições de protecção na área da grande Lisboa.
O tipo e a gravidade do mau trato (Zellman, 1990), a prova da ocorrência deste
(Kalichman e outros, 1990), e as circunstâncias associadas ao mau trato
(Giovannoni, 1989) são o último grupo de factores aqui referenciados.
Diferentes estudos referem o facto de o abuso sexual ser muito mais
referenciado do que o mau trato psicológico ou a negligência (Nightingale e
Walker, 1986). No estudo de Zellman (1990) os sujeitos pontuaram as situações
de abuso sexual como sendo muito mais graves do que o mau trato físico, o que
conduzia a que fossem mais facilmente sinalizadas do que o mau trato físico. No
estudo de Giovannoni (1989), somente 25% do total da incidência eram situações
de mau trato emocional ou de negligência.
Associadas a estas variáveis, têm-se também estudado a gravidade e a duração do
mau trato e da negligência. Green e Hansen (1989) referem que os psicólogos
incluiriam mais facilmente o mau trato considerado grave nas suas definições.
No estudo por nós desenvolvido, o tipo e gravidade do mau trato estão
firmemente associados à sinalização às instituições de protecção de menores
realizada pelos técnicos (Calheiros, 1996). O mau trato físico, que é
considerado mais grave e que produz maior evidência física, é muito mais
referenciado do que o mau trato psicológico, que é fisicamente menos evidente.
Finalmente, alguns estudos feitos com médicos, revistos por Giovanonni (1989),
indicam também que estes, ao fazerem um diagnóstico, são influenciados pelas
intenções dos pais. Gelles [(1977), citado por Giavanonni, 1989] conclui que
97% das situações de "má nutrição" nas crianças é referida quando a situação é
percebida por parte dos médicos como intencional. Quando a mesma situação é
atribuída à ignorância dos pais, somente 16% das situações foram classificadas
como "má nutrição".
O contexto cultural
Segundo Giovannoni e Becerra (1979), entre as questões básicas subjacentes à
definição de criança maltratada e negligenciada encontram-se as questões
relacionadas com valores, e muito especialmente aquelas que provocam conflito
de valores. Daí que as normas sociais sejam cada vez mais usadas como uma
estratégia para definir o mau trato (Knutson, 1995). Com efeito, a literatura
neste domínio (por ex. Giovannoni, 1989; Giovannoni e Becerra, 1979; Korbin,
1987; Wolfe, 1991; Zigler, 1980) descreve o mau trato e a negligência num
contínuo de práticas educativas, sendo este tipo de atitudes definidas como
situando-se em diferentes pontos ao longo de uma mesma linha hipotética de
valores educacionais (Zigler, 1980).
A variação cultural que existe ao nível das crenças e das práticas educativas
(Goodnow e Collins, 1990) evidencia bem a não existência de normas universais
sobre quais os cuidados que se devem ter com as crianças ou sobre o que pode
constituir mau trato e negligência. São exemplo disso os estudos de Dubanoski e
Snyder (1980), que abordam a sanção cultural do mau trato, e que demonstram que
nas sociedades (Havai e Samoa, por exemplo), onde existe uma maior tolerância
ao mau trato parental, ocorre uma frequência maior daquele tipo de
comportamentos. Pelo contrário, os pais japoneses ou finlandeses, que não
valorizam educativamente a punição física, apresentam valores mais baixos
(Belsky, 1980).
Ao nível das práticas, são muitos os exemplos de práticas educativas
tradicionais que suscitam conflitos interculturais e que revelam a
interferência, não só de valores educativos, como de objectivos de socialização
diferentes. Os rituais de iniciação juvenil como a circuncisão, a clitoritomia
ou a privação de alimentação e de sono (Korbin, 1987), que ocorrem em muitas
partes do mundo, constituem um bom exemplo deste tipo de conflito
intercultural. Igualmente elucidativo pode ser o uso de algumas práticas
enraizadas na cultura ocidental, as quais, aos olhos de outras culturas,
parecem bastante perigosas. É exemplo disso a prática de os bebés, desde muito
cedo dormirem num quarto separados dos pais, enquanto no Havai (Korbin, 1980)
ou no Japão (cit. em Korbin, 1987) o facto de as crianças dormirem acompanhadas
é uma prática educativa importante na socialização, assumindo um valor elevado
na construção da interdependência dos membros da família.
Embora não existam normas universais sobre educação e exista variação entre
culturas nos valores educacionais e nas práticas disciplinares, a ideia de que
o conceito de mau trato é uma imposição dos valores dos técnicos e das classes
mais favorecidas às classes sociais menos privilegiadas ou aos grupos
minoritários, representa uma forma simplista de equacionar esta questão. A
revisão de literatura de Giovannoni (1989) refere um conjunto de estudos que
demonstra que o público em geral é um definidor saliente do mau trato, pois não
só a maior parte das denúncias de actos consensuais de mau trato tem origem no
grande público, como não se confirma que exista uma grande tolerância a esse
tipo de actos entre a população em geral, ou mesmo nas classes mais
desfavorecidas e nos grupos étnicos minoritários.
De entre o conjunto de estudos cujos resultados apontam para a complexidade e o
carácter polémico do impacte da classe social e da etnia nas percepções do mau
trato destacam-se o de Giovannoni e Becerra (1979) e o de Polansky e outros,
(1981).
No estudo de Giovannoni e Becerra (1979), os sujeitos pontuaram todos os
comportamentos parentais com um nível mais elevado de gravidade do que os
técnicos. Os resultados indicam também que, embora o "senso comum" não tenha
sido tão específico na distinção de alguns dos subtipos de mau trato,
(sobretudo, nos aspectos básicos do cuidado às crianças ao nível físico,
educacional e emocional), como o foram os técnicos, nas áreas de abuso sexual e
físico, da falta de supervisão e do uso de drogas, os conceitos encontrados são
bastante semelhantes.
Os dados mais interessantes nesta população foram, contudo, as diferenças
encontradas nas percepções da gravidade relativa dos diferentes tipos de mau
trato ao nível da etnia e da classe social. Em geral, nos Estados Unidos, os
afro-americanos, independentemente da classe social, atribuíram maior
importância à supervisão e aos cuidados básicos à criança do que os restantes
grupos e os hispânicos atribuíram mais importância ao abuso sexual e à conduta
sexual em geral. Entre os sujeitos brancos, aqueles que tinham níveis baixos de
escolaridade e pertenciam a uma classe social pouco diferenciada também
pontuaram este tipo de mau trato como mais grave para a criança.
Polansky e outros (1981), com o objectivo de definirem um contínuo de mau trato
parental, desenvolveram, também nos EUA, um estudo com dois grupos de mães
(operárias e classe média) sobre atitudes parentais adequadas, negligência
grave e mau trato. As comparações interclasses revelaram, contrariamente ao
estudo anterior, similaridades entre os dois grupos, ou seja, as avaliações das
mães eram homogéneas relativamente a elementos básicos de cuidado à criança,
independentemente do seu nível educacional e de outros indicadores
socioeconómicos.
O problema da definição do mau trato e da negligência não se coloca somente no
quadro das diferenças culturais nas práticas de educação, em que as mesmas
práticas podem ser vistas como aceitáveis numa cultura e maltratantes ou
negligentes quando observadas por elementos de outras culturas. Giovannoni e
Becerra (1979) consideram que as definições devem advir sobretudo do que é
consensualmente aceite e não aceite, enquanto prática educativa numa mesma
sociedade. Em todas as culturas, desde as mais indulgentes, nas quais a criança
é raramente sujeita a punições, até às mais punitivas, em que a criança pode
ser severamente punida por mau comportamento, há um contínuo de aceitação
parental e de critérios para se definirem comportamentos que ultrapassam as
fronteiras do que é aceitável (Korbin, 1987).
No entanto, a linha que separa as práticas de educação aceitáveis das não
aceitáveis é muito ténue, mesmo no interior da mesma cultura. As definições
legais de abuso físico assentam, na maioria dos países, em noções de disciplina
"apropriada"/"inapropriada", não existindo consenso nas interpretações destes
conceitos (Wolfe, 1991) que sejam facilmente traduzidas em padrões comunitários
de forma a constituírem um guia. Apesar de haver países, como a Suécia, onde se
considera a punição física à criança como um crime, isto não quer dizer que os
suecos concordem quanto à fronteira que separa o bater da disciplina aceitável
(Belsky, 1980; Haeuser, 1982).
Objectivos
A questão da definição do mau trato e da negligência e os problemas daí
decorrentes reflectem a necessidade de se analisarem as diferenças e as
comunalidades entre os vários definidores e utilizadores dos conceitos com
vista à sua validação. Desta forma, este estudo representa a primeira fase de
um estudo mais amplo que integra dois vectores distintos, embora interligados:
a definição social destes conceitos numa amostra da população portuguesa, que
integre as definições utilizadas pelas instituições, pelos técnicos e pela
população (senso comum), para posteriormente se operar a sua validação
científica, através da construção e estudo de um instrumento de avaliação que
contenha as dimensões representacionais destes conceitos.
Mais especificamente, este estudo visou contribuir para:
· A apreensão dos significados particulares destes conceitos pela população,
pelos técnicos de intervenção comunitária e pelo direito português, e a análise
das diferenças e comunalidades existentes entre os diferentes definidores.
·A definição integrada dos conceitos a partir das contribuições destas três
fontes de análise.
· A identificação das dimensões que organizam o pensamento do senso comum e de
alguns factores associados à variabilidade desse pensamento (sexo, idade,
profissão, escolaridade e experiência profissional na área da infância), assim
como a distinção que estes sujeitos fazem entre mau trato e negligência.
Método
Sujeitos e procedimentos
Para a análise do senso comum participaram no estudo 123 sujeitos constituindo
uma amostragem por conveniência. Os sujeitos, de ambos os sexos (37,4%
masculino e 62,6% feminino), eram residentes na região de Lisboa. O quadro_1
apresenta a distribuição dos sujeitos por idade, escolaridade e profissão.
Quadro 1 Distribuição dos sujeitos por idade, escolaridade e profissão
Do total dos sujeitos, 38 (30,9%) tinham contacto profissional com crianças e
85 (69,1%) não tinham contacto profissional com crianças. Nenhum dos inquiridos
estava profissionalmente relacionado com serviços de mau trato ou negligência.
Através de uma entrevista estruturada colocavam-se aos sujeitos questões
relativas à sua caracterização sociodemográfica e à definição de mau trato e de
negligência na educação e interacção entre pais e filhos. Tomámos o mau trato e
negligência como um axioma de partida, pois as preocupações actuais de
definição (por ex. McGee e Wolfe, 1991) estão centradas nas descrições, não só
dos conteúdos, limites e fronteiras dos comportamentos e métodos de disciplina
fisicamente abusivos que pressupõem contacto físico , mas começam a integrar
também as descrições dos cuidados que se devem ter com as crianças e quais as
fronteiras de comportamentos parentais e práticas de disciplina não física
(emocional e verbal). Além disso, os objectivos e parâmetros dos métodos
disciplinares não envolvem somente formas emocionais e físicas das acções/
comportamentos observáveis nos pais. A parentalidade disfuncional passou também
a ser vista como a ausência de métodos apropriados de estimular a criança e as
omissões de comportamentos que manifestem sensibilidade, orientação e
supervisão ou seja, a negligência , embora esta área esteja menos
desenvolvida e seja menos específica do que o mau trato.
As entrevistas tiveram a duração média de dez minutos, foram gravadas e
posteriormente transcritas de forma a que se pudesse efectuar a análise de
conteúdo. Dado que o material a analisar foi produzido com vista à pesquisa que
se propõe realizar, o corpus de análise relativo à população em geral foi
constituído por todo o material recolhido nas entrevistas.
Para o estudo do senso técnico, numa primeira fase, foram contactadas
entidades, no sentido de se perceber quais as instituições hospitalares e de
intervenção social e judicial que poderiam participar no estudo.1 Numa segunda
fase, através das instituições referenciadas, foram seleccionados para
constituição do corpus de análise nove relatórios técnicos (seis de
instituições hospitalares2 e três de instituições sociais)3 que continham os
registos relativos a 516 crianças maltratadas e negligenciadas com idades
compreendidas entre o nascimento e os 17 anos.
Para o estudo do senso legal no âmbito do direito português foram definidos
como materiais de análise o Direito de Família (1995), a Organização Tutelar de
Menores (1992) e o Direito Penal (1996). Dentro de cada uma destas áreas do
direito foram seleccionados os decretos-leis que se referiam, quer a
comportamentos parentais que levassem à intervenção judicial e penal, quer às
situações de vida das crianças susceptíveis de intervenção da OTM, no total de
25 artigos, constituindo-se assim o corpus de análise do senso legal.
A técnica de base foi a análise de conteúdo, considerando-se os diferentes
materiais recolhidos as unidades de contexto (entrevistas à população,
relatórios técnicos e decretos-leis) a partir das quais foram retidas as
unidades de registo de acordo com o critério semântico, ou seja, com as ideias
subjacentes a cada uma delas, e não, a partir de critérios teóricos ou
definidos a priori. A partir destes conteúdos foi elaborado um esquema de
categorização integrado em subcategorias e estas em categorias(figura_1).
Figura 1 - Esquema do plano de análise de conteúdo
As unidades de registo obtidas através da análise de conteúdo das entrevistas
deram origem a três tipos de tratamento de dados que visavam quatro objectivos
diferentes: em primeiro lugar, obter a classificação dos conteúdos dessas
unidades nas áreas de mau trato ou de negligência, de modo a distinguir os dois
conceitos; em segundo lugar, distinguir diferentes categorias, recorrendo ao
processo de análise conceptual de McGee e Wolfe (1991), no qual se faz, não só
a distinção entre actos (mau trato) e omissões (negligência), como se
diferencia no mau trato, o mau trato psicológico em que os comportamentos são
verbais, do mau trato físico em que os comportamentos pressupõem contacto
físico; em terceiro lugar, construir as subcategorias para inclusão no
questionário de avaliação de mau trato e negligência; e, por último, operar um
tratamento estatístico estrutural onde se definiam as diferentes dimensões de
significado de mau trato e de negligência.
Na análise das categorias, e embora o modelo proposto por McGee e Wolfe em 1991
refira também as circunstâncias dos efeitos que os actos parentais provocam,
não considerámos este aspecto no estudo. E isto porque, como é referido na
revisão de literatura de Figueiredo (1998), a delimitação entre maus tratos
físicos e psicológicos a partir das consequências para a criança torna-se uma
questão meramente académica, já que, por vezes, os actos físicos têm
consequências psicológicas, assim como os actos psicológicos têm consequências
físicas e estes ocorrem simultaneamente.
Relativamente ao corpo de análise técnico, como pretendíamos observar a
relevância das diferentes descrições/definições de mau trato e negligência
reveladas pelos serviços na caracterização das situações, e queríamos pôr em
evidência a categorização de que são objecto estes mesmos conteúdos, fizemos
uma análise de conteúdo, tal como na parte anterior, recorrendo à quantificação
do material recolhido através da análise de ocorrências e da análise avaliativa
(Vala, 1986). O material relativo à definição jurídico-normativa foi somente
submetido à categorização por juízes.
Resultados
Unidades de registo. Na definição de senso comum, o trabalho exploratório sobre
o corpus de análise das entrevistas deu origem a 41 unidades de registo.
Na definição do senso técnico, na análise dos relatórios foram encontradas 51
unidades de registo, das quais 38 (72,6%) já tinham sido referidas pela
população; 13 unidades de registo (27,4%) são diferentes.
Na definição do senso legal, dada a pouca especificidade descritiva das três
áreas dodireito, da análise só foi efectuada a partir da fase das subcategorias
já encontradas a partir dos outros corpusanalisados.
Para obter um sistema integrado de categorização a partir das três fontes de
informação utilizadas os leigos, os técnicos e os juristas utilizaram-se,
na totalidade, 54 unidades de registo: 38 são comuns ao estudo da população e
dos relatórios técnicos, 3 foram constituídas com o material recolhido
exclusivamente na entrevista à população e 13 são oriundas exclusivamente dos
relatórios técnicos. As 54 unidades de registo, ainda que de uma forma vaga,
são referidas no material jurídico analisado
Subcategorias. O sistema de categorização foi criado com base nas
características específicas do material recolhido. Desta forma foram criadas 18
subcategorias onde foram incluídas as unidades de registo observadas no estudo
da população, na análise dos relatórios técnicos e material oriundo dos
decretos-leis.
Este processo de inclusão foi efectuado por quatro juízes (dois psicólogos e
duas psicólogas, com experiência na área educacional), para controlo da
fidelidade da categorização e codificação propostas. O índice de fidelidade foi
calculado dividindo o número de acordos entre juízes pelo total de
categorizações efectuadas. O nível de concordância entre juízes apresenta um
valor médio de 82%, variando entre 67% e 100% (anexo 1).
Categorias. Das 54 unidades de registo construídas com o material recolhido nas
três análises anteriores, e partindo da distinção realizada pelos sujeitos
(população e técnicos) entre mau trato, negligência, abuso sexual e trabalho
infantil, classificaram-se 22 unidades de registo como mau trato (p <0,05), 24
unidades de registo como negligência (p <0,05), 2 unidades em que não há uma
distinção clara entre as duas categorias, 3 unidades como abuso sexual (p
<0,05), e 3 unidades como trabalho infantil (p <0,05). Desta forma, com as 18
subcategorias (ver células do quadro_3) construídas com o material recolhido
nas três análises anteriores, partindo da adaptação do modelo de categorização
de McGee e Wolfe (1991), criaram-se 4 categorias tendo em consideração os
comportamentos e omissões parentais, obtendo-se assim uma definição integrada
de mau trato e negligência: mau trato físico (3 subcategorias), em que os pais
através de actos fisicamente violentos implementam métodos e técnicas de
educação coercivas/punitivas, recorrem à violência e agressão física com os
filhos, integrando também o consumo de álcool e de medicamentos inapropriados;
mau trato psicológico (4 subcategorias), que engloba indicadores relativos ao
abandono ou à relação afectiva, socialização e interacção verbal desajustada
com a criança; negligência física (7 subcategorias), que diz respeito à falta
de provisão nas áreas do bem-estar físico, da alimentação, higiene, saúde e
falta de supervisão na área da segurança; negligência psicológica (2
subcategorias), refere-se a indicadores de falta de supervisão da vida diária e
escolar da criança. O abuso sexual (1 subcategoria) e trabalho infantil (1
subcategoria) foram categorizados no mau trato físico e psicológico.
Quadro 2 Sistema integrado de categorização do mau trato e negligência
Fonte: adaptação do modelo de categorização de McGee e Wolfe
Quadro 3 Subcategorias submetidas à AFCM
Retidos os significados particulares de mau trato e negligência existentes nos
três contextos de análise em que têm sido ancorados estes conceitos e obtida
uma definição integrada destes construtos, pretende-se agora dar seguimento ao
terceiro objectivo desta investigação, ou seja, a identificação das dimensões
que organizam o pensamento do senso-comum e a análise de alguns factores dos
sujeitos (sexo, idade, profissão, escolaridade e experiência profissional com
crianças) associados à variabilidade desse pensamento.
Para se estudarem as relações entre as variáveis tomadas como independentes
recorremos ao teste c2. À excepção das variáveis sexo e profissão,as restantes
variáveis (idade, habilitações e contacto profissional com crianças) estão
relacionadas entre si (p£0,05) o que pode conduzir a que fiquem confundidos os
eventuais efeitos destas sobre as variáveis dependentes. A discussão dos
resultados terá em conta esta situação.
Das dezasseis subcategorias,4. anteriormente referenciadas, as catorze
enunciadas no quadro_3 foram submetidas a uma análise factorial de
correspondências múltiplas.5
A AFCM extraiu quatro factores responsáveis por 47,42% da inércia total, como
se pode ver no quadro_4.
Quadro 4 Valor próprio e percentagem de inércia dos quatro primeiros
factores
Projectados no plano, os dois primeiros eixos, com as subcategorias que os
definem e as variáveis ilustrativas que enquadram, apresentam-se na figura_2.
Legenda: subcategorias que contribuem para a definição dos factores: prf1,
quadros médios e superiores; ct-s, contacto com crianças; supe, curso médio/
superior; =< 45, 36 a 45 anos; prf2, empregados do sector público; ct-n, sem
contacto com crianças; home, masculino; =>46, +46 anos; prf3, operário
especializado/semiespecializado; 4cla, até à 4ª classe; mulh, feminino; prf4,
trabalhadores não qualificados; 9º ano, 6º a 9º ano; =<25, até 25 anos; prf5, não
activos; 12º ano, 10º a 12º ano;=<35, 26 a 35 anos.
Figura 2- Projecção factorial dos eixos 1 e 2
O primeiro eixo (horizontal) engloba as subcategorias de negligência
"acompanhamento da saúde", "acompanhamento escolar", "alimentação" e "aparência
e bem estar físico", definindo uma dimensão que indica falhas parentais nas
respostas às necessidades físicas das crianças e de desenvolvimento escolar. Ou
seja, uma dimensão que simboliza áreas essenciais do acompanhamento diário e
cuidados parentais para o desenvolvimento físico e intelectual das crianças.
Relativamente ao posicionamento das variáveis dos sujeitos nesta agregação, as
variáveis idade, escolaridade e profissão parecem ser as mais claramente
relacionadas com este factor.6 Assim, os sujeitos com idades compreendidas
entre os 26 e os 35 anos, que têm um nível de escolaridade médio baixo (6.º-9.º
ano) e que são empregados do sector público, são os que especificamente
salientam a dimensão da negligência assim entendida.
O segundo eixo (vertical) define uma área integrada por comportamentos
parentais marcadamente antinormativos como o "trabalho infantil" e o "abuso
sexual" por oposição a "abandono". Assim, este factor de mau trato sugere uma
dimensão em que os adultos não demonstram o mínimo grau de cuidados com a
integração educativa, social e afectiva das crianças tendo em consideração as
expectativas sociais actuais em relação à infância. Ou seja, uma parentalidade
moral e legalmente abusiva versus abandónica.
Os sujeitos que privilegiam o primeiro pólo trabalho infantil/abuso sexual
têm idades entre os 36 e 45 anos, têm escolaridade entre o 9.º e 12.º anos e
estão inseridos profissionalmente no primeiro grupo.
Os sujeitos que privilegiam o segundo pólo deste factor abandono pertencem
ao grupo etário dos mais velhos, têm níveis de escolaridade mais baixos e
trabalham como operários especializados.
Analisemos agora os factores 3 e 4 representados na figura_3, assim como a
projecção sobre eles das variáveis ilustrativas.
Legenda: designação das subcategorias que contribuem para a definição dos
factores: prf1, quadros médios e superiores; ct-s, contacto com crianças; supe,
curso médio/superior; =< 45, 36 a 45 anos; prf2, empregados do sector público; ct-
n, sem contacto com crianças; home, masculino; =>46, +46 anos; prf3, operários
especializados/semiespecializados; 4cla, até à 4ª classe; mulh, feminino; prf4,
trabalhadores não qualificados; 9º ano, 6º a 9º ano; =<25, até 25 anos; prf5, não
activos; 12º ano, 10º a 12º ano;=<35, 26 a 35 anos.
Figura 3 - Projecção factorial dos eixos 3 e 4
O terceiro eixo (horizontal) opõe as subcategorias "abandono" e "socialização
inadequada" à subcategoria "interacção verbal agressiva", constituindo-se assim
como uma dimensão de mau trato psicológico. Nesta dimensão ficam contrastados
actos de abandono familiar efectivo e uma educação sociomoral em que não existe
controlo, podendo levar a criança a comportamentos anti-sociais, criminais ou
destrutivos para os outros e para si própria, com um padrão de interacção
agressiva verbal que desvaloriza a criança. Ou seja, uma educação "selvagem
versus intrusiva".
À percepção desta dimensão de mau trato psicológico na sua vertente de
educação sociomoral desenquadrada estão associados os sujeitos com idades entre
os 36 e os 45 anos, com habilitações e nível profissional superiores, e que têm
contacto profissional com crianças. À vertente criança controlada por um padrão
de interacção verbal violenta e ameaçadora estão associados os sujeitos do
nível etário mais jovem, com escolaridade entre o 9.º e 12.º anos e que são
operários especializados.
Por último, o quarto factor (vertical) opõe comportamentos parentais cuja
socialização promove o desvio, fisicamente agressivos/coercivos e anti-
normativos (filhos como fonte de trabalho) a práticas parentais de socialização
em que as crianças não são inseridas num contexto educativo regular, a escola.
Uma dimensão que designámos como "desvio versus anomia".
Associados ao primeiro pólo encontram-se os sujeitos com cursos superiores e
quadros de empresas, enquanto ao segundo estão associados os mais velhos com
escolaridade média baixa e profissões sem qualificação específica.
Em síntese, e apesar dos possíveis efeitos exercidos pelas associações que
foram encontradas ao nível das diferentes variáveis independentes, parece
podermos afirmar o seguinte:
Os sujeitos com idades entre os 36 e os 45 anos com formação superior, que
profissionalmente exercem as suas funções como quadros de empresa e da
administração pública e que têm contacto profissional com crianças, estão mais
associados à definição de mau trato do que da negligência.
Em relação às dimensões de mau trato encontradas, estes sujeitos aparecem
associados sobretudo à imagem do mau trato definida por comportamentos
parentais e familiares considerados graves e marcadamente antinormativos como o
abuso sexual, o abandono, a socialização inadequada e a coerção e punição
físicas.
Os sujeitos mais velhos e mais novos, com profissões e níveis de escolaridade
médios baixos estão mais associados à definição da negligência no
acompanhamento diário, e quando referenciam o mau trato focalizam-se em
aspectos relacionados com a relação e a interacção quotidiana dos pais com as
crianças.
Ou seja, os primeiros atribuem importância a actos parentais graves e menos
frequentes, enquanto os segundos estão mais associados à definição de situações
de acompanhamento, supervisão e educação no dia-a-dia das crianças.
Conclusões
No conjunto, as análises de conteúdo realizadas fizeram sobressair algumas
comunalidades e particularismos que passamos a apresentar, e forneceram algumas
respostas relativamente aos problemas de definição levantados na revisão de
literatura. Além disso contribuíram também para levantar alguns problemas
relativamente à forma como este tema é abordado pela comunidade técnica em
Portugal.
A apreensão dos significados de mau trato e negligência obtida nas três fontes
de informação resultou em 18 subcategorias que se organizaram em quatro
categorias distintas, obtendo-se desta forma uma definição integrada de mau
trato (actos) e negligência (omissões) que integra os seguintes conteúdos:
O mau trato psicológico, definido poractos conscientes dos pais na relação
afectiva e na socialização da criança que não favorecem as necessidades de
desenvolvimento emocional, social e intelectual, incluindo interacções verbais
agressivas, actos de abandono declarado e umasocialização inadequada através de
modelos inadequados, reforço do desvio ou evitamento social.
O mau trato físico, que engloba métodos de educação coercivos/punitivos através
da utilização de técnicas disciplinares (físicas) inadequadas e violentas, a
agressão e violência física e o consumo de álcool e medicamentos.
A negligência psicológica, definida por omissões dos adultos em relação à
supervisão na organização da vida diária e actividade escolar da criança.
A negligência física engloba a falta de supervisão em relação à segurança e
falta de provisão em relação às necessidades de desenvolvimento físico da
criança relacionadas com a aparência e bem-estar, higiene, alimentação e saúde.
Dado que se pretende construir um questionário que reflicta o contínuo de
práticas de educação parental que são vistas como abusivas na nossa cultura, ou
que ultrapassam as fronteiras do que é aceitável, e que de futuro seja aplicado
pelos diferentes técnicos que avaliam e intervêm no problema, tivemos em
consideração a inclusão de áreas e indicadores que, mesmo não sendo comuns aos
três grupos de definidores, serviriam objectivos específicos de cada valência
profissional. Estão neste caso as subcategorias "problemas de saúde" e
"problemas de desenvolvimento psicomotor" definidas exclusivamente pelos
técnicos de saúde, corroborando estas subcategorias os resultados obtidos por
Almeida e colegas (1999).
Da análise da origem dos indicadores ressalta, por um lado, a homogeneidade
entre as definições técnicas e do senso comum e, por outro, a importância
atribuída pelos técnicos à negligência física na saúde e às suas consequências
para a criança, dimensão e critérios que não aparecem representados nas
percepções da negligência pelo senso comum.
Todas as áreas definidas foram encontradas, ainda que duma forma vaga e pouco
descriminada, nos códigos do direito português que referem o problema, quer ao
nível da família, quer da criança.
O facto de 38 indicadores serem comuns a todas as definições indica-nos que a
variabilidade entre os definidores e diferentes contextos (cultural e
institucional) de definição é pouco acentuada. A variabilidade observada (16
indicadores não comuns) pode ser facilmente justificada pelo facto de as
definições servirem diferentes objectivos institucionais e de intervenção. Elas
servem para definir o estatuto de dependência das crianças em relação aos
adultos, servem, no âmbito do direito criminal, para definir uma acção crime
para fins de prossecução, e servem também para definir os requisitos
necessários a uma intervenção social ou judicial numa dada situação de mau
trato ou negligência. No entanto, sendo os actores familiares os mesmos, e o
acto único, se não se utilizar um instrumento que englobe uma definição
conjunta, esta dispersão pode conduzir ao desfasamento nas avaliações e
medidas, desfasamento que resultará da diferença de perspectiva dos diversos
serviços e da descontinuidade das decisões (Epifânio e Farinha, 1987 [citados
em Epifânio e Farinha, 1992]).
Relativamente ao estatuto vago que é atribuído às definições, ele foi mais
notório à medida que caminhávamos na exploração dos conteúdos das definições do
senso comum para os relatórios técnicos e para o direito português. Ou seja, as
definições do senso comum foram aquelas que, não só apareceram duma forma mais
homogénea, como se manifestaram mais precisas na distinção entre mau trato e
negligência. Além disso, centram-se sobretudo nos factos e não nas causas ou
nas consequências para a criança.
Relativamente aos relatórios técnicos, embora se constate homogeneidade nas
definições (todos procuram definir as causas, a situação observada e as
consequências) e estas sejam mais específicas (contribuem com 13 indicadores
novos em relação ao senso comum), parece-nos que a questão se coloca sobretudo
entre as diferentes profissões e instituições (serviço social versus médicas).
As dimensões categorizadas pela área de intervenção social estão mais próximas
das do senso comum. Os 38 indicadores comuns à definição técnica e da população
parecem-nos advir da definição dos técnicos de serviço social e educação,
enquanto que os indicadores da negligência física têm a sua origem nas
definições médicas.
Duma forma geral, as definições no âmbito das instituições de intervenção
social manifestam maior preocupação com as causas e descrevem as situações em
relação aos limites máximos do desenvolvimento ideal das crianças. Por sua vez,
os médicos preocupam-se sobretudo com as sequelas físicas observadas, ou seja,
a observação das consequências dos actos parentais para as crianças.
A definição do direito, sobretudo nos aspectos da negligência e do mau trato
psicológico, foi a que apresentou a noção mais vaga do problema, o que pode
conduzir a imprecisões na definição de graus de perigo (direito de família e de
menores). Sendo mais precisa e específica ao nível do direito penal, sobretudo
na definição de mau trato físico e outro tipo de comportamentos gravemente
abusivos, persiste com o problema da definição e discriminação entre a
intencionalidade, acidente e poder de correcção. Dado que constitui o órgão
máximo de decisão, quer ao nível da avaliação, quer da intervenção, pensamos
que as normas por que se rege deveriam apresentar uma maior correspondência com
o pensamento dominante (senso comum e técnicos) para, em nome do poder público,
poder julgar este tipo de actos abusivos, o que, de facto, não acontece.
Ao nível da definição do senso comum, tal como Giovannoni (1989) demonstra na
sua revisão de literatura, nós confirmamos também que o público em geral não só
é um definidor saliente do mau trato como não se confirma a ideia de que existe
uma grande tolerância em relação ao mau trato e à negligência entre a população
em geral, mesmo nas classes mais desfavorecidas.
Em primeiro lugar, há a evidenciar o facto de todos os universos recenseados
revelarem pouca variabilidade interna. Ou seja, considerando, quer os grupos de
sujeitos, quer dentro de cada grupo, os indivíduos que os compõem recorrem a
descrições semelhantes, o que indica uma partilha social de significados sobre
os conceitos de mau trato e negligência.
Em segundo lugar, se tivermos em consideração o número médio de referências
produzidas por cada grupo, estas também não variam muito entre os diferentes
grupos.
Em terceiro lugar, no que diz respeito à saliência dos conteúdos definidos,
parece podermos concluir que as categorias de mau trato são mais referenciadas
do que as de negligência, sendo o mau trato físico a área mais saliente e
identificadora das práticas educativas parentais abusivas. Contudo, não podemos
deixar de referir que a esta definição clássica de mau trato se associa também
a importância dada aos aspectos relacionais e emocionais da relação pais-
filhos, ou seja, o mau trato psicológico. Aliás, este estudo é revelador da
centralidade que as atitudes educacionais do quotidiano na relação e interacção
pais-filhos começam a ter, contrariando a ideia de mau trato definida
exclusivamente por comportamentos parentais que, embora esporádicos, são
considerados pela nossa sociedade como verdadeiramente antinormativos.
Outro aspecto que nos parece relevante nesta análise é a importância atribuída
pelos sujeitos, não tanto a actos que em termos sociais são definidos como
marcadamente antinormativos e menos frequentes (abuso sexual, trabalho
infantil, abandono), mas mais a aspectos relacionados com o acompanhamento,
cuidados e relação, atitudes que fazem parte das práticas quotidianas da
educação parental.
Relativamente às dimensões em que se organiza o pensamento dos sujeitos, e
conforme se tinha hipotetizado, a construção das ideias sobre mau trato e
negligência varia em função do nível de escolaridade, profissão e experiência
profissional com crianças.
No entanto, uma orientação semelhante aos resultados obtidos por Giovanonni e
Becerra (1979), em que os sujeitos com níveis educacionais e profissionais mais
elevados perfilhariam uma definição baseada na falta de cuidados nos aspectos
básicos de acompanhamento e de educação, enquanto que os outros deveriam
atribuir mais importância às áreas mais violentamente abusivas, não se
confirma.
As nossas conclusões apontam, sim, para uma clivagem entre estes dois grupos de
sujeitos, mas no sentido contrário àquele que foi encontrado por aqueles
autores. A definição da negligência é sobretudo partilhada pelos sujeitos com
nível educacional e profissional médio baixo, enquanto a definição de mau trato
é partilhada pelos sujeitos de nível educacional e profissional superior e que
têm contacto profissional com crianças (professores, curadores de menores,
técnicos de serviço social, etc.). Ou seja, os primeiros estão mais associados
à definição de situações de falta de acompanhamento e de supervisão e a uma
educação cujo problema central parece ser a ausência de uma organização do dia-
a-dia da criança. Mesmo quando se associam à definição das dimensões de mau
trato, focalizam-se nas áreas relacionadas com a relação e interacção pais-
filhos. Os segundos, talvez porque no contexto socioeconómico e cultural em que
estão inseridos, duma forma geral, as pessoas garantam o cumprimento destas
questões básicas de relação, saúde, ensino, alimentação, etc., aparecem mais
associados à definição de actos parentais considerados mais graves,
antinormativos e intencionais. Além disso, na nossa cultura, os padrões de
educação negligente parecem estar ainda, para este grupo, muito associados ao
nível sócioeconómico e cultural das famílias, persistindo ainda uma certa
desculpabilização/aceitação deste tipo de atitudes. Pelo contrário, os actos
parentais manifestamente maltratantes, possivelmente, não só os consideraram
marcadamente antinormativos, como lhes atribuem mais facilmente uma
intencionalidade.
Vários problemas ainda persistem, contudo. Em Portugal (Amaro, 1986), embora as
leis actuais já não se refiram ao poder de correcção, continua a existir um
direito de correcção incluído no "poder dever" da educação, sendo o seu
conteúdo dependente duma interpretação ampla desse direito, pois não se
determinou a proibição do castigo corporal (como sucede na Suécia), nem a
respectiva violação corresponde necessariamente a uma sanção.
Considerando-se a "vitimização" da criança (Brassard e outros, 1987; Garbarino
e outros, 1986), ou os actos parentais, independentemente das consequências
para a criança (Mash e Wolfe, 1991; Wolfe e McGee, 1994), mais importantes do
que o carácter intencional dos seus comportamentos (conceito determinante, mas
de difícil definição), a questão parece continuar a ser a de se saber até onde
pode ir o castigo como método disciplinar, e o que se deve considerar já maus
tratos. Por outro lado, hoje em dia põe-se muito em questão a linha separadora
entre acidente e mau trato, dado que muitos dos "acidentes" ou agressões ditas
involuntárias resultam de negligência ou mau trato (Peterson e Brown, 1994).
Um outro aspecto a referir, relativamente às definições utilizadas, prende-se
com o facto de os diferentes contextos de análise do problema utilizarem
categorias gerais que circunscrevem situações agrupadas (ex: nem sempre se
distingue o mau trato físico do psicológico ou a negligência do mau trato
físico). Dada a pouca evidência de que o mau trato é uma variável homogénea, já
que existem tipos e graus diferentes de mau trato e a sua etiologia é difusa,
havendo várias condições possíveis que antecedem e conduzem a resultados com
graus de gravidade diferentes (Milner, 1992), então, no seguimento desta
análise e com a construção de um instrumento de avaliação que contemple as
diversas áreas, o julgamento poderá ser efectuado relativamente a um padrão de
educação contínuo, mais do que em relação a acções ou categorias específicas.
Relativamente aos graus e tipos de perigo, em Portugal, um dos pressupostos da
aplicação da medida de inibição ou redução do poder paternal é a existência de
"um perigo para a segurança, a saúde, formação moral ou a educação da criança"
(art. 1918.º do código civil).
Como foi possível constatar e como reconhece Duarte (1989), a definição da
noção de perigo está ainda por fazer, pelo que só é possível fixar alguns
critérios de delimitação, como " tenha como limite máximo uma perigosidade",
"o risco que as condições de vida do menor sofre deve ter um carácter real", e
não tanto "um perigo meramente eventual", mas "não é necessário que seja
particularmente grave" (cit. em BMJ 418, 1992: 298). Estas noções podem, no
entanto, representar uma variabilidade enorme, quer em função das pessoas que
avaliam, quer em função da criança (idade, características, nível de
desenvolvimento, etc.). Dada a liberdade de apreciação, é possível que o
contorno deste conceito se revele bastante flexível e difícil de precisar e de
aplicar. Aliás, segundo a mesma autora, o próprio conceito de gravidade é
variável em função do próprio menor, tendo, pois, de se afastar um critério
puramente objectivo. Neste sentido, e dado que cada vez mais o problema é
discutido interdisciplinarmente, este estudo representa um contributo para a
discussão técnica na medida em que possibilita a sua aplicação por diferentes
disciplinas.
Ainda em relação ao perigo, ou melhor, aos diferentes tipos de perigo, a nossa
lei não distingue entre "perigo para a segurança, saúde ou formação moral" e
"perigo para a educação", ao contrário do que acontece noutros países (França,
por exemplo), em que a educação é a área em que judicialmente se é menos
exigente, por ser mais ampla e estar mais dependente das liberdades individuais
e familiares, apresentando-se o perigo para a segurança, a saúde ou a formação
moral com maior objectividade (BMJ 418, 1992). Contudo, com a adopção, no nosso
país, da escolaridade obrigatória até ao 9.º ano, e a não existência de
curriculaalternativos para crianças com insucesso escolar e ambientes
familiares pouco integradores, este torna-se actualmente um dos maiores
problemas de integração de crianças em risco.
Anexo 1
Subcategorias e unidades de registo obtidas nas três fontes de análise
(1) Relação/ Interacção não verbal. Actos conscientes dos pais, na relação
com a criança, que não favorecem as condições necessárias para o seu
desenvolvimento emocional e intelectual.
Direito português: art.º CC, 1915; OTM, 15 (art.º referente a todas as
subcategorias dado ser definido "pelos deveres para com o filho"); CP, 153.
· "esperam de mais da criança", "não reconhecem as dificuldades", "de
aprendizagem", "de controlo", "que são crianças", "exigem muito", "não as levam
a serviços que possam melhorar as suas condições", " não as ajudam quando estão
com alguma dificuldade", etc.
Unidades de registo: população, 62; técnicos, 5.
· "não estimulam", "não lhes ensinam a ser responsáveis", "não dão autonomia",
"não põem a criança na escola", etc.
Unidades de registo: população, 25; técnicos, 5.
· "interacções negativas", "ausência de contacto", " não gostam da criança",
"são imprevisíveis", " a criança é bode expiatório", etc.
Unidades de registo: população, 45; técnicos, 8.
(2) Interacção verbal agressiva com a criança. Actos dos pais que incluem
agressão verbal directa com a criança.
Direito português: art.º OTM, 15; CP, 153.
· "ralham constantemente", "chamam nomes", "depreciam", "diminuem" a criança,
etc.
Unidades de registo: população, 42; técnicos, 2.
·" ameaçam verbalmente a criança", "aterrorizam-na", "metem medo", etc.
Unidades de registo: população, 41; técnicos, 2.
· "não as deixam falar", "dar opiniões", "dar ideias", "participar nas coisas
da família", etc.
Unidades de registo: população, 18; técnicos, 2.
(3) Abandono familiar. Actos de abandono declarado e não situações de
separação em que os pais ou familiares continuam a mostrar interesse e
preocupação pelas crianças.
Direito português: art.º CC, 1913; OTM, 15; CP, 138.
·"a mãe não quer saber dela", "a mãe abandonou-a", "a mãe nunca mais aparecer",
"ser entregues a instituições", "não mandarem dinheiro", etc.
Unidades de registo: população, 11; técnicos, 4.
· "o pai não quer saber dela", "o pai abandonou-a", "o pai nunca mais
aparecer", "ser entregues a instituições", "não mandarem dinheiro", etc.
Unidades de registo: população, 11; técnicos, 4.
· "os pais morrerem e a família não querer saber", "os pais dão-se mal com os
avós e estes nem conhecerem os netos", "os pais serem drogados e a família não
tomar conta da situação", etc.
Unidades de registo: população, 4; técnicos, 4.
(4) Socialização inadequada.Actos dos adultos que não favorecem um bom
desenvolvimento social da criança, através de modelos inadequados, reforço do
desvio ou evitamento social.
Direito português: art.º CC, 1885 e 1918; OTM, 13 e 15; CP, 153.
· "mandam-na roubar" "drogam-se diante dela", "incitam-na à violência", "acham
piada a comportamentos de má educação", etc.
Unidades de registo: população, 32; técnicos, 2.
· "evitam que ela conviva com outras crianças", "proíbem-na de ter relações de
amizade", "acham que ela não é capaz de ter amigos", "fazem-na acreditar que
ninguém gosta dela", etc.
Unidades de registo: população 15; técnicos, 2.
· "vivem num meio familiar pouco organizado", "ambiente promíscuo", "família
violenta", "observa violência", etc.
Unidades de registo: população, 22; técnicos, 3.
(5) Métodos de educação coercivos/ punitivos.Utilização de técnicas
disciplinares (físicas) inadequadas e violentas com a intenção de educar.
Direito português: art.º OTM, 15; CP, 153.
·" batem na criança para a educar", "perdem o controlo com o seu
comportamento", "escalada de violência para endireitarem os filhos", etc.
Unidades de registo: população, 30.
· "castigos violentos", "fechar no quarto durante muito tempo", "os pais para
educarem os filhos fazem coisas muito más", "fechar a luz", "obrigar a estudar
durante toda a noite", etc.
Unidades de registo: população 48; técnicos, 1.
· " amarrar a criança a uma cadeira porque é muito irrequieta", "prendê-la a
uma mesa para não lhe acontecer nada", "obrigar a ficar deitada"
Unidades de registo: população, 8; técnicos, 1.
(6) Agressão e violência física.Actos dos pais em que existe contacto físico
violento sem a intenção de disciplinar, mas que podem pressupor uma certa
intencionalidade.
Direito português: art.º OTM, 15 e 142; CP, 153.
· "espancam a criança", "a criança ficar marcada", "sinais de dentadas",
"marcas de cintos", "beliscaduras", "socos", "pontapés", "bofetões", etc.
Unidades de registo: população, 108; técnicos, 6.
· "queimam a criança", "põem-na em água a ferver", "qiemam-na com cigarros",
"aparelhos eléctricos", etc.
Unidades de registo: população, 8; técnicos, 1.
· " puxam", "sacodem violentamente a criança", "abanam a criança"
Unidades de registo: população, 26; técnicos, 5.
(7) Consumo de álcool e medicamentos. Os pais dão à criança álcool e
medicamentos inapropriados, ou facilitam o consumo de produtos nocivos.
Direito português: art.º 13; OTM, 15 e 142; CP, 153 e 131.
· "consumo de álcool", "medicamentos estragados", "medicamentos inapropriados",
"dar drogas", "criança beber vinho", "dar comprimidos à criança para esta
dormir".
Unidades de registo: população, 9; técnicos, 2.
· "intoxicação(ões) provocada(s)", "deixar à vista da criança medicamentos ou
outros produtos nocivos de forma a que esta os venha a ingerir"
Unidades de registo: técnicos, 2.
· "intoxicação(ões) voluntária(s)", "adulto dá medicamentos em excesso à
criança"
Unidades de registo técnicos, 2.
(8) Alimentação.Actos dos pais em relação à alimentação, intencionais, que
podem ter consequências físicas graves para a criança.
Direito português: art.º CC, 1878; OTM, 15 e 142; CP, 153
· "privam a criança de alimentação", " passar um dia sem comer", "a criança tem
fome e os pais não lhe dão de comer", etc.
Unidades de registo: população, 22; técnicos, 4.
· "não alimentam a criança ao ponto desta adoecer", "porque não comem ter
atrasos de crescimento", etc.
Unidades de registo: população, 5; técnicos, 4.
· "apertar o nariz da criança para que ela coma", "a criança tem que engolir o
vomitado", "não dar de beber propositadamente"
Unidades de registo: população, 3.
(9) Abuso sexual. Diferentes formas de molestação sexual. Nas crianças estas
práticas, quando pagas, são consideradas abuso e não trabalho.
Direito português: art.º 201; CP 204 e 207; OTM, 13.
· "violação sexual", " relações sexuais", " práticas sexuais aberrantes",
"abuso sexual", etc.
Unidades de registo: população, 20; técnicos, 5.
· "exploram a criança como prazer", "utilizam a criança para fins
pornográficos"
Unidades de registo: população, 2.
· "consentem que os filhos vão para a prostituição", "colocam a criança na
prostituição"
Unidades de registo: população, 6; técnicos, 3.
(10) Trabalho infantil/mendicidade.Qualquer forma de trabalho fomentada
pelos pais, remunerado ou não, mas que seja excessivo para a criança ou que a
prive de frequentar a escolaridade obrigatória (9.º ano).
Direito português: art.º OTM, 13; CP, 153.
· "colocam a criança a trabalhar fora de casa", "exercer uma actividade
profissional", "trabalho infantil"
Unidades de registo: população, 6; técnicos, 3.
· "põem a criança a tomar conta dos irmãos e não vai à escola", "realizar
trabalhos excessivos", "trabalhos perigosos para a sua idade"
Unidades de registo: população, 3; técnicos, 2.
· " mendicidade"
Unidades de registo: população, 6; técnicos, 2.
(11) Aparência e bem estar físico.Omissões dos pais relacionadas com a
aparência e bem-estar físico da criança.
Direito português: art.º OTM, 15.
· "não cuidam do vestuário da criança", "roupa suja", "uso de roupa pouco
adequada para a época", "roupa muito grande ou muito pequena", etc.
Unidades de registo: população, 20; técnicos, 6.
·"negligenciam a higiene de corpo da criança", "não dão banho", "aparência de
suja", "raramente lavada", "mau cheiro", etc.
Unidades de registo: população, 33; técnicos, 6.
· " negligenciam os cuidados diários", "a criança não se sentir confortável",
"a criança não tem um lugar apropriado para dormir", "algumas das refeições não
são completas", etc.
Unidades de registo: população, 51; técnicos, 5.
(12) Acompanhamento na saúde. Omissões dos pais, em que não se faz prevenção
da saúde, não se têm os cuidados necessários à manutenção da saúde, ou em que a
criança não é tratada quando está doente.
Direito português: art.º CC, 1878, 885, 1918.
· "não fazem a vigilância de saúde da criança", "falta às consultas de rotina",
"não aplicação de vacinas", etc.
Unidades de registo: população, 43; técnicos, 7.
· "não tratam a criança quando está doente", "falta aos tratamentos", "falta de
actuação em relação às orientações médicas"
Unidades de registo: população, 32; técnicos, 7.
· "a criança vai a consultas médicas ou é sujeita a internamentos sucessivos de
urgência", "negligência no acompanhamento da saúde adoecendo com frequência"
Unidades de registo: técnicos, 6.
(13) Segurança. A criança por falta de segurança sofre acidentes com
sequelas de gravidade variável.
Direito português: art.º CC, 1978.
· "não há condições de segurança necessárias", "não há protecção de pequenos
acidentes", "ingestão de medicamentos que foram deixados à mão da criança",
"queimaduras por falta de segurança", "fracturas ou lesões por descuido"
Unidades de registo: população, 25; técnicos, 1.
· acidente(s) grave(s) com sequelas irreparáveis por falta de segurança,
atropelamento
Unidades de registo: técnicos, 1.
· intoxicação(ões) acidental(ais) de medicamentos ou produtos nocivos, os
adultos deixaram os medicamentos acessíveis à criança
Unidades de registo: técnicos, 1.
(14) Acompanhamento diário da criança. Omissões dos adultos em relação à
organização da vida diária da criança e nas suas actividades parentais.
Direito português: art.º OTM, 15.
· "as crianças são deixadas ao Deus-dará", "as crianças não frequentarem o
colégio e ficarem sozinhas em casa", "as crianças ficarem sozinhas durante o
dia"
Unidades de registo: população, 71; técnicos, 2.
· "não se interessam pelo que a criança faz durante o dia", "não acompanham o
dia a dia da criança", "desinteresse sobre a organização da sua vida diária",
"não querem saber com quem a criança anda", " não existem regras"
Unidades de registo: população, 56; técnicos, 2.
· "não têm actividades de estimulação com a criança", "não brincam", "não fazem
jogos, passeios", "a criança passa tempo exagerado ao computador, TV", etc.
Unidades de registo: população, 35; técnicos, 2.
(15) Acompanhamento da vida escolar. Omissões dos pais em relação à escola e
actividade escolar da criança.
Direito português: art.º CC, 1878 e 1885; OTM, 15; CP,
· " não mandam a criança à escola", "a criança falta muito à escola"
Unidades de registo: população, 5; técnicos, 4.
"não controlam os horários", "não querem saber das notas", "não controlam as
faltas", " não se preocupam com os comportamentos na escola"
Unidades de registo: população, 33; técnicos, 1.
· "não fazem o acompanhamento da aprendizagem da criança", "dos trabalhos de
casa", "do material escolar", etc.
Unidades de registo: população, 16; técnicos, 1.
(16) Falta de higiene/problemas de saúde. Omissões em que, por falta de
higiene, podem ocorrer problemas de pele, ou em que já se observam esses
problemas.
Direito português: art.º OTM, 15.
· portadora de parasitas com frequência (com picadas no corpo)
Unidades de registo: população, 7; técnicos, 3.
· doenças de pele provocadas por sujidade
Unidades de registo: técnicos, 3.
· lesões cutâneas infectadas por falta de higiene
Unidades de registo: técnicos, 3.
(17) Problemas de desenvolvimento psico-motor. Problemas de desenvolvimento
físico, sobretudo em crianças mais jovens (dos 0 aos 3/4 anos).
Direito português: art.º CC, 1885; OTM, 15.
· défices de desenvolvimento físico/motor
Unidades de registo: técnicos, 3.
· deficiente progresso estato-ponderal (debilidade física)
Unidades de registo: técnicos, 4.
· falta de progressão no peso, desajustamento entre o peso esperado e o
apresentado
Unidades de registo: técnicos, 4.
(18) Problemas de saúde. Consequências na criança que descrevem a existência
de problemas de saúde já observados.
Direito português: art.º OTM, 15.
· má nutrição
Unidades de registo: técnicos, 6.
· intoxicações alimentares com frequência
Unidades de registo: técnicos, 3.
· problemas de gastroenterite (diarreias), infecções respiratórias com
frequência
Unidades de registo: técnicos, 3.
Nota: Recorda-se que as fontes de análise são o direito português, entrevistas
à população e relatórios técnicos. População N=123, e relatório N=9.1) art.º
referente a todas as subcategorias dado ser definido "pelos deveres para com o
filho".
Legenda: (CC) Código Civil; (OTM) Organização Tutelar de Menores; (CP) Código
Penal.
Notas
1 Secção de Pediatria Social da Sociedade Portuguesa de Pediatria, Instituto
de Apoio à Criança e Centro de Estudos Judiciários, entidades que no início da
década de 90 tinham começado a sensibilizar a comunidade técnica para o
problema das crianças maltratadas e negligenciadas.
2 Hospital Pediátrico de Coimbra, Serviço Pediátrico do Hospital de Vila
Franca de Xira, Serviço Pediátrico do Hospital de Setúbal, Serviço Pediátrico
do Hospital de Santa Maria, Hospital Infantil de São Roque, Serviço de Saúde
Comunitário.
3 Centro de Estudos Judiciários, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa,
Projecto de Apoio à Família e Criança.
4 Embora tivessem sido obtidas 18 subcategorias, duas foram construídas
exclusivamente com unidades de registo obtidas nos relatórios técnicos.
5 Utilização do programa Spad-n.
6 Uma vez que, como atrás se viu, estas variáveis se encontram
correlacionadas.